1977 - Acorrentado

Preso há meses.

Quantos? Não sabia. Perdera a conta.

Amarrado a um pilar de carvalho, em um aposento triangular todo branco e totalmente esterilizado.

Apesar de não poder olhar para trás, sabia o formato do cômodo pelo eco dos gritos que soltou meses antes.

Um fio de saliva encarnada escorria de sua boca.

De seus cabelos anteriormente raspados e agora compridos novamente descia água.

Uma gota que caía do alto, pingava de três em três segundos, martelava sua cabeça.

Não atrasava e não adiantava. Era sempre de três em três segundos.

Hora após hora, dia após dia. Ano após ano.

O filósofo Jean Paul Sartre estava errado, o inferno, disse ele, é uma sala asséptica com duas mulheres e um homem em eterna vigília, em eterna repetição.

O vampiro estava no inferno sozinho. Apenas a repetição era real.

Cada vez que tentava romper as amarras, feitas de algum material extremamente resistente, um facho de luz solar descia alguns milímetros em direção à sua cabeça.

Após milhares de tentativas o raio de sol encontrava-se próximo, muito próximo.

Seus pés definhavam, chumbados em um chão de concreto.

Ivan, o desgraçado que o prendera, ligou um cateter à sua jugular, por onde recebia sangue puro.

Ele não o queria morto, queria vê-lo sofrer muito antes disso.

Por estranho que parecesse aquele local bloqueava sua telepatia. Não podia ser encontrado.

À sua frente uma câmera Yashica 1970 oito milímetros mostrava sua agonia diária.

A última vez que havia visto a noite fora no começo de mil novecentos e setenta e sete, quando caçara um rico magnata.

Este fino homem, em sua mansão, tinha o péssimo hábito de despedaçar seus convidados miseráveis com um cutelo de partir ossos.

Dava a carne para os seus dobermans. Econômico não?

Apesar de já ter sido denunciado, molhou a mão de muita gente, policiais, delegados, juízes e júri.

Todos comiam em sua mão.

O magnata chamado Armand J. Talbout, filho de ingleses fingia-se de benfeitor dos pobres atraindo-os para sua mansão.

Fatalmente os despedaçava após um farto jantar.

Eram poucos os que esboçavam uma reação.

Para esses o ricaço tinha Carlos e Wagner.

Seus fortíssimos seguranças mestres em artes marciais.

Normalmente Saturno não matava gente rica ou famosa, mas um velho humano conhecido seu fora transformado em vítima.

Seu nome era Emerson, provavelmente o humano com quem o filho da noite mais havia conversado até então.

Era um filósofo das ruas.

Assediado com a promessa de um jantar e uma cama quente, aceitou o convite dos empregados de Armand.

O índio seguiu os rastros do amigo desaparecido e acabou deparando-se com a verdade.

Sabia o que deveria fazer.

Com seu belo punhal afiado invadiu a mansão.

O bando de dobermanns o atacou e o vampiro os fez em pedaços.

Lamentava que fossem simples animais, mas eles não recuaram diante sua presença.

Abriu as porta de entrada da mansão, e o mordomo tentou expulsa-lo em vão.

Saturno abriu um largo sorriso.

Derrubou-o com um soco, atirando-o sobre os sofás.

As empregadas saíram correndo gritando muito.

- Merda. Preciso ser rápido. – sussurrou o imortal.

Atravessou a mansão até chegar a uma magnífica porta de freixo entalhada.

Quando a escancarou deu de cara com três pessoas em uma ornamentada sala de jantar.

Um maltrapilho se fartava de uma rica sopa.

Obviamente seria uma futura vítima.

Um senhor atlético com cerca quarenta anos usando um roupão furta cor sorria.

Ao seu lado um rapaz de aparência perigosa com grossas costeletas louras usava um terno de linho branco.

O imortal caminhou até os dois.

Vendo as roupas sujas do vampiro, o ricaço o tomou como uma de suas presas.

- Veio jantar?

Sorria mostrando um dente de ouro.

Saturno também sorriu.

- Não. Vim matá-lo, pois matou um amigo meu.

O sorriso murchou no rosto de Armand.

- Mate-o. – ordenou para o rapaz de branco.

O louro nem respondeu, correu na direção do índio e o vampiro resolveu divertir-se com ele.

Faixa preta de Karatê acertou-lhe alguns golpes que matariam um homem comum.

O jovem de longos cabelos negros não era mais humano a gerações.

Quando se cansou daquela distração, agarrou o alemão pelo braço enfiando a mão dentro de sua cabeça através do olho esquerdo.

Arrancou o cérebro, que espirrou ao ser atirado longe.

Jogou o corpo em frente a Armand.

