A Enseada e a Vendedora

Pisquei os olhos e acordei nesta enseada, eu, que ontem era professora de uma importante escola canela-verde, hoje estou aqui, nesta enseada vendendo óculos de sol. Ainda bem que esta enseada é procurada por turistas de todo o mundo por suas qualidades excepcionais de revelar o futuro através de visões que visitam os banhistas quando eles menos esperam, quando estão bem quietos perto do mar, esticados na canga tomando sol e lá vem ela, a visão ataca, mostrando o futuro do felizardo se ele tivesse tomado outro rumo na vida. E não são poucos os que procuram a praia para tentar ter a sorte de serem premiados com a visão. Meus óculos escuros são perfeitos para estas pessoas porque possuem lentes duráveis e que não prejudicam a vista, diferentes desses que existem na praça cheios de defeitos, que quebram à toa e que não protegem as retinas. No meu tabuleiro de óculos tenho sempre vinte peças à exposição para meus clientes e na minha bolsa tenho mais dez de reserva, todos oferecidos para mim pelo grande exportador de mercadorias visconde de São Torquato, amigo meu de longa data, tão longa que ele ainda era marquês e fabricava bolas de madeira para os jogadores da elite jogarem bocha. Ele e eu sempre fomos apoiadores do esporte, afinal, para que serve a aristocracia? ser mantenedor das artes e dos esportes, ser um mecenas já é tradição e não poderíamos fugir à regra. O visconde é muito simpático e toda semana vem até aqui trazer suas mercadorias para nós, eu e minha amiga Alice, vendermos. Alice teve inclusive uma caída pelo visconde mas eu chamei-a perto da castanheira e tive uma conversa muito séria com ela e disse que não seria possível misturar amor com negócios, poderia atrapalhar, e ela pareceu entender pois nunca mais falou no assunto. Eu achei ótimo e dei um jeito de apresentá-la ao sr. Ângelo, também da aristocracia vila-velhense, conhecido como o rei da tapioca. Ele e seu irmão têm uma barraca de tapiocas recheadas num ótimo lugar no calçadão, lugar privilegiado perto da parte mais larga e embaixo de uma castanheira. Na verdade eu conheço mais o irmão dele , o príncipe Anderson, que já comprou comigo um par de óculos dos mais caros, o que mostrou-me de pronto suas posses. Claro que comentei isto com Alice para preparar terreno antes de apresentá-la ao rei, e ela ficou logo muito animada, tão animada que marcou sair com sr. Ângelo, disse que iria comer um churrasquinho de camarão na barraca do Edu. Eu a preveni que se o rei passasse dos limites, se quissesse passar a mão no colo dela ou a língua no ouvido, sinais claros de abuso, ela deveria correr e tomar o primeiro ônibus para casa. Depois contou-me que tudo correu às mil maravilhas e ele foi muito cavalheiro o que me deixou muito feliz, e pessoas felizes vendem mais, o que provei ser verdade vendendo dois pares de óculos para dois turistas que vieram pela primeira vez à Enseada. Estavam perdidos mas depois expliquei-lhes que não era em todos os pontos da Praia da Costa que as pessoas tinham visões, que somente a parte entre a pedra da sereia e o clube Libanês oferecia propriedades mágicas, que a melhor hora do dia era entre as dez e as onze horas da manhã. Eles ficaram tão satisfeitos com minha ajuda que pagaram-me dez reais pelas dicas. Claro que minha consultoria valia muito

