BALADA DOS PECADORES

“Que frio terrível... sinto meus ossos doerem, como se estivessem a ponto de se quebrarem dentro de minha carne...Ah... fome! Sede!... que vazio...” Pensava ele enquanto tentava se encolher. As pernas unidas, os braços envolta dos joelhos, a cabeça trêmula sobre todo o corpo, era como se sentia. O estômago doía como nunca, e a fome parecia durar semanas, a sede deixava os lábios secos, a saliva grossa e tão pouca dentro da boca que ainda estava repleta de pequenos cortes. Talvez fossem causadas pelo frio, mas nem mesmo ele sabia como as conseguira. Havia momentos em que o sangue escorria e um gosto amargo atravessava sua garganta e assim vomitava algo que nem mesmo podia dizer o que era. Liquido verde e amargo. Era assim há semanas, ou pelo menos julgava ser semanas.

Resolvera erguer-se, a pista perdia-se na neblina a sua frente, assim como o céu, e o mundo as suas costas. Tanta solidão sentia aquele homem. Pensou em caminhar, e ainda que o frio parecesse domina-lo, ora a fome e a sede falavam mais alto e como um animal selvagem lutava bravamente pela própria vida. Mãos e pés o auxiliavam pelo estrada, como um bicho curvado, com sés trapos bailando, percorria aquela cidade vazia. Ele e a neblina fria. Prédios vazios, tudo era nada. A mente se enchia de pensamentos confusos e muitas vezes parecia doer. Nunca aceitaria aquela realidade, e sua mente não produzia mais sonhos, tudo se resumia a um estranho desespero, ora apático, ora insuportável. “Sede...fome...” era o que diziam, ou pensava ele que aquilo pudesse ser um sinal de razão dentro daquela besta que se tornava a cada dia. Ainda que só havia de racional as palavras “Sede” e “fome” que se formavam em sua mente.

- Solidão..

-Socorro!!!

- Pai!...

- Deus!!

Lamurias acompanhadas de pequenas sensações de toque era o que sentia às vezes, durante suas “caçadas ao nada”, mas o rosto, rápido e desesperado procurava pelo sinal de vida, mas nada via. Apenas os prédios vazios, as casas solitárias e a neblina que tanto o envolvia. Ele chorava nessas horas, se jogava ao chão como criança, e pequenas feridas do corpo se abriam. Junto ao sangue vinha o pus amarelado. Mas uma vez ele chorava, gritava aos céus como a besta indignada que se tornava, e assim o sangue lhe vinha amargo aos lábios e novamente o vômito atravessava a garganta após contorcer suas vísceras, e o liquido verde manchava a esburaca rua da cidade vazia. Ele caia sobre o chão molhado e olhava o céu, ou pelo menos a neblina que vivia sobre ele e então sonhava com o céu estrelado lá em cima, e pedia aos que lá moravam por misericórdia. Encolhia-se de frio e respirava profundamente sentindo cada dor infeliz que seu corpo lhe proporcionava. Podia lembra-se dos pais, dos amigos verdadeiros, da mulher que amou, podia até mesmo ver seus sorrisos. As lágrimas voltavam, e como num ciclo eterno e terrível, a dor no coração voltava como uma flecha impiedosa e novamente gritava aos céus. Novamente caia sobre o chão e as feridas doíam lambuzadas em seu vômito, e mais uma vez ele expelia aquele liquido esverdeado.

Chegou o dia não se importava mais com a fome, com a sede ou o frio. E ainda que as dores ficassem sempre tão intensas como no primeiro dia naquela desgraça, ele passou a correr, e como o bicho que havia se tornado, mãos e pés apoiados na terra. Corpo curvado. Mas nunca encontrava comida ou água, nem gente que o visse, nem besta. Não se lembrava mais das pais, dos filhos, da mulher que amava ou muito menos dos amigos queridos. Apenas corria, como se farejasse algo que nunca pudesse encontrar, talvez fosse a esperança o últimos dos sentimentos que ainda vivia dentro daquela besta. Sempre correndo pela cidade vazia.

- Mãe!!!

-Onde eu estou?

- porque Deus?!

- Juliana?! Juliana é você?!...Não faz isso comigo!...

Lamurias. Sempre elas o perseguindo, sempre seguidas daquela sensação que agora parecia tão desagradável. Era como se estivessem todos uns dos lados dos outros, mais ainda assim sozinhos. Mas ele não pensava mais nisso. Não pensava. Até o dia que ouvira uma voz grave vindo dos céus.

