A Banshee

No velório do tio Alcir ventos sussurrantes anunciavam a chuva que pelo horizonte marchava. Vários olhos tristes e pesados de lágrimas enfeitavam aquele cenário sepulcral que se formava. Em meio ao grupo, dentro do caixão de madeira envernizada, jazia o morto de rosto levemente sereno. Parece que sonha — Comenta a mãe do falecido, senhora respeitável e de fé inabalável. “Parece que logo acordará e pedirá sua costumeira dose de café com grappa.”

O verão seguia muito quente. Um dia mais abafado do que o outro. Fazia tempo que não chovia. Hoje, porém, as nuvens negras preenchiam o céu. Escutaram um trovão. A luz antes tão clara do enterro do homem agora perdia a graça, e a sala mortuária tomava tons mais escuros, destacando a luz das velas postas em volta do falecido.

Enquanto o padre consolava os entes queridos, as crianças, abaladas por toda aquela tristeza generalizada, tiraram um tempo para brincarem lá fora. Logo quando viram que a chuva se aproximava, entraram na antecâmara da sala sepulcral, e sentaram-se em uma ala de bancos ao lado da entrada. A mãe de um deles notou algo estranho, Ricardo parecia preocupado, com expressões carrancudas.

“Que foi que houve, Ricardo? Estás com frio?”

“Não, tia, o Ricardo diz ter visto algo lá perto do matagal” — Respondeu uma menina franzina, fanha.

Ricardo contrariou:

“Não foi que eu vi, mas sim ouvi…”

Deram chá ao menino. Mais calmo, continuou:

“Daquele matagal eu escutei gritos, eu juro! Primeiro pensei que fosse o vento, mas depois…”.

Contaram ainda que Laura, uma das crianças, havia visto alguém ao pé de uma árvore distante.

“Parecia uma mulher. Os cabelos escuros, o rosto pálido, um vestido branco…”.

Depois do mistério, ainda ouviram cânticos que se misturavam ao vento, e sentiram um aroma adocicado de incenso. Assustados, decidiram retornar para perto dos adultos.

A moça deu pouca atenção a tal imaginação infantil. Devia ser o trauma da situação; inventavam coisas. Quando chegou a hora de enterrar o morto, a chuva caía violentamente. Tiveram de esperar um bom tempo para sair do abrigo.

Assim que a chuva diminuíra, levaram com cerimônia o caixão fechado até a cova. As tumbas dos mortos vizinhos eram como recortes de uma cena imóvel de tristeza e luto. Quando desceram o caixão ao solo, começaram a chorar e a se abraçar. Nunca mais haveriam de pegar o tio Alcir lendo o livro na frente de casa, cumprimentando quem passava, sempre simpático. Nem o veriam como sombra a passar em frente à igreja com sua maleta e jornal na mão.

Escurecera. A chuva era incessante, mas agora menos intensa. Trovejava esporadicamente em meio à escuridão da noite. Pensamentos de morte e luto entre as pessoas que agora se preparavam para ir embora. Cochichos e pensamentos. “Era um bom homem” Dizia um. Outro contava anedotas do morto, querendo amenizar a dor. “Eis a vida” Dizia um sobrinho estudante.

Ninguém da família recebeu a notícia do que aconteceu naquela noite depois do cortejo fúnebre.

A polícia recebeu chamadas esquisitas perto do cemitério, no matagal que o cercava. Depois de algumas buscas, encontraram perto de um quiosque abandonado uma jovem que mais parecia uma indigente. Estava toda molhada da chuva, e quando se aproximaram, viram-na sentada no chão sujo e com as mãos sobre a face. Parecia que tinha vinte anos. Seu vestido branco estava encardido de barro; estava descalça e julgavam que não vestia roupas de baixo. Ao indagá-la, viram que ela estava a tempos em prantos. Soluçava amargamente. Seu semblante era de pavor e luto. Não falava português, mal dizia palavra. Certa altura começou a cantar, mas logo silenciava em presença dos demais. Seu cântico, julgavam, era de outra língua, pois não entendiam palavra. Decidiram, então, levá-la para a delegacia, quem sabe tentar achar algum responsável ou familiar que a acudisse. Estava perdida, quem sabe drogada? Puseram-na dentro do carro, no banco traseiro, e continuaram a procurar mais evidências em redor do quiosque. Sem resultados, o sargento da brigada decidiu interrogá-la melhor, mas ao entrar no carro, percebeu que a moça não estava mais ali. Um brigadiano então disse, com pavor: “Eu juro que eu a estava acompanhando, e ela simplesmente sumiu!”. Depois de uma árdua procura para ver se a achavam novamente, desistiram da empreitada, e foram embora perplexos.

Continuaram a visitar a tumba do tio Alcir por durante um mês. Depois disso, a vida das pessoas de sua relação voltou ao normal, e só no dia dois de novembro que a viúva e um filho voltavam para deitar-lhe flores e acendiam velas sobre o mármore de seu jazigo.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 11/05/2024
Código do texto: T8060805
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.