O motorista - CLTS 27

 

— Olá, tudo bem? Bem-vindo a cidade de Serra dos Cristais! Eu me chamo Charles Mansion e serei o seu motorista esta noite.

 

O dia estava chuvoso. Apenas acenei com a cabeça e entramos no carro às pressas, evitando se molhar. Ele ligou o veículo e saímos pelas ruas. Mal pude me recompor quando ele começou a falar desenfreadamente:

 

— Acho que você já conhece os comandos básicos para se locomover, interagir, pegar os objetos, ver os seus itens e se localizar no mapa. Mas caso ainda não saiba, basta inclinar o seu corpo para ir a tal ou qual direção, olhe para o seu bolso ou sua mochila para ver seus itens. Olhe o seu relógio ou o seu celular para ver o mapa e os objetivos que estejam ativos.

 

Aquela forma de falar me pegou desprevenido. Ele achava que estávamos em um jogo? Essa é a forma do pessoal aqui falar, alguma gíria que desconheço? Ou isso é alguma brincadeira?

 

Toquei rapidamente os meus bolsos para ver se tudo estava lá: carteira e celular. Tudo certo. A minha mochila estava largada no banco traseiro.

 

— Como você pode ver, os gráficos são muito bons! Percebo que, quantos mais jogadores entram, mais realista e detalhado fica. Nesse tipo de jogo você é livre para fazer qualquer coisa. Quando eu digo qualquer coisa, é tudo mesmo! No início é meio travadão, chato até. Isso acontece porque você ainda não tem as habilidades necessárias para fazer as diversas atividades. Você tem que conhecer as pessoas certas para ter acesso aos conhecimentos e recursos necessários para avançar no jogo. Mas não se preocupe, cola comigo que vai dar tudo certo.

 

Fiquei quieto, processando a forma de falar daquele motorista. Já conversei com muita gente com ideias e formas de se expressar diferentes, extravagantes, até. Mas, desse jeito, foi a primeira vez.

 

As construções antigas com arquitetura portuguesa neocolonial cruzavam a janela. Prédios de cimento e grandes janelas de vidro com fachadas desgastadas e letras em neon desfilavam pela noite, junto com os andarilhos noturnos.

 

— Vamos sair aqui do centro da cidade. Esse local é perigoso, principalmente à noite. Tem muitos jogadores que gostam de “tocar o terror”, porque nesse horário, há poucos NPCs nas ruas e a inteligência artificial da polícia fica menos atuante, mais relaxada. Entende?

 

Deve ser o jeito dele se expressar. Deu para entender que não era seguro ficar ali no centro da cidade. Minha curiosidade só aumentava. Vamos ver no que isso vai dar.

 

Respondi com um murmúrio positivo, e ele continuou:

 

— Eu mesmo já eliminei muitos por essas ruas e becos por meio de socos, tiros, facada, queimei, explodi... enfim. Já toquei o terror também, mas, logo depois do primeiro crime, já percebi que o jogo fica mais lento, dá umas travadas, não importa se você tenha usado ou não algum estimulante, se é que você me entende. Daí, quando a polícia te pega, você perde todos seus armamentos e itens “ilegais”. Paga a “fiança” e sai pela porta da frente. Mas daí você precisa ter o contato de um advogado bom. Senão, vai para o presídio e vai ficar lá por um bom tempo!

 

Ele soltou uma risada maquiavélica. Não sabia se pedia para ele parar o carro, se calar ou ficava para ver até onde aquele discurso iria dar.

 

Será que ele estava me “avisando” em tom de brincadeira que era algum tipo de assassino ou fora-da-lei? Mas, se ele realmente quisesse fazer algo contra a minha pessoa, isso seria a última coisa que diria. Não fazia sentido. Talvez isso seja uma piada de mal gosto ou algo semelhante. Já topei com gente com formas de se expressar bem mais ríspidas e ideias bem mais tortas.

 

Ele simplesmente não parava de falar.

 

— A mesma lógica acontece quando você morre. Você precisa conhecer um bom médico ou ter acesso a certos cartões que te dão um atendimento VIP. Percebi que alguns não duram a primeira morte porque eu não os vejo mais. Acho que desistem do jogo, o acham muito difícil, talvez. Outros, como eu, já perderam as contas de quantas vezes fomos ao hospital pelas mais diversas causas, perdemos alguns dias lá, internados, mas logo estamos de volta. Quanto maior o dano e maior o estrago, maior o tempo que se fica internado.

 

— Complicado, né? — comentei genericamente. — O que tem de bom para fazer aqui?

 

Por quanto tempo ele irá manter esse papo de “jogo”? Será que é a forma dele dizer que essa é a dinâmica daqui, ou as regras? Talvez.

