Sobre um suspiro profundo e uma rosa

A manhã ensolarada e ainda fresca resplandecia ao brilho do sol, enquanto o céu profundamente azul coloria a praia banhada pelas águas de espumas brancas e agitadas onde Ivo havia chegado após pegar trem e ônibus; sentia um enorme prazer que parecia transbordar das águas geladas que lhe lambiam os pés; mirou as ondas próximas, e contemplou com alegria, desejo e curiosidade os corpos das moças que circulavam pelas areias.

Enquanto caminhava sobre a lâmina d’água, viu a bela silhueta da jovem que se dirigia para o mar e que se contorceu levemente e com graça sob o choque da água gelada que envolveu seus pés, e talvez tenha sido esse movimento sinuoso do corpo esguio que o enfeitiçou , ou, como é mais provável, deve ter sido o olhar radiante da moça que capturou o seu e que instantaneamente iluminou ainda mais toda a praia ensolarada e que luziu sobre todo o mundo naquele momento, pois houve um aumento na intensidade de todas as coisas, de tudo o que havia na praia e de tudo o que existe, e até das batidas do coração que abandonaram o ritmo das ondas e que ganharam um ritmo que talvez fosse de samba, mas que era muito mais intenso e que descompassava.

Por alguma razão sua respiração se tornou incerta embaraçando os movimentos de seus pés que tiveram dificuldade em conduzi-lo até um metro mais à frente, bem junto da bela moça que o olhava intensamente impedindo que seu olhar também desgrudasse do dela, impondo que ele se aproximasse mais e mais, até que não houvesse mais distância entre ambos, até que todo ele mergulhasse dentro do olhar da moça e se dissolvesse ali, dentro daquele verde transbordante que parecia tão enorme quanto o mar, mas imensamente mais verde, a ponto de esverdear o mundo inteiro. Foi assim que Ivo se viu imerso no olhar de Carmem, e atraído por ela até a distância absurda e sem volta que faz com que dois corpos tentem se aproximar mais, mesmo quando já estão colados um ao outro e ainda se compelem voluptuosamente a reduzir uma distância que já não existe.

Naquela manhã tão marcante os olhos de Ivo não desgrudaram dos de Carmem, e seus corpos permaneceram unidos por quase todo o tempo que durou aquele dia tão curto, pois foi com rapidez estonteante que chegou a hora de irem para casa, e foi sob a mais completa estranheza que Ivo admitiu que o final da tarde já havia chegado, embora o dia houvesse recém começado, apesar do sol que se punha sobre as águas.

Durante a volta para casa, Ivo vagou por sonhos suaves que o embalaram e que recobriram todas as coisas, transformando todo o mundo ao redor no mais radiante cenário. Quando chegou já anoitecia, mas teve que esperar a demorada noite que nunca passava e que mesmo assim era maravilhosa, já que povoada pela figura de Carmem, por seus olhos, por todos os seus movimentos, suas sutilezas e até por sua respiração e por cada um dos pequeninos detalhes que a compõem, pois todos eles foram rememorados naquela longa e deliciosa noite, até que o sono acabou chegando, embora mais tarde que de costume, o que não o impediu de estar radiantemente desperto quando o sol nasceu.

Foi cedo para a praia, acalentado pelos mesmos sonhos, e embora demorasse excessivamente a chegar, tudo era felicidade enquanto voltava ao mesmo local em que, na véspera, havia conhecido Carmem, que só chegou depois de uma impaciência avassaladora e carregada de incertezas. Estava tão linda quanto na véspera, embora, de algum modo, não fosse mais ela mesma. Ou continuava sendo ela mesma, mas não desejava mais a proximidade de Ivo, e deixou isso muito claro.

A incompreensão inicial foi solapada seguidamente por colocações veementes que não deixaram dúvidas sobre o desejo de Carmem de não permitir que Ivo se aproximasse dela. Ocorreu então uma espécie de desmoronamento acompanhado de um escurecimento, como se uma nuvem houvesse obscurecido a própria vida tão profundamente que nenhum brilho pudesse mais existir, e talvez tenha sido essa opacidade que fez os pés estremecerem como em um terremoto, chacoalhando tudo ao redor: toda a praia, o céu tornado instantaneamente incolor e sem brilho, e até os sonhos. No mesmo instante todas as coisas existentes se agitaram, assim como todas as coisas que não são inexistentes mas que são sonhadas, e as coisas que nem são coisas e nem são sonhos, mas que existem e que não existem e todas as sensações e até toda a razão; naquele momento tudo foi abalado, menos a tristeza, que emergiu sombria e incólume da aniquilação total.

Em meio à dissolução causada pela conflagração arrebatadora pela qual acabava de passar, e sem saber como, Ivo se percebeu imerso no mar no instante em que se apavorava com o súbito ressurgimento do mundo, que naquele exato momento se manifestava como uma imensa parede de água que se agigantava sobre ele, ameaçando engoli-lo, embora permitindo um átimo para que aspirasse com avidez todo o ar que conseguisse, antes que a onda colossal que transbordava o mundo sobre sua cabeça o chacoalhasse com brutalidade, abalando tudo, transformando o mundo inteiro em agitação infernal e atroz que descompassava o coração no peito e que rompia a razão, descortinando luzes e escuridão, céu e inferno, toda a voracidade, todo o barulho, e até a paz total e reconfortante, quando a onda bestial se fez gentil e carregou o corpo desfalecido de Ivo para a areia da praia, deixando em sua mão entreaberta uma insólita rosa vermelha que a espuma das águas continuou acariciando suavemente.