Os Dois Companheiros

I

Aqueles dois rapazes estavam sempre juntos. Desde que se conheciam como gente, eram grandes amigos. Na infância, iam a mesma escola, estudaram na mesma sala e sempre moraram um perto do outro. Aonde um ia, podia estar certo que lá estava o outro. Otávio Mariano era um pouco mais velho que José, mas ambos eram jovens ainda.

Viviam somente em pescarias, procurando sempre algum lago ou “coricho” para mariscar. Não saiam de dentro das canoas. Também não sabiam fazer mais nada.

O José tinha um irmão conhecido por “Manduca”, que trabalhou para o “seu Mundico” e todos naquela época moravam na pequena cidade de Aruanã.

Aruanã cidade antiga, preserva ainda hoje muitas de suas casas da época de seu início. Fundada na época do império, quase tão antiga como a cidade de Goiás, encontra localizada na margem direita do rio Vermelho em sua confluência com o rio Araguaia. Em seu porto até pouco tempo atrás estavam os restos de três barcos a vapor. Três caldeiras e outras peças de grande porte, feitas de ferro fundido lá estavam espalhadas. Era o que sobrara dos vapores de Couto Magalhães: o Araguaia, o Colombo e o Mineiro.

Essas embarcações eram muito grandes e tinha muita dificuldade para navegar no Rio Araguaia, e foram construídas na Inglaterra. Chegaram ao Brasil desmontadas e suas partes trazidas de trem do porto de Santos até onde havia estrada de ferro, e depois em carretas puxadas por bois e lombos de burros até as cabeceiras do Araguaia, assim era contada por uns, mas outros diziam que essas embarcações estiveram navegando no rio Cuiabá e após a guerra do Paraguai onde participaram da mesma, foram desmontadas e trazidas da capital do Mato Grosso até o Araguaia, por terra da mesma forma que a versão anterior. Lá montaram novamente e as colocaram para navegar. Isso aconteceu há muito tempo atrás.

Agora quem chega em Aruanã, encontra aquelas peças colocadas em uma praça muito bonita, trabalho muito bom de um prefeito na época, o senhor Renato da Costa Nunes.

Cercada por lindas praias não deixa de ser hoje um grande pólo turístico, onde é conhecida internacionalmente. Pessoas que chegam de toda parte nas temporadas de férias, que iniciam em junho e vão até setembro, enchem suas praias de acampamentos, formando verdadeiros aglomerados que parecem outra cidade. Sua população aumenta consideravelmente nesta época. Também em finais de semanas ou feriados prolongados, muita gente deixa sua cidade para passar uns dias aí.

O seu Mundico pessoa conhecida na região foi quem me contou este fato. Ele trouxe com ajuda do Manduca, do Luiz “Barriga” e um outro vaqueiro, por voltas do ano de l952 o seu gado que estava em Miracema (To), da fazenda de seu sogro, para suas terras em Cocalinho no Mato Grosso. Suas terras ficavam do outro lado do rio Araguaia, quase de frente com Aruanã, na divisa com Goiás. O gado todo na época era composto por mais de oitenta reses e veio tocado a pé atravessando rios e Estados, apenas por quatro homens e um cachorro. Poucos anos antes, o seu Mundico havia conseguido demarcar uma área de terras e estava assim formando sua fazenda. As terras eram devolutas e após requerer ao Estado, aguardava o documento definitivo para ser trocado por aquele pequeno cartão tão importante, chamado de protocolo.

II

Após vários dias sem serviço, o José resolveu chamar o Otávio para uma pescaria. Os dois se encontraram no boteco do Antonio Bandeira e lá combinaram como fariam. Otávio dizia:

- “Zé, o lago Cai-cai, ta cheio de tucunaré! O Valdo o descobriu outro dia, e ninguém mais sem sê ele sabe onde fica. Ele ta muito escondido. A gente vai te de arrastá muitas veiz as canoa no esgoto do lago pra chegá lá. Ele me falou que tem muito pirarucu. Disse que viu uns cinco boiando, sem falá nas pacu e matrinchã. A gente tem que exprimentá pra vê se é verdade! Se dá certo nóis ganha um dinheirão na venda dos peixe seco pro véio “Temista”! (Temista como era conhecido o pai do seu “Mundico”, seu nome era Temístocles Sardinha).

