Pior do que a morte — CLTS 27

Cecília estava sentada no banco de pedra do jardim, observando o pôr do sol. Quantas vezes havia estado ali naquela mesma hora, diante de tão esplêndido espetáculo sem se dar conta?

Os pássaros voavam para seus ninhos buscando abrigo, o ar esfriava e a luminosidade ia diminuindo gradualmente.

Cecília sentia que era a última vez que estaria ali, naquele jardim tão querido e tão odiado ao mesmo tempo.

O café forte e doce esfriava na xícara que segurava com firmeza, enquanto seus pensamentos voavam para um passado nem um pouco distante.

Dias de tédio, de calmaria. Ah, o tédio. Tão odioso. Nada poderia ser pior. Certo? Reclamava internamente sobre toda a falta de animação, sobre a mesmice, a rotina perpétua de sua vida.

Não ousava deixar escapar de seus lábios o que lhe ia na alma, então sentava naquele banco, daquele jardim e maldizia a vida pacata e chata que levava.

A casa eternamente a ser organizada e limpa, as crianças a serem cuidadas e educadas, o marido que deveria agradar. Nenhum tempo só para ela. Ou melhor, nada que pudesse fazer com o tempo que tinha.

Um vento frio soprava espalhando o aroma das rosas, no jardim já adormecido. E o brilho da lua tornava fantasmagórica a sombra das flores.

Cecília chorava em silêncio. As lágrimas escorrendo até o pescoço. Não se incomodava em limpar. A tão sonhada quebra da rotina, o inesperado, a novidade, havia chegado, mas não como ela queria.

É sempre assim. Queria que algo mudasse, mas não sabia exatamente o quê. Não se importava. Qualquer coisa serviria se a tirasse daquele marasmo.

Levantar e deitar no mesmo horário, fazer de novo e de novo sempre as mesmas coisas. Viver presa como em uma roda de hamster, correndo para lugar nenhum.

Agora tudo o que queria era a segurança do conhecido, a firmeza da roda, a paz de não precisar ir a lugar nenhum. Mas era tarde demais. Tarde demais.

As estrelas no céu pareciam grãos de açúcar espalhados em um tabuleiro e a lua tão brilhante como nunca vira. O perfume das flores lembrando o último cheiro que sentira nele.

Seu marido, que ela culpava secretamente pela vida presa à rotina esmagadora. O homem tão pacato, sensato, pés no chão que priorizava a segurança à diversão e à adrenalina.

Aquele em quem ela poderia confiar de olhos fechados e abertos, que morreria por ela e pelas crianças, mas que no final não conseguiu viver por elas.

Totalmente fora do roteiro, da rotina, do esperado, seu coração se recusou a continuar batendo. Simples assim. E ela ainda podia sentir o amargo na boca quando entendeu que ele não existia mais.

O choque, a falta de reação, a total descrença, e o vil sentimento de que pelo menos alguma coisa mudaria.

Agora, recostada naquele banco do jardim, observando com atenção o céu noturno, ainda segundo a xícara de café , Cecília daria tudo, para poder voltar no tempo.

Naquele tempo em que ia para o jardim só para imaginar uma nova vida livre e agitada, cheia de emoções e variedades. Gastava seus momentos sozinha de forma egoísta, esquecendo de olhar em volta. Ignorando a beleza da vista.

A singeleza do jardim que ele construira para ela, do banco de pedra que ele gastara horas e horas para deixar perfeito. Não conseguia apreciar as espécies de flores que ele havia escolhido e espalhado ao redor com habilidade e beleza. Não prestava atenção ao ar cheiroso e fresco, nem ao brilho da lua nas pequenas poças de água da chuva.

Mas agora era diferente. Tudo havia mudado. Ele não estaria mais lá com as crianças. Com ela. Ela não poderia mais ficar com a casa. Voltaria para sua cidade natal. Para junto da família que deixou há muito tempo.

Uma vida nova a esperava. Cheia de emoções sim, mas que tipo de emoções? Tristeza, luto, ansiedade, medo. Teria que recomeçar. Sozinha. Tendo que criar as crianças que tanto sentiam a falta dele. Se virar para ser suficiente para elas.

Seria suficiente para si mesma? Se contentaria com as pequenas e maravilhosas alegrias da vida? Conseguiria enxergar o contentamento da rotina? A maravilha da vida sem grandes emoções?

Sentiu um arrepio quando uma rajada de vento balançou as roseiras e espalhou pétalas de rosas brancas. Sentiu que ele estava lá com ela. Que colocava as mãos em seu ombro e tentava tranquilizá-la. Sabia que ele estaria lá, se pudesse.

O vento começou a se insinuar de forma mais feroz, formando redemoinhos de pétalas e folhas. Cecília olhou para o céu, antes aberto, agora forrado de nuvens negras, prestes a despejar suas lágrimas.

O tempo sempre parecia se adequar ao seu estado de espírito. Ou seria o contrário? Logo lágrimas se misturaram com a chuva, ambas abundantes.

O que mais doía era não ter aproveitado o tempo que teve. Não esteve realmente presente, de corpo e alma. As lembranças se embaralhavam desfocadas, não sabia mais o que era real e o que era fantasia.