mais mas fiquei quieta para não ofendê-los, perguntando depois solicitamente se haviam tido sorte, ao que a mulher disse que não, que não havia tido nenhuma visão de futuro, o que foi partilhado pelo homem ao seu lado. Paciência, nem todos são premiados, é como achar uma pérola, nem todas as ostras a têm mas a procura continua, a persistência é o mais importante, como sempre falo para meus alunos, não os que tive no passado mas os que tenho agora. Futuramente voltarei para meu antigo posto de acadêmica mas por enquanto ensino ao ar livre, inspirada nos filósofos gregos. Todos os dias, ao chegar com minha mercadoria já sei que aos poucos virão os alunos, espontaneamente, livres, como deve ser o ensino de qualidade e adulto. O aluno que chega mais cedo é o médico, usa sempre calções brancos para andar no calçadão com bastante pressa, tem um relógio que conta o tempo percorrido e as batidas do coração. Ele é muito simpático e seria até bonito se não fosse a grande barriga, que não some apesar da caminhada diária. Sempre tem perguntas a fazer-me com relação ao mundo, aos acontecimentos, as curiosidades, isso presumo é devido a sua vida fechada no hospital, sempre em salas de cirurgia com pessoas doentes a sua volta, pressão para atendimento e tudo o mais. Ensino-o pacientemente as leis do marketing, como atingir o público certo, a influência do signo na compra do dia, quem prefere óculos redondos, quadrados, ovais, os tipos de temperamento, como receber o pagamento, como reagir às pechinchas...ele ouve-me sempre atentamente enquanto toma sua água de coco, a testa a suar horrores, e depois eu o dispenso para continuar seus exercícios, claro que sem cobrar pois todos os meus alunos não pagam pelas aulas, sejam eles ricos ou pobres, pobres como sra Geraldina que tem grande dificuldade em acompanhar meu raciocínio, afinal tem pouca instrução. Ela vem para as aulas por volta das oito e meia da manhã e vem sempre calma, varrendo o meio fio, naquele ritmo cadenciado de juntar a areia junto às folhas e depois recolhê-las com a pá, jogando no carrinho. Nossas aulas são sempre sobre filosofia européia, mais tarde passarei para a filosofia chinesa, e ela parece gostar muito. Discutimos sempre sobre os conceitos metafísicos, a origem do Homem e suas fraquezas, as virtudes os sonhos, as diferenças, o que significa a felicidade, e seus olhos sempre têm um brilho de interesse ao ouvir-me em meus discursos. Somente gostaria que ela participasse mais, que desse mais contribuições às idéias de Aristóteles, Spinosa, São Tomás de Aquino, mas seu raciocínio não é tão rápido, temo admitir, e contento-me a falar sozinha, não tem problema. Ao final sei que minha aluna irá para casa com grandes conceitos e ao cozinhar seu arroz, seu feijão, olhará com outros olhos para seus alimentos e seu casamento, o que já será significativo pois pensar o casamento não é tarefa para fracos. Já dei consultoria sentimental para dois alunos que passam pelo calçadão lá pelo meio da manhã, dois altos servidores do governo, que há dois meses brigaram feio, todos perceberam, inclusive os pescadores. Eu os chamei reservadamente e com muito tato perguntei o que se passava e compreendi que o marido havia traído a mulher com uma amiga do casal. Aconselhei-os a serem pacientes com esta fase de transição e senti que o divórcio era iminente, então eu mostrei a eles a importância de serem amigos, de não estafarem os familiares por causa do problema, que cuidassem dos filhos com atenção e eles ficaram agradecidos pelo meu interesse, se bem que não pareceram muito dispostos a efetivamente fazerem o que eu havia aconselhado, mas isto faz parte do ofício. O ensino é dos ofícios mais nobres e percebi que não poderia voltar a ser acadêmica sem uma merecida especialização então munida da certeza de que só se filosofa em alemão fui fazer uma pós-graduação em Berlim. Cheguei bronzeada pelo sol da Praia da Costa e contrastei-me com todos os berlinenses já de sopetão, principalmente com a estátua viva toda pintada de branco em um pedestal na praça, pronta para ganhar umas moedinhas num chapéu virado de cabeça para baixo perto dela. Dei-lhe uma moeda de real e a estátua viva virou-se em minha direção agradecendo, ao que eu refiz seu gesto polidamente e continuei meu caminho até a escola de estudos avançados a dois blocos