- “Já ouvi falá nesse lago. Ele fica lá pra baixo, pra cima do rio Cristalino, na ponta da ilha do Bananal, não é mesmo? Dissero que ele é muito perigoso! Tem bicho dentro dágua que ninguém sabe o que é. Tenho inté medo de pescá num lugá desse!’’, respondeu José”.

- ‘‘Que nada sô! Nois leva duas canoa, você vai com uma e eu com a outra, si fô priciso nois trela as duas junto e vamo muntado numa só. Chegando lá a gente faiz um rancho, acampa e vamo mariscá e colocá o peixe prá secá! Ocê vai vê como vai dá certo. Com pocos dia nóis ta com o marisco todo pronto prá trazê prô Temista! Responde novamente o Otávio.

- Ta certo... Mais você é que vai no piloto!

E através dessa conversa, combinaram que fariam a viagem. Pegaram como adiantamento da venda do pescado um pouco de dinheiro com o seu Temístocles que já os conhecia. Lá mesmo fizeram as compras, pois o “Armazém Pirarucu” tinha de tudo e o seu Temístocles vendeu para os dois desde arpões e anzóis que acabavam de chegar de São Paulo, querosene, machado, muito sal e mantimentos, e até botinas. Só que as botinas não iam agora. Iriam calçando as velhas e quando voltassem é que iriam estreá-las no baile do João de Melo.

Assim abastecidos e com as informações necessárias colocaram as canoas no rio Araguaia e iniciaram a viagem. As canoas foram amarradas uma a outra, que facilitaria o transporte e também porque quem sabia manobrar melhor nas corredeiras era o Otávio. O José era bom na pesca com o arpão. Já havia perdido as contas dos pirarucus que tinha matado e em viagens assim, apenas ajudava remando. Rio abaixo era fácil, apenas a posição dentro da canoa durante a viagem toda é que era cansativa. Cada um mal podia se mexer, para não perder o equilíbrio e virar a canoa, e só conseguiam esticar um pouco as pernas quando parassem em alguma praia para fazer as refeições ou para dormir.

Cada uma das canoas era feita de um tronco de árvore, mais precisamente o cambará. Algumas vezes usavam troncos de landí. O cambará era mais leve depois de seco, e ambos dentro da água duravam muitos anos. Também faziam os remos com o mesmo material. A árvore que após ser derrubada e depois de seca era lavrada por dentro, com fogo, machado e enxó e depois de muito trabalho e verificando sempre a espessura de suas paredes é que se colocavam os bancos. Conforme o tronco, era o tamanho da canoa.

A canoa que eles estavam era a do Otávio, a maior em comprimento e mais difícil para ser manobrada, mas era mais estável e com menos risco de alagar. A do José por ser menor era melhor para a pescaria em lagos. Os dois torciam para que na volta passasse algum barco tocado a motor e os rebocasse, e nisso contavam com a sorte, pois o tráfego de motor por ali não era muito. Um ou outro barco descia ou subia o rio levando algum vendedor de mercadorias, ou comprador de peixes. Também compravam além do peixe, couros de jacarés, peles de onças e ariranhas e outros animais silvestres, como fazia o Sr. Temístocles antes de se estabelecer em Aruanã, e outros comerciantes como Hugo da Costa Nunes (pai do ex-prefeito Renato da Costa Nunes) quando solteiro Coronel José Santana e muitos que além de mariscar faziam cargas e levavam fardos de peixes em lombos de burros para comercializarem nas festas religiosas de Trindade.

