Sombras e Perspectiva

Passos molhados se desviam sob sombras projetadas por guarda-chuvas. Poças, sapatos e asfalto. Pernas, relógios, pressas e grilhões. A infinidade de sons adormece os ouvidos e a aflição de destinos entrecruzados é nada além de estática, inércia, calmaria e o cumprimento de um dever religioso e inquestionado.

Há algo de tolo. Há algo de Chaplin. O caminhar cambaleia acompanhado pelo estender de braço e desgrudar de dedos. Mas antes que a testa completasse seu amanhecer por sobre as pessadas sobrancelhas, os dedos, entreabertos, na altura da cabeça, atravessados pelo vento pesado e morno, já haviam se perdido no tempo. De repente pensou ter ouvido as vozes da natureza e, também no mesmo de repente, pensou ter descoberto que fora tudo ilusão óptica.

O peito palpitou acelerado na possibilidade da vergonha. Os olhos cobertos pelo chapéu poderiam ter limitado a visão, e os demais, também submersos no estreito campo de jogo balizado por sombras e abas, sequer teriam notado que seu acalorado braço ainda estava ao alto e que sua mão estava ainda a espalmar gotas de chuva que desciam ao mundo dos seres em direção diagonal.

Percebeu em seu rosto algum calor quando levantou outra vez a cabeça e viu que seu cumprimento se desfazia, estranhamente, com lentidão. E denovo a vergonha. Aquela vergonha de morte que soca peito, estômago e fígado quando se sente rejeitado. É mesmo possível que o relance o tenha enganado a consciência. Mas é também possível que ela o tenha visto e que, movida pelo instinto da urgência, tenha desprezado o seu aceno.

Há algo de tolo, pensou. Buzinas, motores, passos, chacoalhar de bolsas, pernas, braços e o gritar incansável dos vendedores ambulantes entraram, de uma só vez, nos seus tímpanos. Estou morrendo, pensou.

Sempre cogitara que a presença da morte chegaria em companhia do pavor e do pedido de clemência para tentar tudo uma vez mais, como vira em alguns filmes. Chegou a sonhar com a morte algumas vezes, mas agora tudo o parecia cruelmente frio e real. Agora, tudo o que havia era barulho.

A chuva ficava mais forte e sentiu que seus lábios se moviam independentes. Sentiu como que seus olhos, só a partir daquele momento, abriram-se. E, no fim da travessia, com um pé sobre o meio-fio e o outro no asfalto deslizante, um maltrapilho o olhava com feição ingênua e de cuidado.

Os olhares se atravessaram por alguns eternos milésimos de segundo.

Seus dentes batiam tão fortes e tão rápidos que podia, mesmo sob o fragor da chuva, ouvi-los. De lá, o velho agarrado numa garrafa sem rótulo, gritou com voz rouca: só morre aquilo que vive.

E então ele viu a chuva. Era como que o bico de pena divino houvesse sido derramado por descuido sobre os dias dos homens. E então ele viu as esquinas, e então ele viu dois pontos de fuga e um horizonte. E fora ali, naquele instante, que aprendeu a construção das formas e a medida proporção da sorte. A vida se amarela e a eternidade é inimiga das traças e da umidade.

Diogo Nunes
Enviado por Diogo Nunes em 09/11/2008
Reeditado em 09/11/2008
Código do texto: T1274128
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