A TRAVESSIA - CLTS 27

Há muito tempo que ele já não prestava atenção na paisagem monótona que se repetia fora da janela do ônibus. Seus pensamentos estavam ora vagos, ora caóticos. Cada quilômetro percorrido levava-o para mais longe de uma vida que não havia dado certo. Para trás ficavam um emprego mal remunerado, uma cidade sem graça e, o pior de tudo, uma separação conjugal onde ele confirmou, para variar, o quanto suas habilidades emocionais eram inúteis e imaturas.

As melodias doces e melancólicas em seu fone de ouvido fazem-no mergulhar em um estado emocional que oscila da autopiedade a uma intensa raiva de si mesmo. Por que ele tinha de ser daquele jeito? Ele queria chorar, porém sente que não tem forças para isso. “Se eu pudesse sumir isso seria a melhor coisa que me aconteceria, o mundo ficaria melhor sem mim.”

As notas musicais penetram sua epiderme e sua existência arrancando-lhe um profundo suspiro. Uma vida inteira, um momento fugaz e um lapso qualquer clamam por audiência. "Wish you were here" era uma das músicas favoritas dela. Ele nunca mais escutaria Pink Floyd ao seu lado e não tornaria a sentir a intensidade dos olhos negros de Isadora pousando sobre seu corpo magro. Algo lhe diz que nem as lembranças evocadas ou as músicas repicando em seus ouvidos são capazes de fazer emergir aquilo pelo qual seu coração clama.

Atravessar o país para tentar recomeçar do zero esse era o seu plano. No fundo ele sabia que mesmo se mudando para o Polo Norte ou até para Júpiter, ainda assim, continuaria se complicando todo e sempre deixando tudo pela metade. Ele precisava fazer alguma coisa. E fez. Pegou um ônibus para uma cidade três mil quilômetros distante na esperança de que isso o ajudasse a se transformar em alguém um pouquinho melhor.

O homem na poltrona ao seu lado possuía cara de mestre-cuca e bem que tentou puxar conversa, porém logo percebeu que ele não estava a fim de papo furado. Duas ou nove palavras proferidas por ele deixaram claro que não havia entusiasmo de sua parte em entabular conversação com ninguém. Frustrado em seu intento o sujeito voltou a ler uma revista de esportes, não sem antes dirigir-lhe um olhar de irritação.

Os solavancos do ônibus associado às músicas irradiadas pelo fone em seu ouvido propiciavam uma sonolência gostosa. Quem sabe dormindo não esqueceria um pouco aquela sensação horrível que varria a sua alma.

*****

Tomás acordou com uma dor de cabeça aguda, achou que foi devido à posição em que ficou para dormir. Recusou-se a abrir os olhos de imediato já que ainda estava com esperança de voltar ao mundo dos sonhos, não havia, contudo, aqueles leves solavancos que lhe causavam sonolência. Sentiu que o ônibus estava parado e em silêncio. “Por que será que paramos? Devemos ter parado na estação rodoviária de alguma cidadezinha”.

Já plenamente acordado, pegou o celular para ver as horas. Ficou surpreso quando viu que eram mais de duas horas da madrugada. Ele havia dormido por quase dez horas! Olhou para o lado e viu que o homem com cara de mestre-cuca não estava mais ali. Deduziu que ele devia ter descido ou então ido ao banheiro.

Para passar o tempo pensou em ver fotos antigas em seu celular, desistiu porém. Talvez fosse melhor apagar qualquer registro de seu fracasso amoroso. Já que estavam parados decidiu que iria descer e andar um pouco para ativar a circulação, seus pés com certeza estariam inchados pela inatividade forçada.

Apenas a tênue iluminação dos spots acima das poltronas favorecia alguma visão para Tomás. Qual não foi a sua surpresa ao verificar que o ônibus estava vazio. “Todos devem ter descido”. Olhou pela janela, porém não conseguiu enxergar nada, pois estava muito escuro lá fora. Decidiu descer para ver em que lugar estava.

Sua respiração ficou suspensa ao perceber que o ônibus estava parado no meio da estrada. Não havia posto de gasolina, rodoviária, nem nada ao redor. Sem entender o que estava acontecendo andou em volta do veículo sem conseguir ver ninguém. “Onde estão os outros passageiros?” Sentiu seu corpo ficar tensionado em resposta àquela situação inusitada.

Tomás se deu conta de que estava sozinho em um ônibus parado no meio do nada. “Que merda foi essa que aconteceu? Para onde foi todo mundo? Por que só eu que estou aqui? Por que ninguém me acordou?” As perguntas sem resposta iam se acumulando...

Resolveu procurar alguma coisa dentro do ônibus que pudesse lhe dar uma pista do que poderia ter acontecido. Sentiu-se constrangido por ter que mexer em coisas que não lhe pertenciam, porém logo deixou esse pensamento de lado e revistou os assentos dos demais passageiros. Abriu bolsas e malas, entretanto não encontrou nada que pudesse lhe ajudar a entender o que estava acontecendo.

