O inferno de Malakay

Uma noite fria, uma chuva torrencial. O nevoeiro lá fora torna o simples ato de enxergar uma tarefa árdua. Malakay está sentado na cadeira. Com um cigarro e copo de uísque na mão ele cisma. Seus olhos estão vermelhos, seu rosto duro. Ele se levanta, olha para fora. A chuva continua a cair:

- Bendita seja a chuva que cai e tudo molha, que escorre e tudo lava, menos a minha alma suja, a minha alma maldita, a minha alma que já não me pertence. O que me sobra nesta noite melancólica?

O nevoeiro começa a entrar por debaixo da porta, junto com um vento cortante. Malakay sente a presença de mais alguém no quarto:

-És tu, outra vez, que vem tirar qualquer ilusão de sossego. O que fazes aqui? Já não me importunou o necessário para um dia? Até o mais cruel dos demônios descansa.

-Sabes como me deleito ao ver o desespero que transpassa a alma humana. Como me divirto ao ver o choro e o ranger de dentes quando finalmente o inferno fecha sua porta. Teus lamentos e queixumes são desta categoria de coisas que me satisfazem.

O demônio está num canto escuro do quarto, tão escuro, que a única parte visível são seus pés. Malakay vira o rosto para outro lado. Já tinha podido fixar seus olhos no olhar dele, uma visão por demais assustadora:

-Já passa da meia-noite, demônio. Não está na hora de procurares carne fresca para os teus anseios sinistros?

-Ainda há tempo.

-Tempo para quê? Gostas de admirar tuas obras?

-Divirto-me com a tua atitude. Perdestes a alma e tudo o que mais amou, e ainda assim posas de arrogante. Vocês seres da terra podem ser criaturas fascinantes quando se empenham nisto. Aí está um homem que tinha tudo: mulher, filhos, amigos, um futuro admirável, e por causa de sua teimosia, regada por uma certa dose de embriaguez, perdeu tudo.

-O que achas que ganha com essa dissertação?

-Teus pensamentos não param um minuto. Sabes que tua mulher está inclinada a dar a mão a um certo cavalheiro?

Malakay sente uma pontada no peito, como se uma adaga tivesse cortado seu coração:

-O que sabes sobre minha mulher?

-Perdoe-me. Acreditarias se lhe dissesse que tu não passas de uma vaga lembrança, pronta para ser atirada ao abismo? Nem lembram mais de ti, teus filhos brincam e sorriem para outro. Neste exato momento tua mulher deita com outro homem na cama que um dia foi tua. Posso ouvir os gemidos, as palavras obscenas ditas no ouvido. Em pleno êxtase ela grita um nome que não é o teu.

Malakay atira o copo na parede. Suas mãos tremem. As palavras do demônio atingiram em cheio seu alvo:

-A culpa é tua, demônio tentador. Seduziste-me com tua lábia, usou meu vício contra mim, e agora se diverte ao ver-me neste estado. Maldito jogo! Baralho maldito!

-Que culpa tenho eu se não consegue ler nas entrelinhas? Perdestes tudo sim, mas por tua ambição e arrogância. Você não podia parar, não é mesmo? Mesmo depois da insistência de tua mulher, mesmo depois de ter jurado nunca mais estar numa mesa de pôquer. Foste ambicioso, foste fraco, e eu, como um eterno oportunista, aproveitei-me da chance que me foi dada.

Malakay sente uma agonia terrível. O que ele queria agora era se matar, mas seu inferno apenas começou. Está condenado a viver de lembranças, imortalizadas como uma foto na moldura. A culpa o corrói, a saudade é grande, o inferno é eterno:

-Isso é só uma pequena dose do que ainda está por vir. Claro está que o deixarei informado sobre os acontecimentos felizes de teu lar perdido.

O demônio sai com um sorriso nos lábios. Malakay deita na cama. As lágrimas caem, a angústia desaba sobre ele como uma avalanche. Seus gritos de dor podem ser ouvidos a quilômetros de distância.

E em algum lugar do inferno o demônio ainda sorri.