III

Nas décadas de quarenta ou cinqüenta, o pessoal que morava muito distante dos centros de comercialização, em fazendas ou às margens dos rios, ficava sempre à espera desses comerciantes. Além das mercadorias que o povo tanto necessitava, traziam também notícias de tudo que acontecia nos outros lugares. Os barcos geralmente eram movidos por um ou dois motores de popa de marcas Penta ou Arquimedes, de doze cavalos cada. Eram lentos, mas empurravam barcos rio acima, atravessando corredeiras e cachoeiras, com mais de quatro toneladas de carga cada um. Eram barcos fechados onde além da carga, levavam sempre algum passageiro. Quando o comerciante descia o rio, ia entregando a mercadoria e anotando tudo em um caderno. Na volta recebia o peixe seco, couros curtidos, peles e até pequenos animais e aves em pagamento. Assim era feito o comércio. Seu Temístocles e seus filhos Benedito e Mundico trabalharam muito tempo carregando e vendendo mercadorias através do Rio Araguaia. Muitas vezes o seu Temístocles que tinha um caminhão e motorista por conta própria viajava para São Paulo, onde vendia as peles e os peixes adquiridos rio abaixo. O seu filho “Mundico” também fazia essas viagens. Na volta vinham quase sempre de avião, em vôos da empresa “Cruzeiro do Sul”. Voltavam sempre com novidades Traziam de tudo para o armazém e muitas coisas bonitas como lembranças para a família. Eram roupas da moda, calçados modernos e tecidos com as mais lindas estamparias, sem contar com os brinquedos para a criançada como carrinhos de plásticos para os meninos e bonecas para as meninas. No final todo mundo ficava feliz.

IV

Otávio e José depois de alguns dias de viagem descendo o rio finalmente conseguiram chegar na entrada do lago. Arrastaram por muitas vezes as canoas, sendo que em algumas dessas ocasiões, tiveram de descarregar para carregá-las novamente muito adiante, em locais de difícil acesso. Abriam caminhos nas matas, com facões e machados, mas chegaram ao destino.

Com o reflexo do sol nas águas limpas e transparentes daquele lago, podiam ver os peixes nadarem no fundo. Mas o que mais os apavoravam, era a quantidade de piranhas que viam. Eram as terríveis piranhas vermelhas conhecidas como cabeça de burro e que cresciam bastante, e ficavam maiores que um prato. Não passou também sem ser vistos por eles, cardumes inteiros de piranhas pretas, aquelas que de tão grande até pareciam caranhas. Viram também muitas matrinchãs e pintados. O que não faltava era o jurupecem, o conhecido bico de pato. Localizaram pacus manteiga se batendo nos pés de sarans comendo das frutinhas que caiam na água. Matrinchãs aos montes, ali debaixo do pé de landi, que no alagado derrubava seus frutos na água e a cada um que caia, a matrinchã aparecia mostrando o dorso e levava consigo seu almoço. Era apenas armar os anzóis de pinda (espécie de armadilha em que se colocava o anzol preso em uma linha forte e amarrado em um galho flexível de árvore e com uma dessas frutas agindo como isca) e aguardar com a frigideira no fogo. Peixe para comer não faltava. Nunca na vida tinham visto tanto peixe num só lugar.

Sem contar com os enormes jacarés tingas e arurás que ficavam nas margens com suas bocarras abertas e olhos fechados parecendo dormir. Quem sabe se para enganar algum animal distraído que se aproximasse e devorá-lo ou para se aquecerem ao sol.

Estavam deslumbrados com tantas belezas e farturas que havia naquele lago e também o perigo que aquela região inóspita apresentava.

Muito serviço teria que ser feito. Iriam fazer um rancho para servir em outras ocasiões, pretendiam voltar mais vezes ali. Teriam que limpar em volta, pois no local deveriam existir muitas cobras e também já tinham ouvido os esturros de onças por perto.

A primeira coisa que fizeram foi juntar lenha para uma fogueira e depois prepararam a comida. A farofa que tinha sido feita de carne de sol com farinha de mandioca e socados no pilão, tinha acabado no dia anterior e não tardaria para anoitecer. No dia seguinte, iriam tentar achar e matar um pirarucu e depois iniciariam os trabalhos que teriam de ser feitos.