— Mamãe, você está se molhando.

A criança parada na frente de Cecília parecia flutuar, de pijama, segurando um urso de pelúcia. Ou seria um gatinho. Eles tinham um gato?

— Eu sei, meu anjo. Não tem problema, logo tudo vai secar.

Precisava ser forte. Por ela mesma e pelas crianças. Elas precisavam que estivesse bem. Mas estava quebrada, além da possibilidade de conserto.

Relâmpagos clareavam o céu revelando sombras de um passado distante. E lá estava ele. Caminhando em sua direção. Segurando o coração nas mãos. Que insistia em não mais bater.

— Por que você me matou?

Cecília ficou feliz de poder vê-lo novamente.

— Algo precisava mudar. — Respondeu sem ânimo.

— Mas por que tudo precisa sempre mudar?

Também se fazia essa mesma pergunta. E nunca achava uma resposta.

— Se nada mudar, tudo continua exatamente igual. E a vida se torna insuportável.

Ele chorou. Sabia que não mais voltaria, então deixou o coração inerte no colo de Cecília e desapareceu.

A dor era insuportável. Por que tivera que bani-lo de sua vida? Porque alguma coisa tinha que mudar. Mesmo que a mudança rasgasse seu coração ao meio.

— Mamãe, estou com frio.

A criança continuava lá, sempre lá.

— Vai dormir, docinho. Deita aí no chão, isso, toma seu cobertor.

Estendeu seu casaco sobre ela. A chuva cada vez mais pesada dificultava a respiração. Mesmo assim ela não saia daquele jardim. Cantava uma canção de ninar e acariciava o coração dele que ainda jazia em seu colo, manchando de sangue seu vestido branco.

O que mais ela poderia fazer? Ela estava sozinha no mundo. Mais ninguém se importava com ela. Um a um foram abandonando-a sem piedade.

E aquela casa era mais uma prisão. Sim, com suas grades em todas as janelas. Seus muros altos, cobertos por arame farpado e cacos de vidro. Como se ela tivesse mesmo a intenção de fugir. Para onde iria?

Sua família tinha a deixado lá há muito tempo. Ela só tinha aquele jardim. Tão amado e tão odiado.

A ventania continuava uivando. Em concordância com a sua dor. Seu pesar. O peso de não ter ninguém mais a quem amar. Os relâmpagos estouravam no céu e iluminavam a escuridão.

— Mamãe, estou com fome.

A criança encharcada e suja, chupando o dedo, segurando seu bichinho indefinido não dava trégua. Nunca.

— Vem aqui, meu amor.

Com as mãos sujas do sangue do coração dele, Cecília segurou a criança bem apertada contra o peito.

— Já vai passar. Nada dura para sempre.

Sua alma estava em carne viva. Sabia que não poderia cuidar das crianças. Não mais. Não sem ele. Elas também precisavam partir.

Mas ela não as mataria, é claro. Não era uma assassina. Elas ficariam muito doentes. Com certeza a chuva não faria bem a elas.

Olhou para a que dormia a seus pés coberta de lama e a outra em seu colo. E assistiu sua desconstrução. Antes coradas e sadias, agora pálidas, sem brilho, os olhos baços e vazios.

A pele ressecando e os ossos se decompondo. Esvaíram-se na água da chuva. Pronto. Estava feito. Voltou a ficar completamente sozinha, como tinha que ser.

Suas mãos esmagaram o coração dele até que não restou mais nada. Tudo se fora. Não havia mais vestígios daquela vida.

Podia enfim inventar outra. Onde tudo seria diferente. Sem tédio, sem rotina, sem prisões.

A chuva estancou de repente. E a lua voltou a brilhar. O jardim continuava o mesmo. Sempre igual. Único lugar em que podia viver livremente.

— Cecília, querida! Vai pegar um resfriado ficando aqui fora até tão tarde. Vamos entrar.

Maria foi ao seu encontro, como sempre, pegou a xícara que ainda estava bem apertada nas mãos de Cecília e jogou fora o resto de café frio.

— Eles se foram. Meu marido, meus filhos. Todos se foram.

— Eu sei, querida. Mas eles sempre voltam, não é mesmo? Amanhã vai ser outro dia, um dia diferente e eles estarão lá. Sempre estão. Não é mesmo?

A voz de Maria era calma e suave. E suas mãos ajudaram Cecília a voltar para dentro, tomar seus remédios e deitar em uma cama ao lado de várias outras camas, todas iguais.

Onde outras mulheres, assim como ela, estavam mergulhadas tão profundamente em suas mentes, que não entendiam mais nada do que se passava do lado de fora.

Cecília sentiu a paz da rotina ao fechar os olhos e embarcar em um sono sem sonhos. Não sabia que surpresa teria ao amanhecer. E antes que o sono vencesse a ideia de que tudo era ilusão se insinuava, mas ela a rejeitava, porque se fosse mesmo, não restaria mais nada.

E sua vida seria eternamente igual e vazia. E isso sim, seria pior do que a morte.

Tema: Alucinação e Prisão

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 14/05/2024
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