Decidiu ir até a cabine do motorista e tentar colocar o ônibus em movimento. Tudo em vão. Ele não era um bom motorista e nunca iria conseguir conduzir um monstrengo daquele tamanho.

*****

Sentado em um assento qualquer Tomás tentava organizar seus pensamentos. Era inegável que o medo já estava impregnando cada pedacinho do seu ser. Ele nunca havia sido um homem intrépido. Não seria agora, sozinho em uma estrada escura e deserta, que se transformaria no rei da coragem.

Não havia sinal em seu celular. No meio do nada onde estava era de se esperar que não houvesse sinal nenhum mesmo. Conectou o aparelho para carregar na entrada disponível no bagageiro logo acima de sua poltrona, tinha medo que ele descarregasse. Mesmo que não pudesse ligar para ninguém ele tinha que permanecer com ele carregado. No fundo alimentava uma esperança, bem pequena, que alguém ligasse...

Havia acontecido alguma coisa e isso já estava deixando-o nervoso além da conta. À medida que os minutos escoavam uma dúvida lhe assaltou: ele deveria permanecer no ônibus ou sair e tentar buscar socorro?

Decidiu que iria esperar o dia amanhecer. Tomou essa decisão principalmente quando percebeu que ainda não tinha visto nenhum movimento na estrada.

Seus pensamentos estavam desordenados. Ora sentia-se com medo por estar sozinho ali, logo em seguida mergulhava em uma espécie de arrependimento tardio por ter abandonado tudo. As horas avançavam...

“Não amanheceu!” “Meu Deus, o dia não amanheceu”. Olhando pela janela Tomás se deu conta que o sol não havia nascido. Já passavam de oito horas do que deveria ter sido uma manhã ensolarada. Tudo continuava escuro da mesma maneira que estava quando ele acordou.

As horas passavam. Deveria estar um sol forte agora, porém tudo o que havia era somente aquela escuridão.

Um dia inteiro transcorreu. Nem o sol surgiu e nenhum veículo de qualquer tipo apareceu.

Tomás decidiu que não poderia ficar ali para sempre. Era preciso fazer alguma coisa.

*****

Ele colocou em uma mochila algumas coisas que pegou nas bagagens de outros passageiros. Elas poderiam ser úteis em algum momento. Um canivete, três garrafas de água, barras de cereais, uma blusa bem grossa que poderia ajudar com o frio, uma caixa de fósforos e várias revistas, caso precisasse fazer fogo.

À medida que se afastava do veículo sentia que seu medo crescia. Mais de uma vez pensou em retornar para a segurança do ônibus. “Eu bem que poderia estar com Isadora agora, ela sim saberia o que fazer”. Amaldiçoou-se por pensar no nome dela. A verdade, no entanto, é que ela era a pessoa que ele mais queria que estivesse ali.

Tomás sentia-se o ser humano mais solitário do mundo caminhando ali naquela estrada deserta. A lanterna de seu celular propiciava que ele visse muito pouco do que se descortinava ao redor. Olhava para o céu e não divisava nada, não havia uma única estrela no céu.

A solidão que sentia parecia ter grudado em sua pele. Para ele aquela era a noite mais estranha de sua vida. Tentava encontrar palavras que lhe ajudassem a entender o que estava acontecendo, mas elas não lhe ocorriam.

A estrada aparentava ser plana e sem fim. Não percebeu árvores ou arbustos às margens dela, a única coisa que parecia haver era um imenso deserto. Pensou em sair dela e ver se havia algo próximo, qualquer coisa que pudesse lhe ajudar. Andou uns poucos metros fora dela, mas parou de súbito. E se houvesse alguma coisa lá fora? Algo que pudesse lhe causar algum mal. Decidiu continuar na estrada, pois lhe pareceu mais seguro, no entanto, agora constantemente virava-se para olhar atrás de si. E se houvesse alguém ou algo lhe espreitando?

“Será que nesse lugar tem alguém que possa me ajudar a entender o que está acontecendo? E se houver algo ruim escondido aqui?" Tomás vira-se repentinamente com medo de ver alguma coisa inominável, porém tudo o que ele vê é apenas aquela estranha escuridão.

Já estava andando há mais de uma hora e tudo parecia igual. Um céu sem estrelas, uma estrada asfaltada e o que parecia ser um imenso campo ao redor era tudo que Tomás conseguia divisar. Constantemente verifica a carga do celular, a possibilidade de ficar sem luz naquele lugar lhe apavora. Caminhava sentindo o medo lhe corroer por dentro quando parou de repente.

A estrada terminava em um paredão!

“Que merda é isso?” Aquela coisa inesperada deixou-o com medo ainda. O que estava acontecendo ali? Chutou e esmurrou aquilo que não deveria estar ali. Aproximou bem a lanterna do celular para ver melhor: não havia dúvida, era uma espécie de paredão sim. Sacou o canivete e se pôs a arranhar a superfície dele. Conseguiu fazer pequenos sulcos, no entanto, eles logo desapareciam e o paredão voltava ao normal.