Os trabalhos desenvolvidos durante o dia os deixaram extremamente exaustos e assim após se alimentarem cada um armou sua rede debaixo de uma árvore e logo dormiram, estavam muito cansados. Otávio dormiu muito mal, teve pesadelos a noite toda. Sonhara com jacarés e piranhas enormes, maiores que as duas canoas juntas, que saiam do lago e vinham pegá-lo em sua rede. Que estranho... piranhas do tamanho da canoa e pulando no seco... Acordou de madrugada, sobressaltado e suou muito.

- Deve de sê porque eu comi muito onte de noite e fui logo dormi... (Pensou antes de adormecer novamente).

V

Mal o dia amanheceu, cada um tomou um gole de cachaça e depois de se alimentarem com o resto da comida requentada feita na noite anterior, foram fazer os preparativos para a grande pesca. Na mata, cortaram uma vara comprida de uns dois metros e meio mais ou menos, que serviu para ser colocada no arpão. Na parte mais espessa da vara, que ficava na extremidade de baixo, fizeram uma espécie de pião. Na base do arpão existia uma saliência parecendo um cálice virado, que era onde se introduzia a vara. Depois de ser arpoado esta peça se desprendia do arpão que ficava preso no peixe, amarrado com uma corda fina e muito forte de algodão. Esta corda que depois de presa ao arpão, deixava uma sobra que era amarrada na vara e o restante, muitos metros a mais, ficava solta no fundo da canoa, que era por onde o arpoeiro iria segurar e controlar o peixe arpoado.

Os dois entraram na canoa menor, e Otávio assumiu o piloto. José com o arpão na mão orientava o rumo a seguir. Otávio era um bom nadador, pois aprendera ainda bem pequeno. Atravessava a nado o Araguaia ali bem em frente Aruanã, indo até a praia e voltando, varias vezes. Nadava muito bem.

José de pé na proa da canoa, nunca aprendera a nadar, mas mesmo assim não tinha medo de rios ou lagos. Ia a toda parte e dizia que desse mal não iria morrer. Diante disso, era sempre colocado para arpoar, e Otávio além de piloto servia também como “segundo” isto na linguagem dos pescadores. “Segundo” era o nome que se dava ao piloto que era o responsável pela segunda arpoada.

Não foi preciso procurar muito, pois não longe do acampamento Jose, de pé na proa deu o sinal com o arpão, mostrando a direção que o pirarucu havia boiado.

O pirarucu, maior peixe da água doce no Brasil é também conhecido como “bacalhau brasileiro”. Seu organismo precisa de ar para respirar, pois possui pulmões e de tempo em tempo é obrigado a subir a superfície. Essa é a hora em que sua presença é denunciada e os pescadores dizem que “só o encontram porque ele bóia para respirar”. Esse peixe também é encontrado em algumas regiões da África, pois a alguns milhões de anos atrás, o continente africano era ligado á América do Sul e Central.

Entendendo o sinal, Otávio foi ao rumo indicado e só parou de remar quando o companheiro deu o sinal com a mão esquerda.

José com o pé esquerdo à frente e o direito servindo de apoio toma posição para atirar o arpão. Espera o peixe aparecer novamente. São os segundos mais demorados que existem. Embora acostumado a matar pirarucus, sempre nessa hora sentia aquela ansiedade. Era difícil explicar o que acontecia. A boca secava, o coração disparava e dava até tremedeira. Olhou para trás e viu o companheiro já com o outro arpão na mão, aguardando sua vez.

Pronto, o peixe apareceu. Como era enorme! O peixe tinha mais de três metros de comprimento. Pelo seu tamanho também não pesaria menos que duzentos quilos!

A emoção foi maior ainda! Tinha chegado a hora! Não podia vacilar. Que seja o que Deus quiser... e firmou o corpo no pé de apoio, deu um impulso no arpão, que voou em direção a presa. A canoa chegou a balançar e quase alagou.

O que se passou naquele momento foi muito rápido e difícil de descrever.

