A Megera

Era um garoto de boa família, ele, o meu Aurélio. Digo era no passado, afinal já deixara de ser a muito tempo. Não estranhem, porque na verdade a frase é mais ampla do que parece a princípio. Tanto a família como ele não mais existem no sentido convencional e mais aceito da palavra. Os corpos já se foram, mas as almas ainda estão aqui, rondando a casa, mas eu sei que é fácil se adiantar aos fatos e acreditar que todos entendem do que falo, afinal convivo com eles e conheço toda a história. Em verdade eu sou parte da história, sou atriz e não platéia.

Conto rapidamente, pois antes da sexta badalada Madalena não

aparece, ela sempre vai a missa na paróquia aqui perto e assombra o Padre Armando e duas ou três carolas amigas de outras datas. Eu não disse, mas Madalena é minha sogra, ou seria se não fosse morta. Uma praga tanto em vida como em posterior.

Eu na verdade me arrependo um pouco de ter pensado que ela deveria morrer um tempo atrás. Hoje eu bem preferia que estivesse viva, apesar de odiá-la. Vou dizer o motivo, mas não aceito julgamentos, você conhece a história da primeira pedra? Pois então apenas preste atenção, mas não me julgue.

Eu estava noiva de Aurélio e tinha a permissão de Moacir, pai dele, bem como as graças de Isadora, sua irmã. Os dois me adoravam. Nada de errado havia com nosso futuro enlace, pois eu era uma moça respeitada e pudica, do tipo certo para ser desposada. Ainda hoje, não o sou por muito pouco. Mas Madalena, como eu já mencionei, era uma verdadeira praga. Nem Aurélio, nem Moacir e muito menos Isadora, conseguiram juntar um grão que o fosse de coragem para falar para a megera sobre o nosso casamento. Medo puro da matriarca.

Irritei-me por fim com a situação e desisti. Larguei Aurélio, mas ele chorava copiosamente, dizia que seu pai adoecera quando soube de nosso noivado desfeito, me contou até mesmo que apanhara Isadora em devaneios bissexuais e que o fato se devia a nossa separação. Ignorei o fato por alguns dias, me fiz de dura, até que vi com meus próprios olhos a situação. Encontrei Aurélio bêbado em um final de tarde, Moacir acabara no hospital e Isadora aliciara uma vizinha que a denunciara ao Padre como lésbica. De toda a família, apenas a megera não se abalara, também, além de nada saber sobre eu e o Aurélio, ela nutria um certo desprezo pela própria família.

Marquei um encontro na casa, durante a missa para não encontrar a cobra, logo que Moacir retornou do hospital, e falei que voltaria a reatar o noivado, contanto que a família se juntasse e contasse para Madalena sobre o casório. Vi a apreensão nos olhos, mas não esperei, deixei a resposta pendente para o dia seguinte. Fui para casa, dormi e retornei para saber o que havia ocorrido. Cheguei na casa e encontrei Aurélio sorridente a me esperar já no portão. Pela sua expressão eu já sabia que as novas eram boas. Entrei na casa e encontrei Moacir em sua poltrona, com Isadora deitada em seu colo, ambos sorridentes, um quadro de ternura. Quando indaguei sobre a matrona eles limitaram-se a dizer que ela não aceitara bem a notícia e que depois de alguma discussão acalorada, partira. Para onde? Ninguém sabia dizer. Se eles estavam preocupados? Aliviados foi a resposta que me deram. Fiquei tão feliz pelo fato dos três estarem tão despreocupados que resolvi agradecer a Deus a partida da megera, fosse para onde o fosse.

Casamento marcado. O civil na casa pela manhã e o religioso na parte da tarde na paróquia do bairro. Vou resumir, pois os sinos já estão marcando as seis da tarde e logo minha vida volta a ser um inferno.

Voltando então. Eu assinei a certidão de casamento e entreguei a caneta para Aurélio, mas na hora em que ele iria assinar Moacir berrou, duas mãos no peito e se foi. Enfartou o coitado. Pegamos o carro do próprio juiz e levamos o meu quase sogro para a Santa Casa, mas não adiantou em nada, em verdade já era morto ao entrar no carro e frio ao descer. No enterro do finado foi a vez de Isadora, desequilibrou e caiu na cova, de cabeça em cima do mármore frio. Ela ainda chegou a Santa Casa em vida, mas por fim, finou-se como o pai. Eu pensei que era uma sina triste e uma coincidência horrível, quando chegou a vez do Aurélio e dessa vez eu vi tudo a contento. Casamos por fim, passado um mês da minha assinatura, a dele juntou-se a minha no papel. Mal sabia ele que era mesmo melhor ter me deixado partir, mas fazer o que? Núpcias, ele dentro de mim, eu por cima e de repente o grito. Não foi prazer, foi o pavor e lá se foi ele, arroxeou, engasgou e morreu; tudo isso comigo ainda em cima dele. E qual foi o motivo? Pois eu vi bem o motivo: foi a megera. Olhei para cima e lá estava a maldita, translúcida, opaca e sobrevoando a cama sorrindo. E não era só ela. Moacir e Isadora também estavam lá, amuados a seu lado. Pouco tempo depois se juntou a eles o meu Aurélio.

Não preciso dizer o que aconteceu exatamente. Você pode imaginar. O resultado final é o que tenho agora. A megera não me deixa partir da casa, bem como mantém Moacir, Isadora e Aurélio semipresos dentro destas paredes. Minha vida não é boa, não é ruim, não é vida realmente. Mas apenas uma coisa me consola: a velha está morta e eu estou com o meu Aurélio, se bem que igualmente morto, mas fazer o que? Não se pode ter tudo. Moacir e Isadora continuam muito doces comigo, mesmo depois de mortos.

Agora vamos voltar a minha vida pacata e insuportável, me deixem cuidar de meus afazeres, pois já ouço as tábuas rangendo na entrada. A megera sempre faz com que elas ranjam para me dizer que está chegando. Como se precisasse. Até morta a desgraçada fede.

Fim.

Richard Diegues é escritor, autor do livro "Magia - Tomo I", colaborador dos sites "Círculo de Crônicas" (www.circulodecronicas.com) e NecroZine (www.necrozine.blogspot.com), além de moderador dos Grupos "Tinta Rubra" e "Fábrica de Letras" pelo Yahoo!

Richard Diegues
Enviado por Richard Diegues em 04/04/2005
Reeditado em 14/04/2005
Código do texto: T9649