- Venha até mim criatura!. Voz forte, que lhe pareceu soar como uma ordem. Uma ordem que necessitava ser atendida a qualquer custo. Suas pernas e braços cessaram, e girou lentamente a cabeça enquanto os olhos tentavam procurar aquela voz. Ele não sentiu mais frio e nem dores por frações de segundos que lhe pareceram um paraíso. Não falava mais, apenas emitia grunhidos estranhos com a boca. Os dentes pareciam grandes demais para boca pequena. Tocou o prédio a sua frente, concreto frio. Mas dominado por uma vontade que nem mesmo parecia a sua, o subiu. Não pela porta, nem mesmo havia pensado em procurar por ela, ou por escadas. Agora ele era um besta. E como tal, subira como uma aranha, seus pés e mãos já tão feridas pareciam cravar na estrutura, enquanto suas unhas caiam e o sangue escuro e grosso escorria cimento abaixo.escalou até que seu corpo invadiu a neblina que antes escondia o mundo a sua volta, agora ela sufocava seus pulmões, estufava-os dentro do peito, podia até mesmo ouvir o trincar da caixa torácica, as costelas tentando ultrapassar a pele. O coração rápido. Mas ele continuou, ainda que a dor lhe fizesse gritar e gemer, e os ecos de seus próprios sons o atordoassem junto da dor, ele continuou. Logo não havia mais janelas. A parede parecia mais úmida e lisa pelo lodo acumulado, e um liquido fétido começou a escorrer, o odor de carne putrefata. Mas a sede pareceu falar mais alto. Passou a lamber estrutura lodosa e podre, mas dessa vez não houve lágrimas, apenas um patético alivio. Mas ainda assim seus dedos continuaram a atravessar o cimento, e sua escalada avançava cada vez mais. E pouco a pouco o cimento tornou-se pedra e a neblina se desfez como num piscar de olhos. A besta finalmente havia terminado, mas não via o topo de um arranha céu, mas sim estranho pântano. Ao olhar para trás não havia mais a parede que subira. Apenas lama que afundava engolia seus pés feridos. Quanto mais avançava, mas alagado ficava o terreno, sempre com aquele odor de carne podre que o fizera vomitar tantas vezes, e outras e mais outras. Arvores contorcidas e repletas de cipós junto a serpentes distintas sobre os galhos enfeitavam a paisagem infernal, um céu escuro que ora ou outra enviava trovões que encontravam a terra e reluzia todo aquele terreno macabro. E como bicho arisco, caminhava lentamente, desconfiado de qualquer som. Sempre distantes, mas sempre assustadores. Gritos inúmeros que cortavam aquelas terras. Mãos e bocas surgiam do fundo da lama e agarravam seus pés e o desespero o vazia chuta-las como vermes e correr enquanto ouvia seus gemidos abafados que vinham de dentro da terra. Mais gritos o aterrorizam naquela noite eterna, vinham como os trovões, sem qualquer aviso. E ele corria como a besta arisca que ainda era.

Subia em arvores e gritava como todos os outros, enfiava as mãos dentro da densa água escura, e retirava a lama, olhava-a e enfiava dentro da boca ferida e repleta de dentes deformes. Tudo para matar uma sede desesperante que percorria seu corpo. A besta que só se guiava pelos instintos. O homem parecia ter morrido dentro dele, agora era só restava o monstro.

