Vento Frio

Ele não era ninguém mais do que uma pessoa comum como as pessoas comuns podem ser. Nem rico, nem pobre, apenas o simples e o trivial que comanda a vida sem graça das pessoas triviais da cidade grande. Que moram nos subúrbios, que trabalham e que nunca juntam dinheiro. O que não fede e nem cheira. Um José qualquer como tantos outros Joãos que existem por aí.

Possuía tantos sonhos quanto pesadelos não realizados. Acreditava na fé de um jogo, mas sequer passou de dois acertos. Nem mesmo em cartões separados. Mas não era um azarado, embora não soubesse ao certo descrever o que é a sorte. Se achava bem casado, embora não soubesse nada dessas coisas de paixão. Tinha bons filhos, sim, muito bons filhos. Um trabalha, o outro estuda e um terceiro apenas brinca.

Sua esposa já havia cumprido seu papel: lhe dera os bons filhos. Agora se tornara um pessoa para uma boa conversa para os dias de chuva.

Jamais questionou a profundeza do mar ou a razão do pensamento. Tinha suas preocupações e ocupações corriqueira. Era de fato uma pessoa comum.

Embora jamais tivesse prestado atenção, os dias passavam e traziam, cada vez com mais força, o estandarte da idade. Pela manha, passava as mãos a pentear o cabelo e se barbeava. Se barbeava todos os dias. Aprendeu isto no quartel, mas não se lembrava disto e nem havia nenhuma necessidade de se lembrar. Para isso, havia se acostumado a sua agenda. A agenda existe para nos descansar a memória, dizia. No entanto, sempre precisava exercitar sua mente para encontrar sua pobre agenda. Não vivia sem ela.

A cada final de ano repetia o processo de celebrar o natal na casa de sua família e o ano novo na casa dos sogros. Mas no fim daquele ano chuvoso foi diferente. Não pode ir para a casa dos sogros e assim se seguiu pelo resto da vida.

O que descreve uma tragédia, afinal? Pensava sempre. Não é necessário Ter sangue ou carne podre. Não é preciso um romance às avessas como pano de fundo. Não. Nada disso é necessário. Basta unir tristeza e certeza. Duas palavras, uma rima, e nada mais pela vida nos consola.

Ele não era ninguém além de uma pessoa comum, que comunga da sabedoria popular, que conhece o sofrimento tão comum nas pessoas comuns. Não era filósofo. Não sabia sequer o significado dos termos difíceis que raramente usava. Até porque agora andava em silêncio. Meio rouco e muito triste.

Pela manhã passava as mãos no cabelos, porém o embaraço impedia seus dedos de adentrarem. Pelo menos assim seus pensamentos estavam protegidos. Não ousava pensar no dia em que sua família inteira desapareceu. Sem motivo ou bilhete. Sem testemunha ou vizinho, se foram. Ele gritou o quanto agüentou e chorou o gosto de sua terra no sal dos olhos. Era a dor sem ferida.

A incompreensão atordoa, corrói. Fantasiou bandidos, acidentes, amantes e mesmo assim a verdade jamais se mostrou. Assim perdeu a noção dos dias, porque estes, para ele, não mais existiam. Sua barba era grande, rústica. Esqueceu de vez do quartel.

Se lembrava de chegar em casa e encontrar uma casa vazia, janelas abertas, coração fechado. Se lembra, ainda, de cada pessoa que encontrou na rua, de perguntar para cada um, e das respostas negativas: ninguém viu, ninguém conhece.

Seu caçula, sim, a lembrança dele era mais doída. Onde estaria? Estaria bem, com fome, com sono? Sente falta de conversar com a esposa, ainda mais quando chove.

Suas roupas estão rasgadas e seu corpo cheira mal. Mas não importa, é preciso procurar.

E assim passa os dias pela rua de uma cidade sem nome e sem dono. Procura pela mulher que era boa esposa, pelo filho que trabalhava, pelo que estudava e, principalmente pelo que brincava. É sempre em vão. Suas pernas doem, descansa um pouco, um pouco de sono, mas sempre segue adiante.

O vazio é somente um lugar a menos na alma, pensava. O vazio não toma o lugar de quem se foi, principalmente quando não sabemos para onde, chorava. O vazio é somente uma outra dor.

Olá, disse quando chegou. E ninguém respondeu. To chegando... o silêncio se fez ouvir. Pegunta ao vizinho: estão aí? Apenas um balançar negativo de cabeça. E assim nasce o desespero.

Debaixo da cama, no banheiro, atrás da porta, na rua de baixo, na casa da sogra, funerária e hospital. No rio quem sabe, na praça ou no mato, num canto, na rua, na lua.

Porém, só se via uma certeza incômoda de que não mais os veria. Por isso caminhou e ainda procura. Apenas uma coisa lhe consola: os panfletos nos postes de outras pessoas procurando parentes perdidos. Havia um que lhe chamava atenção e que dizia: Boa esposa, um filho que trabalhava, um que estudava e outro que apenas brincava procuram pai de família desaparecido há inúmeros anos. Era tão comum quanto as pessoas comuns podem ser, tinha boa conversa nos dias de chuva. Um dia não voltou para casa. Quem souber, por caridade nos avise.

Amargo
Enviado por Amargo em 08/01/2009
Reeditado em 09/01/2009
Código do texto: T1374351
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