 

— Se você quiser tornar esse jogo um simulador de vida real, cuidado para não ficar viciado. As pessoas fazem faculdade até! Conheço gente que casou e teve filhos aqui! Nem sabia que dava para fazer isso! Se relacionam com os outros jogadores tranquilamente, tem rotina de trabalho e estudo. Tem aqueles que simplesmente gostam de praticar esportes, apreciar as belas paisagens que tem por aqui. Sinceramente, não sei o que esse pessoal vem fazer aqui. Não vejo graça nisso. Depois de um tempo, eles simplesmente somem. Acho que deve ficar tão chato que nem eles mesmo aguentam.

 

Dissociação ou Esquizofrenia? O que o levaria a ter essa linha de raciocínio? Agora, ele está apenas me descrevendo atividades cotidianas pelo seu ponto de vista.

 

— Mas assim, tem algo mais interessante? Sou uma pessoa de mente aberta. O que você sugere?

 

— Caso você goste de balada e queria ter acesso a um conteúdo mais adulto, é só ir para a região do Porto. Por acaso estamos passando por essa área, basta olhar pela janela. Festas, mulheres, homens e outras coisas a mais que até Deus duvida tem lá! Eu mesmo gosto de dar uma variada por lá, se é que você me entende. A depender do seu gosto, conhecendo as pessoas certas e com dinheiro o suficiente, dá para fazer um estrago!

 

A região era um amalgama de área portuária, industrial e comercial. Pessoas usando roupas chamativas, elegantes e estranhas passeavam por entre as ruas entrecortadas com regiões iluminadas pelos postes e pelas placas das casas noturnas em contraponto aos locais mais escuros e becos sombrios. Dava para ver os pontos luminosos dos navios ancorados por entre as titânicas plantas industriais. Havia alguns sujeitos tatuados encostados na penumbra. Ao ver meus olhos focados nessas figuras, ele falou:

 

— Se tem interesse em uma pegada mais voltada para a ação, é melhor conversar com os membros das gangues. Mas toma cuidado, você tem que ser apresentado por alguém antes. Caso contrário, eles roubam tudo o que você tem e te espancam. Daí, lá vai você para o hospital ficar de molho por uns dias. Ainda nessa linha você pode ser um mercenário ou assassino de aluguel, mas as missões são quase sempre as mesmas: eliminar alvos e não ser pegue. Depois de um tempo fica monótono, a gente perde o interesse.

 

Encolhi-me instintivamente. Ele estava falando abertamente de atividades ilícitas como se fosse uma coisa banal. Meu coração disparou, uma gota de suar frio desceu pela minha testa. Minha vontade era pular do carro e pedir ajuda ali mesmo, mas decidi ter um pouco mais de calma. Afinal, ele estava seguindo o caminho indicado pelo GPS. Por acaso, passava por ali uma viatura policial em patrulha. Meu olhar cruzou diretamente com o do policial que dirigia a viatura. Aquele olhar sério e sisudo, atento, me passou uma estranha sensação de segurança.

 

“Foco, estamos próximos de chegar ao nosso objetivo”. Pensei para me tranquilizar.

 

— Se você gosta de brincar de mocinho, pode trabalhar para a polícia, paramédico, bombeiros e até para o exército. Com eles as missões são sempre as mesmas: combate às gangues, investigações criminais, resgate de pessoas feridas e/ou desaparecidas ou mesmo entrar em conflito armado contra grupos terroristas. Não deixa de ter ação, mas não curto muito. Muita disciplina, hierarquia, responsabilidade, blábláblá... não é para mim.

 

“Só deixar ele falar. Uma hora vamos chegar aonde precisamos ir e isso vai acabar". Mentalizei.

 

— Entendo... — respondi vagamente.

 

Logo estávamos cruzando uma região com altos prédios com imponentes fachadas de vidro. A arquitetura arrojada dava um ar futurista para aquela região. A chuva tinha dado uma trégua, permitindo que a luz da lua iluminasse e fosse refletida pelos falsos espelhos, criando um tipo de iluminação única naquela quadra.

 

— Se você se sente atraído por ficção científica, existem algumas megacorporações que trabalham com pesquisas de ponta como: Inteligência Artificial, Robótica Avançada, Engenharia Genética e Engenharia Aeroespacial. Quando você menos espera, você se vê em meio a laboratórios, fábricas e tem que lidar com seres que é até difícil de se imaginar. Ouvi dizer que há até missões em que você pode viajar para o passado distante, na época medial e lutar contra dragões e defender reinos para normalizar o fluxo da história mundial. A equipe que fez o jogo foi bem criativa nesse quesito! Só não vá “morrer” durante essas campanhas. Tem gente que vai e nunca mais volta.

 

Olhei par ao GPS mais uma vez e percebi que o meu destino ficava próximo dali: um hotel muito usado por quem ficava alguns dias a negócio na cidade. Ele era de qualidade mediana, o suficiente para a minha necessidade.

