O ANTIQUÁRIO

Aquele menino, que já não era mais tão menino assim, tinha já de longa data a mania de colecionar tudo. Desde as figurinhas de chiclete na mais tenra infância, até as coisas mais curiosas. Achava por vezes que era um louco, mas sabia que se isso fosse realmente verdade, ele não seria o único.

O menino foi crescendo ainda mais e com ele sua excentricidade. Descobriu que mais interessante do que guardar ou possuir coisas, era possuir coisas que outras pessoas não tinham. Nada que se tornasse uma obsessão, mas algo maior que um mero desejo, digamos assim.

Seu passeio preferido, desde que assumiu sua mania de colecionar raridades, passou a ser em lojas de antiguidades, sebos e brechós. Adorava passear por aquele universo mágico de coisas do passado. Quantas histórias aqueles objetos guardavam, quantas brigas, intrigas e discussões ou conquistas e glórias eles haviam presenciado e essa infinidade de objetos diversos e quinquilharias poderiam ser possuídos, muitas vezes, por preços baixíssimos. Foi assim, visitando estes ambientes, que não eram poucos em sua cidade, que o jovem para terror de sua mãe, sempre que o dinheiro não lhe faltava, voltava para casa com mais uma peça para sua coleção.

Há algum tempo atrás, o garoto descobriu um antiquário num dos Shoppings da cidade e conhecendo a fundo a loja, descobriu também que existiam pessoas ainda mais excêntricas que ele. Quem por exemplo? O dono do antiquário, que pasmem, raramente vendia alguma peça de seu acervo, mas que volta e meia apresentava em seu estoque algumas “novidades”.

No primeiro dia em que ele entrou na loja, ficou todo entusiasmado com os objetos que lá se encontravam e se interessou por um candelabro para cinco velas.

– Boa tarde senhor, estou interessado em saber quanto custa este candelabro aqui.

– Desculpe garoto, mas não me leve a mal, esta peça está em minha família há muito tempo e com certeza eu não poderei vende-la para você, pelo valor sentimental a ela agregado.

O garoto achou estranho, mas melhor não contrariar. Ele já era idoso, e a peça devia realmente estar na família há muito tempo e rezava a boa educação respeitar os mais velhos. Enquanto se atinha a estes pensamentos ele se interessou por uma caneta tinteiro e tentou novamente.

– Senhor! E esta caneta aqui? Quanto vale?

– Muito. E com certeza você não terá dinheiro para pagar.

– Pelo menos por curiosidade, quanto custa.

– Sabe garoto. Uma das coisas que eu abomino no ser humano é a curiosidade.

A expressão no rosto do homem demonstrava raiva e impaciência e o garoto, muito a contra gosto resolveu se retirar. Percebeu que mesmo quando já estava do lado de fora do antiquário, ainda persistia o olhar reprovador do proprietário. Voltou para casa falando sozinho.

– Nossa que cara grosso! Com certeza deve ter tido uma vida horrível e um dia pior ainda. Mas eu não vou desistir, ele não deve ter ido com a minha cara porque eu estava com mochila. De certo achou que eu iria esperar uma distração sua, para roubar uma de suas peças.

Suas conclusões foram interrompidas pela buzina do automóvel que quase o atropelara.

– Vê se olha por onde anda! Quer morrer filho de uma isso!

Assustou-se com a buzina e teve tempo suficiente para se salvar, escutar a grosseria e devolver ao motorista que já ia ao longe um gesto com a mão que os americanos identificariam como ok.

No dia seguinte ele estava lá novamente, desta vez um pouco mais tarde, pois passara em casa, tomara um banho e deixara a mochila escolar, só para prevenir. Tentou novamente e novamente foi infrutífera sua investida. Desta vez o senhor alegara que um dos objetos já estava reservado e que outro havia pertencido a seu avô, pessoa que segundo ele era muito importante em sua vida. Os dias foram passando e a indignação inicial do garoto se transformou em uma forma de diversão. Ele percebeu que o velho senhor, proprietário da loja, não fazia isto só com ele e sim com todos os “clientes” que por ali passavam. As pessoas olhavam, admiravam e ele ficava na dele, ora lendo jornal, ora fumando cachimbo e o garoto fingia olhar os objetos e se aproximava do proprietário para melhor escutar a desculpa esfarrapada da vez. Ao todo eram dezessete desculpas, com suas devidas variantes. O menino se divertia até em contabilizar as lorotas, mas divertida mesmo, era a reação das pessoas. Uns saiam indignados, como ele um dia saiu, outros perdiam as estribeiras e invariavelmente xingavam, assim, na lata palavrões escabrosos.