O medo lhe dilacerava a alma. Sentiu vontade de correr e fugir dali, mas para onde iria?

Aquela estranha escuridão ameaçava devorar o pouco que restava de sua sanidade mental. Sentou-se no asfalto frio para tentar pensar melhor. Um turbilhão de coisas passou pela sua cabeça. “Será que estou morto? É assim quando morremos?” “Fica-se perdido em uma estrada escura para sempre?” “Será que eu estou sonhando? Que merda de sonho é esse? E por que eu não acordo?”

Olhou para o display do seu celular e viu que a bateria estava na metade. Ele tinha andado por mais de duas horas. Resolveu fotografar o que estava a sua frente e ao seu redor. Ele não sabia dizer por que estava fazendo isso. Tentou escutar um som qualquer, sem sucesso. O lugar onde estava era frio e silencioso.

Chegou a várias conclusões: ele não estava morto e nem sonhando, também não estava ficando louco. Começou a acreditar que se encontrava em algum lugar que simulava uma estrada. O ônibus parecia ser o mesmo em que havia embarcado, entretanto a rodovia terminava estranhamente em uma espécie de paredão. Onde ele estava afinal? Pensar essas coisas lhe deixou com raiva e isso gerou até um pouco de coragem nele.

“Alguém ou alguma coisa tirou um ônibus imenso e cheio de gente de uma rodovia”. “Para onde foram as outras pessoas?” Tomás começou a pensar em algo que pudesse lhe ajudar, caso saísse dali, a provar que não estava ficando louco. Afastou-se da estrada e juntou aquilo que lhe parecia ser capim e terra. Encheu com eles um pequeno saco que trazia em sua mochila. Feito isso, fez meia volta e iniciou uma caminhada de retorno ao ônibus.

O pior dos seus medos se confirmou. Seu velho celular descarregou. Em desespero ele lançou mão das revistas que trouxera e conseguiu improvisar uma tocha. Com o coração aos pulos ficou rezando para que o veículo não estivesse muito longe.

Cada metro vencido dentro daquela escuridão foi de um terror indizível. Seus olhos em desespero tentando ver as luzes distantes dos faróis do ônibus. “Tomara que o fogo não apague, tomara que a fogo não apague”, era tudo o que a sua mente conseguia dizer.

Passos apressados e ouvidos atentos ao menor sinal de algum som anormal. Tomás presumiu que já deveria ter visto o ônibus. Afinal onde estava ele? “Meu Deus, onde está o maldito ônibus?”

Ele estava enganado ou havia percebido o rápido pulsar de uma luz muito distante de onde estava? Pouco tempo depois um outro flash. Seu coração dispara com a possibilidade de algo romper aquela escuridão. Que coisa seria aquela? De onde ele tirou a ideia que um raio de luz poderia ser algo bom?

Um alívio gigantesco percorreu seu corpo de cima abaixo quando finalmente enxergou as luzes do ônibus. De maneira atabalhoada, quase correndo, aproximou-se do veículo, porém havia algo errado... Elas estavam intensas demais! As luzes estavam muito fortes, ofuscando sua visão.

Lentamente ele vai se acostumando com aquela intensa luminosidade. O estranhamento da escuridão foi sendo aos poucos substituída por formas que seus sentidos reconhecem. Uma estante com alguns poucos livros, um quadro em uma parede...

Atordoado, ele olha ao redor e reconhece as paredes descascadas de seu antigo quarto. Tudo está revirado. Roupas pelo chão, velhas revistas de esporte que ele colecionava espalhadas, um canivete junto à parede, uma planta que fora arrancada de seu vaso e que agora jazia jogada em um canto, garrafas de água...

As luzes vão ganhando contornos cada vez mais regulares até cederem lugar a coisas muito parecidas com rostos. Sim, rostos familiares!

-Ele está retornando. Graças a Deus! Pensei que não sairia mais disso...

- Olha, isso não é muito comum, mas as vezes acontece de um quadro depressivo vir acompanhado com episódios de alucinação. Vou prescrever um antidepressivo e um antipsicótico para ele e acho bom fazer psicoterapia também. Você tem que garantir que ele siga um tratamento.

Ainda atordoado Tomás reconhece Isadora. Ao seu lado está Antônio, o irmão dela psiquiatra. Ambos estão assustados.

- Você sumiu por vários dias, deixou todo mundo preocupado. Encontramos você aqui falando um monte de coisas sem nexo e com uma revista pegando fogo em sua mão.

- Isadora... – É a única palavra que vem em sua mente e que ele mal consegue pronunciar.

- Pelo amor de Deus, o que está acontecendo contigo? Você está com uma aparência péssima. Vamos abrir essa casa, deixar o sol entrar, arejar um pouco que isso aqui está com um mau cheiro terrível. Está na hora de você voltar a viver...

Tema: alucinação

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 14/05/2024
Reeditado em 15/05/2024
Código do texto: T8063156
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.