 

Era difícil esconder a minha ansiedade, tamborilava meus dedos na porta e balançava a perna freneticamente enquanto tentava controlar a minha respiração ofegante que teimava em deixar o vidro da janela embaçado.

 

Aos poucos, as imponentes fachadas eram substituídas por prédios comerciais mais simples, becos e algumas praças que, apesar da manutenção deixar a desejar, guardavam uma beleza melancólica. Era possível ver a catedral ao fundo, com suas gárgulas e estátuas góticas que brincavam no limite da imaginação e do medo.

 

— Se tem predileção por uma pegada mais para o terror e o suspense, pode trabalhar como detetive ou investigador paranormal. Existem algumas revistas aqui que pagam um bom valor para receber fotos, vídeos, relatos e investigações sobre fantasmas, monstros, alienígenas e coisas do tipo. Mas, às vezes, você pode topar com um serial killer ou mesmo lidar com organizações que fazem oposição a esse tipo de atividade. Por isso, cuidado! Alguns jogadores que foram por esse caminho não foram mais vistos.

 

Sorri pelo canto boca e exalei o ar pelas narinas: — Quem sabe?

 

— Como sou um jogador bem experiente, tenho que te avisar uma coisa: muito cuidado quando for lidar com essas duas últimas áreas temáticas! Conheci jogadores que foram abduzidos e nunca mais foram vistos. Jogadores que foram encontrados após esses encontros e que o seu avatar foi tão profundamente modificado ou dividido em partes que nunca mais foram vistos on-line. Ouvi dizer que uma pequena parcela dos que foram abduzidos tiveram acesso a mundos tão diferentes com uma diversidade tão grande de seres humanoides que dá um outro nível de interação e jogabilidade. Mas, como efeito colateral, nunca mais podem voltar para o ponto inicial, o planeta Terra, nem para a região de Serra dos Cristais, mesmo com tudo o que acontece aqui e a diversidade de coisas que se tem para fazer.

 

O carro parou, pois, cheguei ao meu destino. Fiz o pagamento a Charles e antes de me despedir, falei:

 

— Você tem certeza de que isso é um jogo? Como se sente em relação a isso?

 

— Isso é muito mais que um jogo, é uma verdadeira obra-prima! Poderia ficar aqui pra sempre! — emitiu um sorriso estranho de canto de boca.

 

— E se isso tudo for real?

 

Ele me olhou nos olhos e respondeu:

 

— Como a nossa mente difere a realidade de uma mera alucinação? — piscou para mim com um dos olhos enquanto voltava para dentro do carro.

 

Fechei a porta do veículo e fui para o meu quarto. Charles seguiu seu caminho com o taxi.

 

* * *

 

Enquanto estava imerso no programa, o meu maior temor era ser desconectado antes de coletar os dados necessários para fazer a análise.

 

Após me desconectar da simulação, tive que apresentar o meu relatório sobre o condenado Charles Mansion.

 

Embora a neurosimulação seja imperceptível para muitos, alguns racionalizaram a experiência como se fosse um jogo.

 

A sentença de neurosimulação compulsória faz com que o indivíduo viva e experiencie de diversas formas as situações relacionadas com os crimes que cometeram pela perspectiva da vítima de seus atos. Outras abordagens e simbologias podem ser utilizadas a depender da psique do experimentando. De qualquer forma, é necessário um período de adaptação e as simulações são rodadas com algumas alterações até que haja a internalização do aprendizado pelo experienciando. Uma vez verificado que o indivíduo está apto para a reintrodução ao convívio social, é retirado da simulação por meio de sonhos, até ao retorno completo à presente realidade.

 

Contudo, em alguns indivíduos como Charles Mansion estão além da recuperação ou talvez precisem de um lapso temporal muito maior para serem recuperados. De acordo com o seu processo condenatório, ele teve um surto psicótico que resultou no óbito de quinze pessoas em um tiroteio na universidade. Talvez pelo fato de ser usuário de drogas pesadas aliado ao fato de, quando jovem, ser viciado em jogos eletrônicos a ponto de ter sido internado por exaustão após ficar mais 72h jogando initerruptamente, seus neurotransmissores estejam tão desbalanceados que não consigam distinguir a realidade da simulação, ou dos diferentes níveis de complexidade das simulações usadas para a reeducação, embora esse seja o caso de menos de 1% dos experimentandos.

 

Assim, o presente relator vota pela manutenção de Charles Mansion no programa de neurosimulação compulsória por tempo indeterminado e, caso na próxima verificação não seja verificada melhora, sua mente criativa seja usada como servidor dedicado para o processamento da neurosimulação em rede.

 

Temas: prisão e alucinação.

 

Manassés Abreu
Enviado por Manassés Abreu em 13/05/2024
Reeditado em 13/05/2024
Código do texto: T8062320
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