dali. Quando cheguei fui muito bem recebida e na minha pasta fui corretamente identificada como acadêmica, o que me agradou deveras. Entrei para a primeira aula e encontrei na sala de dez alunos mais dois brasileiros, um rapaz e uma moça dos estados de Mato Grosso e Piauí que foram muito gentis comigo, tanto ao fazermos o trabalho da aula, uma dissertação sobre o sistema brasileiro de criação de abelhas, quanto ao passearmos depois da aula pelas ruas alemãs limpas e bem frequentadas por apreciadores de chucrute. Herta e Franz, os brasileiros, convidaram-me para ficar hospedada com eles em um alojamento bastante arejado e limpo na universidade de Berlim, ao que eu aceitei de muita boa vontade principalmente por ser de graça. A universidade tinha um lindo jardim na frente e um refeitório branco muito simpático com bandejão a preço bem popular. Senti na universidade uma presença latina bem interessante com a realização de um festival de música e cultura brasileiras organizado pelo departamento de jornalismo. Franz, Herta e eu fomos convidados para assistirmos à mostra brasileira, o que fizemos na quarta à noite depois de irmos ao nosso curso, e ao fim de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha fomos convidados para a mesa redonda de discussão sobre o filme. Não sei se por timidez ou falta mesmo do que falar, somente eu, dos brasileiros, comentei a fundo as características do filme, causando grande atenção por parte da platéia, o que resultou em uma grande ovação ao final com duração de cinco minutos. No calor da ovação sra Ester, organizadora da mostra, chamou-me a um canto e convidou-me a dirigir um filme alemão produzido pela universidade, ao que eu rapidamente aceitei. Disse então a Franz e Herta que não faria mais a pós e telefonei no dia seguinte à escola adiando meu curso para o ano seguinte. Eles foram muito compreensivos e parabenizaram-me por rodar um filme em sua terra, tarefa que começou já no dia seguinte, porém era um filme alemão rodado não na Alemanha mas sim na África, e fomos toda a equipe para Marrakesh, onde filmamos a primeira cena na grande praça cheia de vendedores de comida, de água, encantadores de serpente e artistas de circo. Naquela balbúrdia misturada de árabe com francês e espanhol filmamos algumas cenas importantes do filme onde o casal protagonista teve uma briga por causa da religião, onde a moça queria ser muçulmana porém não usar o véu e o marido não a apoiava. Depois da filmagem fomos todos para o hotel onde comemos cuscuz marroquino e tomamos um delicioso chá de hortelã para ganhar forças, o que foi muito bem vindo pois dia seguinte viajamos mais ao sul e chegamos até a cadeia de montanhas Atlas, linha demarcatória da parte mais fértil do país com o começo do deserto do Saara. No Atlas filmamos cenas de camelos, berberes, tendas e oásis para a parte digamos "mil e uma noites" do filme. As cenas ficaram muito boas e na edição mantive várias delas. Após dois meses de filmagens conseguimos finalmente dar o filme por encerrado. Voltamos a Berlim e demos os retoques finais em estúdio e na ilha de edição inserindo inclusive alguns efeitos especiais. Por fim fechamos o título em "Os veios dos véus" e o mostramos em avant première no maior cinema de Berlim, com grande sucesso. Após uma semana de merecido descanso voltei às aulas da pós e junto com meus amigos Herta e Franz começamos a fazer uma interessante pesquisa sobre a aceitação histórica de pequenos delitos na formação de uma sociedade altamente corrupta quando recebi um telefonema da sra Ester feliz da vida ao dar-me a notícia que nosso filme foi indicado ao Oscar de melhor filme, melhor figurino e melhor roteiro original. Felicíssimos ficamos toda a equipe e os produtores da universidade e seguimos todos em comboio para a festa em Hollywood. Após carimbar minhas