Que sem o menor pudor o antiquário devolvia com acréscimos.

- Vá você! Mande a sua genitora que é profissional no assunto! O mesmo para a senhora! Vá almoçar que o pasto está verde! – entre outros cada vez mais criativos.

Um certo dia a rotina do garoto foi alterada pela chegada de um senhor muito elegante, de cabelos grisalhos e com ar de “importado”. Este, que parecia um lorde inglês, logo que chegou deu ao proprietário um aceno de cabeça. Estava bem trajado com paletó e gravata apesar do calor daquela estação no litoral, via-se que não era dali. Na lapela trazia um broche que lembrava um escudo com uma cruz vermelha em seu interior e em suas mãos um embrulho. Aquele homem tinha algo de fascinante que o garoto não sabia explicar o que era, mas para não chamar atenção, ele se afastou um pouco e de soslaio acompanhava a conversa. Teve certeza de que era de outro país e percebeu que inglês era o idioma por ele falado.

A situação ficou com um ar misterioso quando o “gringo” abriu o que trazia embaixo do braço. Deteve-se, o inglês, e infelizmente por isso não ficou ele sabendo do que se tratava. Um aceno e algumas palavras em inglês deixaram o menino com raiva por não prestar atenção àquela matéria escolar, que agora mostrava serventia.

O proprietário fez uma pausa, guardando a caderneta que possuía nas mãos dentro de uma gaveta e logo se pois a dispensar uma senhora que perambulava pela loja e o garoto consigo. Meio contrariado e demonstrando ainda mais curiosidade que no primeiro encontro com o velho, o garoto se ateve na vitrine, podendo observar ainda que se tratava de um objeto pequeno e que estava embrulhado em um tecido pesado, maltratado pelo tempo. Mas foi só, pois neste ínterim as venezianas se fechavam, impedindo que algo mais fosse visualizado.

Bem que ele estava certo. Haveria de ter algum mistério em uma loja que nenhuma peça é comercializada. Na verdade o velho vendia algumas coisas, todas comuns e sem valor, segundo seu próprio juízo.

Nos dias que se sucederam o menino passou a visitar a loja para procurar o tal objeto “novo”, que o “gringo” havia trazido. Ele sabia que o objeto deveria estar em algum lugar da loja, tivesse ele o valor que tivesse, simbólico ou monetário, pois aprendera certa vez que os mistérios do universo estavam escondidos ao alcance de nossos olhos.

Graças a sua memória visual o garoto sabia o que não era o “objeto misterioso”, mas até então não havia descoberto dentre as antiguidades, que sempre mudavam de lugar, qual era o verdadeiro objeto de sua curiosidade.

Numa quarta-feira, ele chegou à loja como de costume e a encontrou fechada. Estranhou o fato, mas saiu sem pensar no ocorrido. Olhou algumas vitrines e se divertiu um pouco no fliperama.

Na quinta e na sexta a história se repetiu, o que o deixou muito intrigado, encontrando a loja aberta apenas no sábado. Quando entrou no antiquário, reparou que no lugar do seu velho amigo, estava uma bela moça de uns trinta e poucos anos. Cumprimentou-a ao entrar e passeou pela loja como de costume. Enquanto ela retirava o pó com um espanador de penas, ele buscava com os olhos o “objeto misterioso”.

- Procura alguma coisa em especial? – perguntou a mulher.

- Pode ficar tranqüila, assim que encontrar eu lhe falo.