Certa vez caminhava como sua eterna caça ao nada. Foi quando encontrara um enorme lago borbulhante, pedras agudas surgia como pontas de lanças do meio da água. O calor emanado parecia ser o responsável por incendiar eternamente as arvores ao redor, e como num teatro de horrores, pessoas queimadas, com seus corpos fervendo pareciam dançar naquelas águas, gritando por uma eterna misericórdia que até mesmo aquela besta sabia nunca existir. Um deles o vira. Correu para seu encontro, com passos cambaleantes enquanto erguia os braços de carne lisa e repuxada, como se não houvesse distinção entre pescoço, cabeça e tronco, tudo uma coisa só, com uma cor amarelada que reluzia sobre as chamas das arvores. A besta gritou, e gritou mais uma vez. Mas o infeliz não parecia se importar com quem poderia ser. A besta não conseguiu fugir do asqueroso homem que parecia um boneco de cera, seus olhos pareciam não existir mais, apenas uma massa grossa e amarelada a cobria, e a boca não passava de um buraco escuro no centro da cara. Ele tentou abraça-lo enquanto pedia por ajuda, por salvação. Mas a besta não mais compreendia, ou não se importava. Cravou-lhe os dentes enormes naquela carne repuxada e esbranquiçada. Foi quando sentiu o sangue atravessar a garganta e alivia-lo de alguma maneira. A sensação da carne, ainda que estranha e lisa preenchendo sua boca apenas lhe encheu de um prazer misturado ao nojo, mas ainda assim satisfatório. O boneco de cera o abraçou. A garganta pareceu fechar-se por um instante, e lentamente abriu-se, e apesar da dor, arrancou-lhe um pedaço de carne do pescoço da sua infeliz vitima. Mastigou com avidez aquela carne bizarra. O boneco tentou fugir, mas não pôde. Não se consegue vencer o instinto de um caçador faminto?. A besta teve o lado de sua face rasgados no momento em que abrira toda sua boca, como um monstro mordeu-lhe a nuca do boneco. Podia sentir a coluna, pequenos ossos que facilmente podiam ser triturados por aqueles dentes. No momento em que arrancara mais um pedaço, pode ver a cabeça pendendo para frente, apenas com aquela pele lisa prendendo-a ao corpo. Mais mastigadas, e o boneco conseguira cair dentro de seu lago fervilhante. Ainda gritava, ainda vivia. Mas a besta não queria saber por que, estava satisfeito, ainda com tão poucas mordidas. Seu instinto o mantinha longe do lago, mas passou seus dias próximo dali. Seu território de caça talvez. Caminhando sobre a lama encharcada de água escura e densa como excremento. Caçando seus bonecos de cera que apenas ganharam mais um terrível carrasco para sua existência torturante e eterna.

Quando não havia fome e sede, e o calor do lado o aquecia, sentia-se finalmente sonolento e procurava por alguma seca e próxima arvore sem chamas e adormecia sobre ela, ou pelo menos julgava isso. Sonhava voltar a ser homem. Sempre num quarto escuro, sempre próximo a uma cama onde uma menina, em lágrimas pedia a Deus para que seu pai voltasse, que cuidasse dele. Ele pensava em chorar, mas não conseguia. Quando se dava conta estava próximo a ela, mas não tentava toca-la. Tinha medo de machucá-la. Ainda que as unhas não fossem as grossas e cumpridas como da besta, e seus dentes não saltassem pela boca. Porém houve uma vez que vira um homem ao lado da menina. Não conseguia vê-lo a princípio, uma luz grande e branca saia de todo seu corpo e machucava seus olhos, e pouco a pouco voltava a ser aquela besta, ainda que estivesse no quarto escuro. Tinha vergonha do que era e então despertava.

Os olhos da besta voltaram a se abrir, mas não via mais o nojento pântano de antes. O frio o despertara e depois, como de costume a fome desesperante, juntamente da sede renasciam dentro do seu corpo já tão disforme. Feridas enormes nasciam todos os dias, e o pus que delas expelia tinha um cheiro que lhe causava náuseas e o fazia vômitar. Odor pior do que aquele que o pântano podia exalar, que os corpo queimados dos bonecos de ceras ou da água que bebia. Mas ele não via mais isso. Agora era deserto, a areia era escura e parecia infinito, exatamente como o céu avermelhado sobre sua cabeça. Os gritos agora viam de cima, ele podia ver pequenos pontos escuros sobre aquele teto vermelho-sangue. A besta passou a correr novamente, descendo e subindo dunas negras que pareciam intermináveis. O medo agora o dominava, e pouco a pouco suas orelhas ganhavam pontas e pareciam aumentar de tamanho, seus olhos queriam saltar da face e sua narina unia-se ao lábio inferior, avançando pelo rosto como se um focinho quisesse nascer. O medo dominava. O frio, a fome e a sede não pareciam ser nada perto do terrível medo daqueles pontos escuros no céu. A besta corria, rolava dunas abaixo. Até que seu dia havia chegado. Os gritos era mais altos e os ponto circulavam sua cabeça como urubus. Ele chorou. Pensou em correr, mas não teve coragem. O ponto tornou-se maior, e ganhara silhueta, era um homem nu com asas de morcego que tinham a tonalidade de sua pele pálida. Porém chifres acinzentados brotavam de seus volumosos cabelos escuros, os olhos amarelados tinham a íris finas e escuras como a dos gatos, e um ódio inexplicável emanava deles. A besta gritou alto. A fera alada não o temeu, cravou-lhe as unhas, atravessando a carne e segurando a clavícula e levou-o a tormenta avermelhada que era aquele céu. Percorriam toda a imensidão escarlate e arremessavam-no uns para o outro, como uma coisa. Cravando suas garras pelo seu corpo. Abrindo suas feridas e despejando seu pus sobre seus corpos humanóides. Pois isso a besta já não tinha mais. Via mulheres de cabeços longos e loiros, Homens negros, de pele avermelhada, todos com seus chifres acinzentados entre suas volumosas jubas. Sempre em círculos, sempre com gargalhadas que soavam como trovões. Finalmente jogado em queda livre, e ainda que a dor e o medo fossem terríveis, abriu seus olhos deformados e pôde sentir toda a dor do mundo. O Vale do horror, onde a vileza humana repousa satisfeita. A besta não chorou. Apenas sentiu a carcaça de monstro chocar-se na areia negra. A besta não morreu, mas o coração explodiu. O sangue invadiu a boca, mas dessa vez engolira. Podia ver o a imensidão rubra sobre sua cabeça, e as feras aladas descerem como flechas na sua direção. Ele não sentia mais medo. A boca enorme não podia mais esboçar sorrisos, beijos ou palavras, mas ele gritara como a besta que era. A primeira chegou-lhe como uma bala sobre o corpo, pronta para cravar os dentes pontiagudos e pequenos em sua carne, mas a besta respondera da mesma forma, arrancando-lhe um pedaço do corpo. A fera não pareceu sentir. E como urubus, as outras pousaram sobre ele e comeram sua carne, enfiavam suas bocas nas feridas, remexiam o rosto deixando o sangue manchar seus rostos. Sentira arrancarem sua carne, podia sentir os músculos se partirem, o sangue se esvair, mas não a morte chegar. Nunca chegaria. Ouvira um grito. Grito ofensivo que fizeram com que as feras aladas erguessem suas cabeças manchadas de sangue escuro e podre e em seguida alçarem vôo para seu lar avermelhado. A besta não pôde olhar. Tentou se erguer mas não conseguira.