mãos e assinar meu nome na calçada da fama nos preparamos e seguimos lindamente para o teatro, onde tirei muitas fotos no tapete vermelho, fotógrafos gritavam meu nome e jornalistas acotovelavam-se por uma pequena pose. Ficamos a praticamente três passos do palco e efetivamente nós os atravessamos quando "Os veios dos véus" foi chamado para receber o Oscar pelo melhor figurino. Toda a equipe exultou e em meu discurso agradeci o trabalho incansável das figurinistas que fizeram um guarda-roupa baseado na história do filme, nos personagens, na estação do ano, na moda do Marrocos, nos tecidos ecológicos e nos signos nos atores, além de gritar o nome do Brasil e do Espírito Santo. Recebi muitos cumprimentos na festa dos ganhadores e ao enfiar uma empada inteira na boca fui apresentada a taicoons chineses e japoneses muito formais em seus ternos azul-petróleo e maneiras orientais. Após alguns salamaleques, ou melhor, após salam ale cum, os taicoons elogiaram muito o figurino do filme e convidaram-me a visitar sua fábrica de seda na China, convite imediatamente aceito. Após a noitada maravilhosa acordei num banco da praça de Los Angeles próxima de uma estátua viva a olhar-me com curiosidade, coisa que irritou-me deveras, e xinguei-lhe de filho da puta em alemão com o efeito do álcool ainda em meu sangue, o que serviu

para acordar minha alma sonolenta e impelir-me a tomar um banho no hotel em que estávamos hospedados. Após uma despedida chorosa peguei meu vôo para Pequim onde após um dia inteiro de viagem os taicoons já aguardavam-me para a visita prometida na bonita fábrica, situada a vinte minutos do centro da cidade em uma área verde muito arejada cheia de árvores chinesas e alguns bambus. A fábrica possuia grande área com amoreiras e panelonas para matar as pobres lagartas e poder desenrolar o fio do casulo, lindo, lustroso, prontinho para receber lindas cores em tecidos enormes. Em meu quarto no hotel Flor de Lótus eu sonhava freqüentemente com a fabricação da seda, com as lagartas mortas em prol de nossa vestimenta e grande culpa surgia em minha mente, tanto que bati longos papos com a dona do hotel, uma chinesa simpática de longos cabelos em coque e pequenos pés deformados pela mãe para que não crescessem. Ela contou-me algumas lendas sobre batalhas e guerreiros e moçoilas vestidas em seda vermelha, e horas ficávamos a papear na cozinha. A senhoria conhecia muito do processo da fábrica e decidiu ensinar-me alguns segredos muito bem guardados para fabricar bons tecidos, o que fez-me uma especialista em muito pouco tempo, pelo menos na teoria, e fez-me pensar em ficar seis meses em Pequim para aprender mais e trabalhar na fábrica. Dois dias depois disto decidi ir embora a acompanhar um carregamento de fios no qual participei ativamente em meus olhos e minha mente, carregamento que sairia do país pela rota da seda via trem. Contentes saimos de Pequim em carros até a estação ferroviária a acompanhar o carregamento que foi colocado na parte cargueira sendo que nós seguiríamos de primeira classe, não sem antes apresentar, carimbar e assinar toda a papelada necessária para seguir viagem. Partimos junto com as nuvens e pegamos muita chuva no caminho para Dunhuang onde fiz questão de saltar e visitar as cavernas Mogao e o Lago da Lua. Continuamos o trajeto até Turban onde almoçamos no Pagode Sugong e lanchamos nas ruínas da cidade Jiaohe. Fiquei satisfeita por chegar a Urumuqi pois tinha grande amiga a morar lá, perto do Lago do Céu, onde passeamos, tomamos chá e colocamos a conversa em dia pois fazia anos que não nos víamos. Ela abriu seu coração, contando-me sobre o marido machista, as filhas ausentes devido ao trabalho com os maridos e sogras, e a falta de dinheiro. Trocamos queixas de nossas vidas mal-arrumadas e eu disse adeus, afinal precisava seguir minha