O ricaço não parecia nada feliz.

Saturno deu dois passos na direção do inglês.

Para sua surpresa foi agarrado.

Um negro de rosto feroz partiu seu pescoço.

Sem controle do próprio corpo por alguns segundos, veio ao chão.

Parecia vencido.

- Obrigado Carlos! Leve os corpos, sim?

O mendigo assistia a tudo paralisado.

Estava com uma colher de sopa fria parada a meio caminho da boca.

Armand agarrou seu cutelo e virou-se para o indigente.

- O prato principal já foi! Agora você será a sobremesa.

O mendigo levantou-se quase caindo, seus olhos arregalados de pavor.

Desviando sua atenção do vampiro Carlos o segurança negro sorriu maldosamente.

Qual não foi seu espanto ao sentir uma mão potente agarrando seu tornozelo.

Saturno o pegara.

- Achou que tinha se livrado de mim?

Ele não respondeu, soltou um “Ki ai” chutando o rosto do filho da noite.

A marca de sua bota ficou estampada claramente em seus traços indígenas.

O jovem de cabelos escuros irritou-se.

Quebrou o tornozelo com apenas dois dedos.

O grande negro caiu gritando de dor.

Com um golpe seco na garganta (o que quase separou sua cabeça do corpo) o aliviou do peso da vida.

Levantou-se de um salto.

Armand estava quase sobre o mendigo quando ouviu a voz tenebrosa próxima.

- Isso é muito feio sabia?

O milionário virou-se velozmente acertando uma cutelada no pescoço do imortal.

O vampiro não se moveu.

Tomado por um louco frenesi, Armand continuou atacando Saturno.

Com o peito e o rosto partidos o filho da noite deu um basta:

- Chega.

Agarrou o ricaço pelo pescoço.

Olhando escada abaixo, viu uma armadura com uma afiada espada.

Lembrou-se do filme “Psicose” que assitira há uns anos trás e resolveu imita-lo

Atirou o pérfido inglês escadaria abaixo.

Este bateu contra a armadura que empalou seu corpo, desmontando-se toda em seguida.

- Fim da história... – sussurrou o índio virando-se para partir.

Algo atravessou o ar, caindo aos pés do mendigo que estava todo encolhido de medo.

Era uma caixa marchetada.

- Bravo! BRAVO! Eu não faria melhor!

Saturno arregalou os olhos ao se virar.

Ivan, seu inimigo secular, estava bem a sua frente. Apenas o oposto do salão separava-os.

O mendigo pegou a caixa, observando-a com curiosidade.

- Larga isso! – berrou o jovem de cabelos negros.

O vampiro prússio acionou algo oculto em seu casaco, abaixando-se rapidamente.

A grande explosão esfacelou o mendigo.

O vampiro índio tentou fugir, mas foi envolvido pelo fogo.

Em chamas, foi soterrado pelos destroços do teto que desabavam.

A última coisa que viu foi o sapato italiano coberto de pó de seu carrasco, que se aproximava calmamente.

Perdeu a consciência, penetrando em um mar de escuridão.

Acordou dias depois na sala branca.

Pensou por semanas seguidas.

O feixe de luz quase lhe tocando a testa.

Chegou a uma última conclusão:

Deveria fugir. Ou morrer tentando.

Começou a bater a nuca contra o pilar.

Logo sentiu seu crânio rachar.

Sentiu um líquido viscoso escorrendo pela nuca.

Manteve o corpo parado, para que a luz solar não o atingisse.

Por dias bateu a cabeça contra o carvalho duro, até sentir que este cedia milímetro a milímetro.

Derrepente ele cedeu.

Agora era a hora de se mexer.

Juntando todas as suas forças, deu um único puxão arrancando o pilar que segurava toda a construção.

O facho de luz desceu pela última vez cortando sua cabeça como manteiga.

O vampiro urrou de dor.

O estrago estava feito.

Ficou cego de um olho, que demoraria alguns anos para se regenerar.

Era bem provável que a luz continuasse a descer matando-o, se o teto não houvesse desabado naquele momento.

Novamente soterrado, o vampiro conseguiu soltar uma das mãos.

Com ela destruiu o concreto que prendia seus pés.

Após alguns dias de recuperação, saiu de seu cárcere.

Cego de um olho e sem um pedaço do crânio aspirou o ar noturno.

Ficou espantado de descobrir que estava no alto da serra, e mais ainda por descobrir que se encontrava no ano de mil novecentos e oitenta e três.

- Vai me pagar os seis anos que me roubou, maldito! – disse consigo mesmo.

Saiu do entulho misturando-se com a noite fria.

Fim.

Humberto Lima
Enviado por Humberto Lima em 27/02/2008
Código do texto: T878822
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