Foi seu salvador que aproximou-se. Era lindo, lindo e forte. O corpo grande e negro sobre ele. Pensou em ter paz, mas ela não veio. Ele sorriu. A cabeça sem cabelos, os olhos castanho-avermelhados, os lábios grossos, pensava a besta que o homem era belo como nada poderia ser e já foi em sua existência bestial. O peito nu e musculoso, apenas uma calça branca de linho dobrada até as canelas, os pés descalços.

- teu dia chegou. – Respondeu o homem com a voz imponente como sua imagem. Ele segurou sua mão – faltavam alguns dedos da besta – e assim eles se foram. A besta não soube para onde. Foram segundos, e quando se vira estava girando como um tornado. Não existia mais deserto ou céu escarlate. Não existia mais frio, sede ou fome. As feridas iam como iam também suas dores, seu coração parecia bater. Girava e girava a besta, enquanto ouvia ao fundo nascer o som dos tambores, a vozes em coro que cantavam uma cantiga antiga que não sabia se existia ou se era coisa dos homens. Tudo começava a ficar amarelado, o gosto amargo abandonava a boca, surgiam agora o gosto de cigarros e álcool. O gosto de sangue, e de carne fresca. O corpo da besta começava a ganhar outra forma, como numa metamorfose, a pele e as unham começaram a cair, os olhos diminuíram e a boca ganhara a forma de antes. Os cabelos cresciam rapidamente, assim como a barba, o corpo cada vez menor, mais frágil. Os trapos que ainda restavam sumiram junto ao turbilhão de tambores e cantigas, levando pele, unhas, feridas e tudo que havia de ruim junto dele, apenas restando aquele vazio. A besta voltou a ser homem, e pediu para ser besta de novo, mas não houve resposta. A cantiga parou, os tambores cessaram e tudo ficou escuro.

Sentiu formigamento nas pontas dos dedos, tanto dos pés como das mãos. Um zumbido agudo parecia ser levado e apenas conseguia por fim escutar um “bip” continuo ao fundo. Mexeu levemente a ponta dos dedos. Pode sentir as costas sobre algo macio, tubos e adesivos pelo corpo. E então se arriscou a abrir os olhos. Vira apenas uma parede branca, virou-se de lado e vira sua amada dormindo no sofá. Chorou em silêncio, deixou apenas que as lágrimas brotassem e caíssem dos olhos. Mas não por vê-la novamente, mas por saber que haveria um dia que passaria a eternidade sem ela.

Zé Rizzotto
Enviado por Zé Rizzotto em 17/02/2008
Reeditado em 20/02/2008
Código do texto: T862978