rota cadenciada, rota existente a tantos anos, que entrou para a história. Às vezes eu olhava pela janela e imaginava tantas doenças, mortes, dificuldades que seguiram os carregadores da seda para levar sua mercadoria até a Europa, mas qual trabalho é fácil, afinal? nunca vi algum. desde plantar alface e esperar pela chuva até escrever milhares de linhas de programas de computador, para tudo precisamos penar, claro que há os momentos de refresco, e eu pensava nesses refrescos do trabalho quando, no Turqueministão, vi uma passeata em Ashgabat e desci na estação seguinte. Era uma passeata por melhores serviços públicos e eu imediatamente troquei meu relógio por uma bandeira nacional e segui os manifestantes por quase duas horas. Terminamos a passeata em frente à sede do governo gritando palavras de incentivo, claro que eu imitava somente a última palavra de cada frase aos berros, sem saber o significado, mas produzi grande efeito, a julgar pelos cumprimentos que recebi ao final da passeata dos que pareciam ser os organizadores. Eram muito simpáticos e convidaram-me, em esperanto, para fazer parte da comissão que negociaria com o presidente, e eu modestamente aceitei juntar-me à força-tarefa, que consistia em um grupo de dois homens e uma mulher prontos a estudarem maneiras melhores de lidar com os serviços públicos, praticamente decadentes. Hospedei-me no melhor hotel da cidade, que possuia um banheiro por cada andar , e reunia-me todos os dias pela manhã com a comissão, trabalhávamos até ao meio-dia e á tarde íamos a campo pesquisar o que a população gostaria de ter em seu governo. E tanto fiz estas pesquisas, em esperanto, que o encarregado da comissão conversou com o líderes do partido e convidaram-me para ser ministra dos melhoramentos nacionais, cargo criado especialmente para mim, o que produziu em meu ego, devo admitir, um salto extraordinário. Logo procurei e consegui um gabinete no palácio com mesas, computador e telefone e pus-me a trabalhar em prol do controle da inflação, todos os países a têm, e fim das mordomias administrativas do colarinho branco, um trabalho hercúleo que trouxe-me antipatias compreensíveis dos culpados, embora claro também trouxesse apoio dos honestos, que infelizmente não conseguiram impedir que em dois dias no cargo de ministra eu fosse deposta e deportada para o Quirguistão onde achei-me só e triste pelas vicissitudes da vida, mas sequei as lágrimas com as costas da mão e fui passear pelo mercado de alimentos de Bishkek. Lá entre cereais e ervas fiquei íntima dos vendedores, pessoas sofridas, que perguntavam-me sobre o Brasil à toda hora. Decidi então ensinar português a um grupo de cinco pessoas utilizando uma salinha ao lado do depósito, que fora o cheiro de podre deu um bom lugar para as aulas, e assim fiquei por vários meses mas ao chegar no adjunto adverbial já estava entediada e então comprei passagem ferroviária só de ida para Constantinopla (que na estação descobri havia mudado de nome para Istanbul) e pus-me a caminho. Havia comprado assento de segunda classe e lá pude observar as inúmeras brigas de casais por motivos banais, o que causou-me pena, pedi licença e intrometi-me nas brigas tomando partido hora de um, outra de outro, até que os casais já vinham naturalmente a mim antes de brigarem efetivamente para pedir-me conselhos. Estes aconselhamentos matrimoniais continuaram por toda a viagem e combinei com o bilheteiro para trazer outros casais da primeira classe para aconselhamentos também. O bilheteiro, embora meio lento, era simpático, e começamos a flertar involuntariamente até que nosso romance tornou-se inevitável e terminei a viagem entre beijos e abraços. Em Istanbul vivi com o bilheteiro, que trocou de emprego para ficarmos juntos, por felizes quatro meses e meio, tempo suficiente para descobrir nossa