Parte 3 - Crônicas de um Homem do Tempo - Capítulo 746 - Estudos - A Mulher e o Armário

"Porque eu possuo você,

Sim, eu criei você

E deixaria você se tivesse vontade

E vou quebrar você,

Sim, vou tomar você

Porque eu mantenho o que eu quiser,

Porque eu possuo você"

Bijou Phillips - I Own You

A bela e alta jovem caminhava pelo passeio público da cidade grande…*

*****

Houve uma época em que aquele homem que podia controlar o tempo dedicou-se a estudar sua própria natureza.

Sem conseguir compreender como os fenômenos de interrupção, avanço e retrocesso no tempo funcionavam, sempre em conformidade aos impulsos de sua vontade, o jovem de gravata cor vinho, camisa social e calça cinzenta procurou, à sua maneira, conhecer melhor sua própria natureza.

Alguém, ele próprio, vindo do futuro, ou do passado, advertiu-o que sua pesquisa teria resultados infrutíferos.

- Você não vai descobrir como isso tudo acontece, assim como não descobriu quando e como nasceu - disse sua própria voz, vinda de um tempo distante. - Mas, não vou impedi-lo, pois sei que será divertido e interessante...

Decidido, o jovem abandonou sua contraparte à própria sorte e partiu em sua jornada de descoberta. Ele sabia por experiência própria que tudo o que fosse divertido ou interessante, segundo sua própria opinião, merecia ser tentado.

Sua primeira opção de pesquisa envolvia o áudio. A primeira coisa que ele percebia, quando o tempo parava, era o sumiço dos sons, que não fossem os seus próprios, os quais se tornavam roucos e atrasados.

Ondas sonoras deixavam de ser audíveis para se tornarem em camadas transparentes e visíveis quando o tempo parava, e seus contornos estáticos lembravam gigantescas bolhas de sabão, pouco nítidas, que se sobrepunham, interceptavam e atravessavam umas às outras, tendo como centro os pontos de origem de cada estampido, zumbido e retinir. Algumas bolhas eram finas, mais bem definidas, e ele via que estas eram produzidas por sons secos, como pancadas, ao passo que outras bolhas, pertencentes aos sons contínuos, como apitos e buzinas, apresentavam contornos grossos e incertos, como ondas, que deixavam o ambiente ainda mais azulado e turvo.

Muitos sons intermitentes geravam seqüências de bolhas, dispostas de forma concêntrica, umas dentro das outras, constituindo um efeito visual interessantíssimo, que lembrava uma espiral. Certas bolhas eram absolutamente redondas ao passo que outras eram ovais, e havia ainda regiões do espaço, e mesmo superfícies, em que as bolhas de som pareciam ter se chocado, gerando novas ondas e distorções, que pareciam esculpir o ar e deformar as imagens.

Atravessar as bolhas sonoras fazia com que estas fossem rompidas, deixando rombos em seus contornos, como se elas fossem constituídas de finas camadas de papel. Isto revelava que os balões não passavam de projeções nos gases do ar, e fazia com que o jovem recordasse de tempos idos em que saía em lenta e divertida correria, saltando por entre as bolhas, que pareciam segurá-lo, e perfurando-as, sentindo a solidez do vento estacionado se opondo à sua passagem.

Ávido pelo conhecimento que não seria obtido, o rapaz obteve um antiquado gravador de fitas cassete, com um microfone, e iniciou seus testes.

O primeiro resultado foi decepcionante - não importava onde o gravador estivesse, ou os movimentos que ele fizesse com o microfone, movendo-o através dos balões de som, as gravações na fita revelavam sempre e tão somente um zumbido, que parecia corresponder aos sons do mecanismo do próprio gravador, girando e fazendo-o funcionar.

Cansado de tentar gravar ruídos que não existiam, ele roubou uma máquina fotográfica polaróide de alguém e tentou fotografar o que acontecia nos momentos em que as imagens paravam e o tempo no universo inteiro cessava seu movimento. Obteve uma série de chapas instantâneas com imagens borradas em diversas tonalidades de amarelo que mais pareciam manchas sobrepostas de tinta colorida, as quais nada revelavam.

Resolveu trocar de máquina, e escolheu dois novos modelos de uma só vez. O primeiro era uma legítima câmera profissional, com lentes poderosas como telescópios de curto alcance, diversos ajustes de aproximação, além de uma porção de outros recursos avançados que ele nem se preocupou em descobrir como funcionavam.

