Réquiem para um gole de café

É tudo negro. Negro e silencioso. Um universo de piche onde Nix e Érebro, como Romeu e Julieta, se desejam distantes, com olhos vendados por um pano sujo e velho, em miragens mortificadas, secretas e taciturnas. Um universo despovoado de vida, pois. É tudo negro e silencioso. É tudo negro, silencioso, mas não imóvel. É líquido, pois, e se move. Balança em desjeito, casual e irracional. O mar negro é o universo da vista. E o que se vê é tudo. O que se vê é sempre tudo. E o tudo é um oceano sem luz.

Do nariz e do buço algumas águas de corpo ensaiam um breve ballet. Um vapor ousado adentra as narinas e queima em sutil liberdade as paredes cavernosas das avantajadas ventas. O calor se divide em dois e penetra o corpo através das negras aberturas, atravessa os canais e se encontra, em unicidade líquida, nas fossas nasais. A garganta engole de véspera, pueril e anciosa, um trago de perfume amargo e com pouco açúcar. A boca se move. A boca mastiga, com língua comprimindo o palato, saliva.

O ardor sobe e desce.

Entra e sai.

E toca as pálpebras…

Arde.

Lacrimeja.

As bochechas colorem. Se enrugam. Felicitam.

Os lábios, se desgrudando em cinema novo e sem cor, se separando vão… Como dois braços, como duas mãos que se pertencem e se separam. Uma na estação. A outra, através da janela, cujo corpo dono, dentro do trêm que parte, roça aflito o banco, na saudade inquieta e antecipada do Adeus dito com os olhos.

O vidro quente, quente, quente, queima. O lábio inferior. Suporte.

Inclina.

E escorre…

O lábio debaixo, vermelho, aquecido e vivo. Com cor. Quente.

Cílios com cílios. A pestana em suave dormência. O tudo, então, mais um vez, em breu. Espremendo-se nas paredes fechadas dos olhos, o vapor morno do trago que banha os dentes. Brancos. As papilas pulam. Os dentes, antes brancos, sorriem em amarela alegria tingida. O infadigável músculo descansa sob a fluidez do arroio. Corixa. Córrego. Grota. Ribeira. Vazante. Sanga. O desaguadouro segue seu divino curso garganta-a-baixo. Adentro. E deixa rastro. Amargo. Escorre uma gota melindrosa pela pequena frincha do canto direito da boca, agora aparentemente fechada.

O copo, de vidro, neblinado pelo eflúvio, agora repousa de pé, sobre o balcão farpento e úmido. O copo, de vidro, solitário. No seu fundo, ainda algum resquício do que fora. Algumas gotas não bebidas como pegadas propositais de um assassino que quer se encontrado. Secreção aquosa, transparente, insípida, levemente alcalinada, segregada pelas glândulas sublinguais e submaxilares, em transa exótica e minuciosa, pororoca, com a borra aguada que relaxa no fundo do copo de vidro. Em gozo. Cuspe. Baba. Saliva. E restos do que fora café.

O copo, de vidro, pequeno e aquadradado, neblinado e esquecido como um quarto de hotel vazio que admira, em carma, a passagem dos carros sobre o cansado asfalto da sua amante em segredo, a estrada, respira sonolento a solidão do balcão úmido e com farpas. Respira sonolento e em alivio. Dever cumprido. Eterno retorno. Logo, a mão gorda e cascuda o há de levar. Logo, pronto outra vez, sob gotas da água fria da bica, ao lado dos demais, nada guardará das lembranças de morrer. Agora, é tudo claro e vazio. Há luz. Há luz, silêncio e mais nada.

Diogo Nunes
Enviado por Diogo Nunes em 19/11/2008
Reeditado em 20/12/2008
Código do texto: T1292201
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