incompatibilidade de gênios e nos separamos amigavelmente, tão amigavelmente que ele comprou-me um bilhete até Veneza. Parti acenando um lenço branco entre a fumaça da estação e deixei-o lá em pé com o boné no peito o que causou-me tamanho impacto que tomei doses cavalares de tranqüilizante para morrer. Acordei e fui para a Piaza San Marco dar milho e posar como suporte de pombos - e cocô de pombo - para os turistas. Porém os excrementos eram tão ácidos que afetaram minha saúde e acabaram com minha fonte de renda e forçou-me a buscar outra saída. Ofereci-me em uma papelaria chique como revisora da carta fiorentina, meu portfólio corroborou muito devo dizer, no que fui aceita como trabalhadora autônoma por tempo provisório. Sentei-me na prancheta exposta para venda e trabalhei arduamente na carta e transformei as florzinhas azuis sem graça em orquídeas amarelas que combinaram perfeitamente com os delicados traços e os dourados, além de acrescentar alguns toques de bromélias laranja bem alegres só que em tamanho reduzido para ficar proporcional, o que na minha opinião ficou perfeito, na minha, porque o casal dono da papelaria achou horrível e exótico demais, o que obviamente discordo com todas as minhas forças, mas como eu era a parte fraca no acordo reuni meu portfólio e fui-me embora não sem antes reclamar na secretaria italiana do trabalho e exigir indenização por assédio moral. Como fiquei na rua da amargura não tive outra alternativa a não ser ficar nela e tentar sobreviver, o que foi possível vendendo balas de hortelã nos pontos de travestis brasileiros. Quando juntei algumas liras comprei uma passagem no expresso do oriente e embarquei na primeira classe, sendo recebida por um funcionário uniformizado e cheio de botões dourados, muito simpático por sinal, que durante toda a viagem serviu-me lautas refeições e deliciosas bebidas de frutas, se bem que gostaria de ter bebido umas caipirinhas mas desisti ao não encontrar cachaça mineira e açúcar de cana. Entre paisagens, refeições à luz de velas e passeios interessantes cheguei a Londres em um lindo dia de sol. Após correr um pouco no Hyde Park procurei emprego numa loja de chapéus e luvas no centro da cidade e comecei imediatamente. Parecia que nasci para a coisa pois nunca a loja vendeu tantos chapéus e luvas em sua vida de duzentos e dez anos o que

resultou em um quadro com minha foto como funcionária do mês, enchendo-me de orgulho. Porém eu não parava de espirrar e fui ao médico, que diagnosticou alergia ao feltro usado nas mercadorias, obrigando-me a pedir demissão contrariada. Pelo menos recebi um bom dinheiro pela rescisão do contrato de trabalho e adquiri via internet um bilhete eletrônico para o Suriname, onde cheguei animada, hospedando-me no spa das especiarias que fazia tratamentos à base de pimenta, noz moscada, açafrão, erva-doce, cravo, tomilho, além de mel, chocolate e aveia. Minha pele ficou maravilhosa e comi do bom e do melhor com poucas calorias e pouca gordura. Com os cabelos cortados e tratados, as unhas manicuradas, a pele macia e roupas de algodão cru saímos o pessoal do spa em grupo para o bar mais quente da cidade a fim de vermos e sermos vistos. Saboreando uma espiga de milho quase engasguei ao ver atrás de nossa mesa um homem perfeito, charmoso, bonito, e inteligente, como pude averiguar quando o pessoal da nossa mesa chamou-o para juntar-se a nós. Após conversarmos umas três horas ininterruptas estava cada vez mais admirada com aquele cara que tinha gostos tão familiares, jeito tão confortável. E quando olhei nos seus óculos escuros, que ele mesmo vendia, vi meu reflexo e com ele hasteei a bandeira da escola onde trabalho, uma acadêmica em Vila Velha como sempre quis.

Tatiana Brioschi
Enviado por Tatiana Brioschi em 31/01/2009
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