OBSESSÃO

OBSESSÃO

Severino era apaixonado por Gerusa. Uma fixação que o impedia de ter interesse em qualquer outra mulher. Ele sempre a observava: quando ia e voltava da escola, quando ia à igreja com o pai, aos domingos, rezar pela alma da mãe morta, tísica. Ela era filha única e ficou com a responsabilidade de cuidar da casa. Ele sempre dava um jeito de estar bem próximo dela. Gostava de sentir seu cheiro, de ouvir a sua voz, apesar de ela nunca ter falado com ele e nem ter certeza se algum dia ela o havia notado. Mas ele era persistente e sabia esperar, ainda tinha muita vida pela frente. A oportunidade de se aproximar aconteceu quando, num dia em que ela voltava da escola, deixou cair um caderno e ele, ágil como um cão, alcançou-o antes dela e, com toda a delicadeza, entregou-lhe o objeto, fixando o olhar aos seus olhos. Ela deu-lhe um sorriso tímido em agradecimento, ao tempo que lhe dizia um quase inaudível obrigado e afastou-se rapidamente. O seu coração apaixonado encheu-se de esperança, alimentado por cruel ilusão.

Um dia, na esperança de nova aproximação, juntou os poucos trocados de que dispunha e comprou um presente para ela: um lindo buquê com três rosas vermelhas muito perfumadas. Ela precisava saber do seu amor. Eles eram tímidos, e se ele não tomasse a iniciativa jamais viveriam seu sonhado romance. Foi o que fez no início daquela tarde de sol quente, depois que ela deixou a escola e virou a esquina em direção à sua casa, na rua vazia, sonolenta e poeirenta do sertão. Ele aproximou-se, entregou-lhe o presente e comunicou o seu amor. Ela assustou-se e disse-lhe que era louco, que tirasse a ideia da cabeça, afinal nem sabia quem ele era. Uma única vez ela lembrava-se de tê-lo visto: no dia em que ele lhe entregou o caderno que deixara cair. Disse-lhe que estava muito enganado e que jamais pensaria em namorá-lo.

Nem depois do inesperado passa-fora ele deixou de amá-la e, um dia, à porta da igreja ele a ouviu falar para o pai:

“Aquele rapaz feio que está ali junto à porta, com cara de cachorro, está me perseguindo. Eu tenho medo dele.”

Jamais ele pensara em ouvir, da boca de quem tanto amava, aquelas palavras tão cruéis. Serviu-lhe, entretanto, para dar à sua vida um novo rumo. Cachorro, era isso que ele seria a partir de então.

Ele passou a ser visto perambulando pelas redondezas com um bando de cachorros vadios que viviam em cavernas escavadas nos morros fora do povoado para se abrigar das intempéries. Invadiam os sítios durante as noites para atacar os galinheiros. Era um bando grande, mais de uma dezena de cães, que tinham se afastado dos seus antigos donos por falta do que comer e o instinto de sobrevivência fê-los voltar à selvageria. Contam que Severino não só vivia com os cães, também agia como eles. Diziam que andava de quatro e os acompanhava no assalto aos sítios e que, não poucas vezes, o viram lá por onde viviam, disputando as cadelas no cio, até latia e gania, completamente integrado àquela vida animal.

O bando, silencioso, por diversas vezes foi visto, durante as madrugadas, em frente ao portão da casa de Gerusa. Como os sitiantes começaram a usar maior rigor na vigilância de suas criações, eles passaram a buscar, também, os animais maiores para aplacar a fome e já estavam atacando pessoas.

Curiosamente, todos os rapazes que se aproximavam de Gerusa eram, depois, encontrados com o corpo dilacerado, vítimas dos cães. Por conta disso, todos passaram a se afastar dela, receosos. Diziam que ela estava amaldiçoada, que era uma bruxa e atraía os cães para quem se aproximasse dela. Vivia em semirreclusão. Deixou de ir à escola e chegou a ser apedrejada e quase linchada quando o seu próprio pai foi atacado e morto pelos cães. Seu corpo foi encontrado numa estradinha perto do sítio em que moravam com as vísceras expostas e um buraco bem grande no abdome, serviu de banquete para a matilha.

Certa manhã, sua casa foi encontrada toda aberta e abandonada. Ela desapareceu. Depois disso os animais não voltaram ao povoado e o grupo quase extinguiu. Alguns anos depois restavam poucos deles que ainda eram vistos, às vezes, acompanhados de um homem e uma mulher com duas crianças, todos de hábitos caninos.