Não obteve melhores resultados... Por mais que apertasse botões e girasse dials, as fotos obtidas em revelações feitas no futuro continuavam exibindo as mesmas variações de tons amarelados, bem diferentes da neblina azul e das projeções de som que permeavam as formas quando estas encontravam-se paradas no tempo. Examinando melhor a situação, ele percebeu que um fenômeno semelhante acontecia com sua própria visão - toda vez que olhasse através de uma lente, pelo vidro de uma janela, ou por qualquer outra superfície transparente, dependendo do modo como focalizasse a vista, ele mesmo conseguia ver os tons amarelados surgindo do nada, misturando-se ao azul e recobrindo toda a superfície. Era mais fácil e menos incômodo para seus olhos em se observar o estranho revestimento amarelo através de lentes potentes, e ele descobriu que as cores tornavam-se esverdeadas caso a superfície transparente fosse de plástico ou acrílico, ao invés de vidro.

A melhor conclusão que ele tirou disso tudo foi que os aparelhos confeccionados pelas pessoas para serem usados com o tempo em movimento NÃO funcionavam de modo adequado caso o tempo estivesse parado. Isso, e uma porção de fotos esquisitas.

Insatisfeito, ele resolveu testar o segundo modelo de câmera que havia obtido, uma câmera digital, que não servia apenas para fotografar como também para filmar.

Remexia no instrumento, apertando botões e acionando switches, tentando visualizar alguma imagem no improdutivo visor de cristal líquido, fixo em uma monótona imagem azul, onde dígitos brancos mostravam o tempo andando apesar dele estar parado.

Foi quando viu a deusa.

Sem querer, havia apontado a objetiva da câmera em direção àquela bela mulher, parada como o universo, entre um passo e outro, em um semi-salto, graciosa como uma ave, singrando o ar no passeio público.

A princípio, pensou que poderia tentar fotografá-la, ou filmá-la, com sua nova câmera, mas ao se aproximar dela, seus olhos não conseguiam mais parar de fitá-la, o que fê-lo desligar a câmera e jogá-la longe no meio da rua, onde nada se movia. Arremessado para o ar, o objeto acabou parando, após ter se deslocado por algumas dezenas de centímetros.

Levantou a cabeça e engoliu em seco, examinando a bela criatura de cima a baixo.

Viu os seios pontudos, as coxas e nádegas grossas, ressaltadas pela posição em que a jovem havia sido apanhada, e pelos contornos apertados das roupas. O pescoço longo e as linhas fortes dos ombros. O cabelo castanho, ondulado e comprido. O rosto perfeito, onde os traços imperfeitos compunham uma obra de arte de genial assimetria.

As pernas abertas em um passo de dança travado no tempo. Vestido escuro, curto e apertado. Sapatos pretos de salto alto e bico fino. Ombros à mostra. Pés pequenos. Pele aveludada.

Ela era muito alta, muito forte, e sua formosura era tanta que servia para deixar tonto o jovem que a admirava como se observasse uma formidável escultura, imortalizada além das restrições do tempo. As curvas e detalhes que o corpo de uma fêmea precisava ter para atrair por completo a atenção de um homem estavam todas ali.

A encarnação da sedução.

Excitado, ele acariciou o corpo inanimado da sereia, sentindo-a morna e azul, como já havia feito com outras tantas mulheres durante lapsos de tempo. O tempo parava, as diferenças de temperatura deixavam de existir, e ele não mais podia sentir o calor ou frio dos corpos da maneira como normalmente sentiria.

Nada que não tivesse sentido antes.

Louco de desejo, o rapaz lançou-se sobre a mulher inerte, como um carnívoro, beijando seu pescoço, agarrando seus seios, ainda mais firmes em decorrência da paralisia temporal. Trepou sobre ela, acima e abaixo dela, enroscando-se como um réptil naquela silhueta repleta de reentrâncias e penínsulas, propelindo seu corpo e galgando o ar, como se nadasse, com o auxílio da gravidade falha dos momentos em que o tempo não contava e ele tinha o controle sobre as forças do cosmos.

Girou a deusa em seu próprio eixo, deixando-a deitada em pleno ar, removeu-lhe as roupas, e, durante um período que não foi registrado, debaixo das vistas de toda a população imóvel da cidade grande, penetrou-a, tocando todos os pontos do corpo voluptuoso e fazendo com a irresistível fêmea tudo o que lhe dava prazer.

Ao final do ato, após um breve repouso sobre o corpo esbelto e confortável, recolheu as roupas que flutuavam sólidas pelo ar, e, como se transportasse uma boneca gigante de sua legítima propriedade, recém comprada em uma loja de artigos exóticos, saiu carregando a jovem pelo passeio tingido de azul.