Depois de responder à mulher, o garoto bateu os olhos em uma das prateleiras e reconheceu o velho tecido que embrulhava a peça, embaixo de uma taça. Tinha que ser ela. A passos largos ele se aproximou da prateleira, contando mentalmente os trocados no bolso.

Cinqüenta e dois reais seriam suficientes para comprar a peça de madeira, mas daria uma oferta menor, para sobrar para o cinema.

– Olha moça, a peça é esse cálice aqui, quanto está mesmo?

– Não sei. – Disse ela displicentemente pegando a peça nas mãos e limpando-o com o pano velho. – Acho que uns setenta reais está de bom tamanho.

Conseguiu levar por cinqüenta tendo de dar adeus ao cinema. Antes de ir embora descobriu que a moça era filha do antiquário e que ele havia se adoentado, justificando as ausências. Como ela também possuía outro emprego só abriria a loja aos sábados até seu pai se restabelecer completamente.

Chegou vitorioso em casa, certo de que havia adquirido uma peça de grande valor e novamente por um preço baixo. Não que cinqüenta reais fosse pouco, eram todas as suas economias, mas pelo mistério que envolvia a peça, ela deveria valer muito mais.

Como o dinheiro estava escasso e o velho ausente e com a loja fechada, o menino ficou bem umas três semanas sem aparecer no shopping. Mal sabia ele que um certo “gringo” estava ansioso demais para conhece-lo pessoalmente.

Naquele sábado ele retornou à loja e nem reparou que na tabacaria adjacente estava um certo senhor alinhado comendo uma deliciosa trufa de chocolate.

Ficou sabendo naquele dia que na semana seguinte o antiquário retornaria a sua rotina e ficou feliz porque ele se curara da doença e melhor do que isso, voltaria a se divertir com as desculpas do velho. Ficou sabendo também que um senhor, que parecia ser um inglês, veio perguntar sobre a peça que ele comprara e ela não sabendo indicar o nome ou seu endereço, dissera apenas a sua descrição e que volta e meia ele aparecia pela loja, segundo suas próprias palavras.

– Será que esse cara quer a taça de volta? – Questionou-se o garoto ao sair da loja. A partir daquele instante o ar de mistério voltou para a sua vida. – Só devolvo se ele pagar muito bem. Minha mãe vai ver que sou um bom negociante e não irá mais reclamar de minhas coleções. Isso mesmo ela vai ver.

Tão compenetrado em seus pensamentos estava o menino, que poderia ser chamado de rapaz, que não percebeu a presença do lorde inglês em seu percalço. Tanto era rapaz que já possuía a sua própria chave de casa e surpreso ficou quando ao abrir a porta do bloco B de seu edifício, percebeu a presença assustadora do misterioso “gringo”.

– O que você quer de mim?

– Algo que está em sua guarda e que deveria estar sob a minha.

– Se for daquela taça de madeira que você está falando...

– Você não entende e nunca compreenderá o risco que correm, você e seus familiares, por terem em seu poder aquele artefato.

– Não sei do que você está falando, ela é muito minha. Eu comprei com o meu dinheiro. E ela não parece ser perigosa.

– Tanto é que muitos morreram em sua busca e outros tantos para mantê-la escondida. Para o seu bem, me devolva o cálice.

– Fora de cogitação! Eu paguei e vou ficar com a taça.

– Olhe nos meus olhos garoto. Você verá que não estou mentindo. Devolva-me e prometo que um dia eu retorno no momento certo. Mas saiba que você um dia já fez parte da missão.

Parecia loucura, mas havia verdade em seus olhos. Deixou-o na porta e retornou com o objeto que era mais misterioso que parecia. Este retirou uma botija e despejou água na taça, pedindo que bebesse.

O garoto bebeu e sentiu vida descer por sua garganta. Perguntou que misterioso objeto era aquele que chegou a possuir.

– Você já ouviu falar do Rei Salomão? De José de Arimatéia? Do Rei Arthur e os Cavaleiros do Távola Redonda? – Perguntou o homem.

– Sim nas aulas de história, mas o que liga tudo isso ao cálice?

– O que tiveste nas mãos era o Santo Graal! Longa vida a nós, cavaleiros do templo! – falou o homem em sua despedida.