O enorme peixe ferido mortalmente próximo ao meio, com todas suas forças em movimento, fez uma volta dentro da água, e parecia uma grande câmara de ar de trator, em pé, no meio do lago, e mergulhou para as profundezas. Não demorou muito e voltou logo à tona. A corda correu pela beirada da canoa até que o atirador, num ato sem pensar, conseguiu segurar sua ponta e amarrá-la no banco do meio. A canoa por um instante ficou sem controle e foi levada como por uma força descomunal a mais de cinqüenta metros para o meio do lago. O que se viu foi uma enorme mancha de sangue como rastro, deixada pelo peixe ferido. Otávio conseguiu novamente controlar com o remo a canoa que estava mercê do peixe.

Com a ponta da corda amarrada e segurando firme outra parte, José foi conseguindo trazer o peixe para bem próximo da canoa. Mas eis que o peixe já bem perto viu seus agressores e passou a toda velocidade por baixo da canoa. Nada mais podia ser feito. A canoa sendo puxada por baixo e pior ainda, pelo meio virou atirando seus dois ocupantes na água.

Otavio mais experiente saiu nadando devagar, o nado tipo cachorrinho, sem fazer barulho e segurando na canoa que havia soltado o banco que a prendia ao peixe.

José que não sabia nadar se desesperou e começou se debater na água. Bebia muita água. A água entrava pelas narinas, pela boca e assim foi ficando inconsciente...

VI

Já haviam se passados quase três minutos, quando começou a afundar. Bolhas enormes de ar começaram a vir à tona... Sentia os pulmões queimarem dentro do peito...Sentia que pouco lhe restava de vida...Tudo foi ficando escuro... Cada vez mais escuro... Parecia-lhe que estava entrando em um buraco negro e nada mais via pela frente... Agora começou a ouvir um barulho que mais parecia um motor. Esse barulho que começou do nada foi aumentando... Aumentando... E foi ficando mais alto... Era um totototototo baixinho que agora lhe arrebentava os tímpanos... A cabeça estourava... Tentava respirar, mas já não conseguia fazer mais nada... Estava se afogando. Debatia-se desesperadamente e afundava cada vês mais.

Mas eis que de repente como em passe de mágica, surgindo do nada percebeu u’a mão que se estendia e o agarrava pelos braços e o puxava pelos cabelos. E viu, já com os olhos embaçados e os pulmões cheios d’àgua, uma senhora ao seu lado que parecia irradiar uma luz muito clara e acenava para ele. Suas vestes eram de cor branca e muito brilhante que até doía nos olhos! Seus cabelos esvoaçavam dentro da água e ela estava sorrindo. Mas que loucura... Sorria de uma maneira tão contagiante, que naquela situação José sentiu uma sensação de bem estar e foi ficando feliz com aquela visão. Já não sentia a falta de ar e os pulmões já não doíam mais.

Agora conseguiu reconhecer quem estava ali ao seu lado: era a sua mãe. Mas como era possível isso? Ela já havia falecido há muitos anos! Nesse exato momento ela estava muito mais jovem, já não era mais aquela mulher de cabelos grisalhos, de semblante tão sofrido que ele guardara em suas lembranças. Como estava linda e sorridente. José sorriu também... Sentiu que havia chegado ao paraíso! Será que havia morrido?

Mas sem saber como, voltou ao passado, estava tendo visões... Começou a ver coisas acontecidas em sua infância e tudo lhe passava diante dos olhos de uma forma muito rápida!

Viu sua casa pertinho da mata. As paredes eram feitas de barro amassado e cobertas de palhas de coqueiro, muito bem trançadas. Era uma casa muito arejada, pintada de branco, com cal que seu pai trouxera de Aruanã. As janelas bem grandes e ao lado havia uma outra casa que servia de depósito de mantimentos e onde seu pai guardava arreios e as ferramentas que usava no campo.

Viu seu pai e sua mãe juntos, conversando. Falavam em saírem daquele lugar e se mudarem para a vila.

Agora os via trabalhando... Estavam colocando mandioca em um cocho com água, para fazer farinha de puba... O irmão mais novo o Manduca ficava ali perto brincando com uma bola de borracha que ganhara no Natal.

Viu-se junto ao pai, na roça ajudando no plantio de milho. O pai na frente abrindo as covas e ele jogando as sementes e com o pé cobria com terra as covas abertas.

