Cadáver

Ouço a pancada da terra sendo jogada sobre o caixão. Alguns grãos de areia atingem meus olhos imóveis e cegos. Ao longe pequenas lamúrias e alguns choros alcançam meus ouvidos moucos. Entre um soluço e outro, consigo perceber que alguém faz uma piada sobre qualquer coisa, provocando contidas risadas em seu interlocutor.

Sufoco. Se ainda respirasse, não suportaria a angústia desta escuridão. Se ainda meus olhos vissem, não suportaria a extensão destes silêncios.

Deus! Como quero gritar para o coveiro cessar seu oficio. Quero dizer a minha mãe, que chora ao lado de meu caixão e grita para não descerem com o que foi meu corpo, que ainda não acabou. Que ainda sou seu menininho e que tô com tanto medo. Mãe, não me deixe só, tenho tanto medo do escuro, mãe, prometo ser um bom menino, não vou mais puxar o rabo do gato, mãe, me abraça, me acolhe, me salva...

Dentre tão poucos que se aventuraram a vir a meu funeral, consigo identificar entre um choro e outro, entre uma piada e outra, minha ex-esposa, um amigo de infância, alguns poucos colegas de repartição, o silêncio de meu pai, meus irmãos e os gritos histéricos de minha mãe. Mãe, para com isso, escuta mãe, a senhora tá me fazendo passar vergonha, mãe. Não sou mais criança, o que meus colegas vão pensar? Mãe, não precisa gritar tão alto. Porra, não aconteceu nada de mais. Apenas acabou, mãe, tô morto.

Um padre diz as últimas palavras de adeus. Fala que a morte é apenas uma passagem e que nos veremos a todos no paraíso. Que iremos encontrar os entes queridos e que todos voltam à morada do Pai. Que Deus, no alto de sua misericórdia, console a mãe e os parentes do morto. Puta que pariu! Mandem este porra parar de falar abobrinhas. Não tô vendo nada, não encontrei por aqui meu cachorrinho que morreu quando eu tinha 5 anos. É apenas o breu, seu padre, o breu e um silêncio sepulcral (como não haveria de ser?) que me acolhem. Ademais, mãe, lembra a este padre que eu sempre fui ateu, nunca acreditei em vida após a morte. A propósito, mãe, quem mandou um padre vir a minhas exéquias? Foi a senhora, não? Foi papai? Porra, mãe, respeite minhas convicções, pelo menos depois de morto.

As últimas porções de areia são jogadas em meu caixão. Estou a sete palmos da terra, e ouço a pá desferindo as derradeiras pancadas por sobre a terra que cobre todo meu corpo. Frio e escuridão, silêncio que se agiganta com os passos que se distânciam do que fui eu. Vão voltar todos para o mundo dos vivos. Papai e mamãe para suas velhices que flertam com a senilidade e o fim; minha ex-mulher para suas contas a pagar e amantes; meus irmãos para suas esposas, filhos e putas e meus colegas de repartição para a medíocre rotina do que foi meu trabalho.

Pronto, acabou. Será que quando os vermes começarem a me devorar vou sentir algo? Será que doem os pedaços de carne caindo do que foi meu corpo? Porque falo ainda? Com quem dialogo? Será que consigo abrir os olhos? Que barulho é este ao fundo? Uma sirene? Um carro de polícia? Um despertador? Sim... É um despertador... Trimmm... Trimmm... Trimmm... Abro primeiro um olho, depois o outro. Sou agredido de todas as formas: O som atormentador do despertador, as luzes reluzentes do sol no meu rosto trazem-me bruscamente para meu real. Acordei, ou fui violentamente acordado. Então não acabou? Então não é o fim? Tô vivo?

Vivo, acordado. Tantas coisas inúteis e enfadonhas para fazer: tomar banho, ir para o escritório, fingir que amo minha mulher, desejar a mulher do próximo, bater uma punheta e dar bom dia ao vizinho. Puta que o pariu! Tô acordado...

Marcio de Souza
Enviado por Marcio de Souza em 27/04/2009
Reeditado em 05/10/2010
Código do texto: T1562683
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.