Em casa, o rapaz de gravata recompôs-se, e acomodou o objeto de seu desejo em um grande e alto armário, providenciando de forma miraculosa para que o tempo não se deslocasse em seu interior. Ele sabia que devia devolver a musa, cedo ou tarde, ao seu devido lugar no tempo e no espaço, reposicionando-a com cuidado naquele mesmo local do passeio público onde a havia encontrado, mas isso não o impedia de mantê-la para si por alguns dias, quem sabe.

Nada impediria.

Após olhar a mulher de traços perfeitos, acariciando novamente suas formas ainda desnudas, o jovem trancou o armário e se retirou do aposento, fechando a porta atrás de si.

De trás da porta foi que ele mesmo surgiu, como se sempre tivesse estado ali.

- Não falei que seria divertido e interessante - disse aquele mesmo jovem, vindo do futuro, com um meio sorriso.

Tirando as calças, ele dirigiu-se, chave em punho, para abrir o armário.

*****

*... quando sentiu-se deslocada, desnorteada. De repente, sua vista falhou e o que via, caminho, calçada, pessoas andando em seu redor, tudo escureceu, o que fê-la cruzar os braços e apertar a barriga, sentindo um calor intenso e uma falta de energia repentinas.

Suas pernas tornaram-se bambas, e ela cambaleou e caiu.

- Epilepsia! - alguém ali perto exclamou, enquanto outras vozes gritavam palavras com menor nitidez.

Pessoas pararam para vê-la enquanto, mais adiante, o motorista de um carro perdia o controle, jogando-o para cima do passeio.

A bela jovem que se arrastava no chão não possuía aquela doença, e nem nenhum tipo de síndrome similar, mas, mesmo assim, babava e vomitava pelo piso sujo da calçada, como uma bêbada.

Mãos a tocaram, causando arrepios seguidos por mais calor e... uma inacreditável sensação de prazer que fê-la desfalecer, sentindo como se tivessem tocado seu corpo por centenas... por milhares de vezes em um único segundo.

Inconsciente, acabou sendo levada para um hospital, onde, após uma série de exames, os médicos não conseguiram diagnosticar qualquer espécie de malefício que pudesse ter posto abaixo de tal forma uma jovem tão robusta e saudável quanto aquela.

Incrédulos, limitavam-se a conferir e examinar continuamente, durante semanas, as amostras de esperma que tinham sido coletadas do interior da genitália e em outras tantas partes do corpo da moça, ou manchando sua pele, roupas e cabelo. Uma certa quantidade daqueles fluidos era recente, mas em sua maior parte, o material já se encontrava empapuçado ou cristalizado, ou mesmo a caminho do apodrecimento, algumas amostras podendo ser datadas como tendo sido produzidas há muitos meses atrás.

- Meu Deus... - alguém comentou, avaliando os intrigantes resultados dos exames. - Parece que ela foi estuprada por esse mesmo cara umas cem vezes.

Os especialistas sabiam que os processos orgânicos da jovem certamente deveriam ter removido tamanha quantidade de sêmen de tanto tempo atrás do interior de sua vagina e reto, já que a maior parte do que havia em seu esôfago e estômago já havia sido vomitado no piso quente da calçada pública, mas isso simplesmente não havia acontecido.

Facilmente excitável e agressiva, a jovem declarava a altos brados ao seu psicólogo particular não ter feito sexo de qualquer espécie nos últimos meses.

Descontrolada, tendo pesadelos e crises de insônia e paranóia, além de desequilíbrios emocionais cada vez mais freqüentes e não condizentes com seu temperamento habitual, bastante calmo e sociável, a jovem acabou sendo internada por sua família em uma instituição psiquiátrica, onde suas formas esbeltas acabaram sendo diluídas pelo passar do tempo...

Jamais se recuperou.

*****

- Seu guarda, por favor. Eu sei que vi essa porra de câmera do caralho surgindo do nada e caindo no capô do carro, e daí... e daí...

- Sim, e então você perdeu o controle e jogou o carro em cima do pessoal da calçada... Você já disse isso antes.

- Eu juro por Deus, seu guarda! Estava andando normalmente quando essa coisa caiu no meu capô... e fodeu com tudo! Eu não acredito que essa merda esteja acontecendo comigo...

- Veja bem, meu amigo... Digamos que eu prefira acreditar em alguns dos seus antecedentes... dirigir embriagado...

- Mas eu NÃO ESTOU BÊBADO, PUTA QUE PARIU! Essa porra de câmera aí simplesmente apareceu no ar e caiu em cima do carro, PORRA!

- Tenente, algeme-o. Tenho certeza que ele vai ficar mais calmo lá no distrito.

- Não acredito. Não foi culpa minha! Não DESTA VEZ!

E a vida, como o tempo, prossegue...

Fabian Balbinot
Enviado por Fabian Balbinot em 27/02/2006
Reeditado em 13/11/2014
Código do texto: T116838
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