Estava se vendo ainda menino e se preparava para ir para a escola. Sua mãe estava preparando sua refeição e recomendava como sempre o fazia, para tomar cuidado no caminho. Cuidado ao atravessar a pinguela e não cair no riacho... Olha direito, pois tem muitas cobras por lá!

- Na volta você espera o Otavio e vem junto com ele! Preste bastante atenção no que a professora ensinar. Passe tudo direitinho no caderno. Agora vem comer que seu prato ta pronto.

Via diante de si aquele menino irrequieto correndo descalço e sem camisa pelos campos. Quando votava em casa, sempre tinha um prato de comida pronto à sua espera.Como amava e admirava sua mãe. Mulher nova e bonita, sempre preocupada com sua alimentação, suas roupinhas sempre limpas. Ia para a escola feliz e sempre na despedida levava aquele beijo carinhoso na testa.

O Otávio, filho do morador vizinho dali era seu amiguinho.Estudavam juntos na escola da vila.

Viu seu pai agonizando em seu leito e depois sendo carregado pelos vizinhos para ser sepultado ali próximo da mata. O cemitério da cidade era muito distante.

Viu recebendo o certificado de conclusão do primário, que sua mãe toda orgulhosa mandou colocar numa moldura e o pendurou na parede da sala, junto com os retratos da família.

Tudo isso em fração de segundo foi passando por seus olhos. Ele presenciou novamente tudo que se passou em toda sua vida.

Agora, quase no fundo do lago sua mãe o abraçava e ele sentiu um calor muito intenso que se desprendia dela e o envolvia completamente... E notou que ela o empurrava para cima e a claridade foi aumentando.

VII

Naquele momento, devido o sangue do peixe, cardumes inteiros de piranhas se concentravam ali.

Em seu desespero e muito assustado Otavio viu quando seu companheiro voltou pela última vez à tona. Nada podia ser feito para ajudá-lo. Se tentasse nadar até ele, as piranhas o atacariam também. O que fez enquanto nadava, foi rezar. O tempo não passava e cada segundo parecia uma eternidade. Otavio não sabe quanta Ave Marias e Pai Nossos rezou.

José já não conseguia quase se movimentar e foi quando os peixes começaram a saltar sobre ele, dando início a uma horrorosa refeição. Estava sendo devorado ainda vivo pelas piranhas.

E em seus últimos instantes de vida, José recobra os sentidos e volta a se debater com mais intensidade. Tenta se salvar de toda maneira. Quanto mais se debatia, mais peixes ajuntavam. A cena era dantesca. A água se tornou avermelhada com o seu sangue. Começou a gritar.

Horríveis foram seus gritos pedindo ajuda, até desaparecerem completamente sob as águas.

Em poucos minutos tudo voltou a calma. Parecia até que nada tinha acontecido ali.

Com muita dificuldade Otávio conseguiu nadar até a margem mais próxima, levando a canoa.

VIII

Durante dois dias e uma noite remou rio acima, sem descanso. Numa parada em uma praia, por sorte aparece um barco com mercadorias que vinha subindo o rio e o rebocou até Aruanã.

Lá se reuniu com amigos e parentes do José onde arranjou meios de retornar ao lago Cai-cai pouco tempo depois.

De canoa chegaram ao lugar onde havia morrido o companheiro, comido pelas piranhas. Não havia sinal algum que indicassem a tragédia que lá ocorrera.

Através da água clara viram os restos da ossada do José que repousavam lá no fundo, e com um gancho amarrado em uma corda resgataram alguns desses ossos.

Este foi o final trágico de uma grande amizade.

Muitos anos depois, quando em l.962 cheguei a Britânia, conheci um rapaz que trabalhou na fazenda de meu pai. Seu nome era José Mariano conhecido por Zé Baixinho devido sua pequena estatura, e me contou que o Otávio era seu irmão. Confirmou também que os fatos que foram narrados com tantos detalhes pelo seu “Mundico” eram reais.

Os acontecimentos que aqui foram descritos, parte deles são reais e parte é ficção.

Milgo
Enviado por Milgo em 24/02/2006
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