O hobby de Mariquinha

Desde criança ela sempre teve um ar angelical. Quando bebê, lembrava uma bonequinha de porcelana. O tempo foi passando e ela chegou à pré-adolescência. Linda, linda! Lembrava um querubim. O tempo foi passando, chegou à adolescência e o querubim angelical aos poucos foi se metamorfoseando numa linda mulher.

No bairro, após uma pequena ausência de poucos meses, todos ficaram abismados com a inusitada beleza da pequena menina, agora mulher, que crescera e maravilhara a todos com o seu sorriso fácil e singela gentileza dispensada aos vizinhos, colegas do colégio e a todos que encontrasse em seus assíduos passeios pelas ruas do bairro.

Maria Soledade da Silva, ou simplesmente Mariquinha. Uma tia, de início, a chamava de Soledade, porém o nome Soledade não combinava com o rostinho rosado, de anjo. Era muito adulto. Após uma divertida discussão em um almoço de família ficou a dúvida, “Mariinha” ou “Mariquinha”. Na festa da escolha do nome em meio de abraços, beijos e apertos nas bochechas rosadas, optou-se pelo nome de “Mariquinha”. Era mais coquete, segundo uma das tias solteironas. E por Mariquinha ficou.

A beleza de Mariquinha era um forte chamariz para os pretendentes ao seu coração. Moça simpática, nunca negava um sorriso, um afago. Voz delicada, macia. Nunca elevava o tom da voz.

Inevitavelmente um dos muitos pretendentes ao coração de Mariquinha ganhou o amor incondicional do beija-flor do bairro.

Mariquinha namorou, noivou e casou.

Em poucos meses os parentes, vizinhos e amigos perceberam que o Príncipe Encantado de Mariquinha era na verdade um sapo. O rapaz era apreciador de noitadas, mulheres fáceis, joguinho de sinuca e carteado. Tinha por profissão a representação de vendas. Ausentava-se por dias viajando pelo estado. A família de Mariquinha esperava que quando o moço voltasse para casa, como qualquer ser humano normal, gozasse dos prazeres do lar, dos aconchegos, dos carinhos e mimos da gentil Mariquinha. Mas não! O moço chegava e tome farras e mais farras.

Mariquinha, impassível, a tudo aceitava delicada e gentil como sempre fora. Somente os mais próximos percebiam uma leve, muito leve sombra de resignação em seus olhos.

Nunca se ouviu uma única reclamação do beija-flor do bairro.

Um dia alguém da família deu de presente uma caixinha de “mds” para Mariquinha guardar as jóias. Todos se surpreenderam com a esfuziante alegria de Mariquinha. Nossa Senhora! Benza a Deus! A mãe de Mariquinha exclamava, admirada com tanta alegria, ainda mais depois que surpreendeu Mariquinha chorando no banheiro tentando esconder o rosto machucado pelas tapas recebidas do desalmado do marido. A mãe de Mariquinha estava indignada, além do desgraçado não valer uma titica de gato ainda tinha coragem de espancar a sua princesa. Porém, Mariquinha nada reclamava e continuava sorridente e gentil com todos, como sempre fora.

Como a família ficou encantada com a alegria de Mariquinha ao receber a caixinha de presente, todos passaram a presenteá-la com caixinhas de todos os tipos, tamanhos, cores e formatos.

O costume de presentear Mariquinha com caixinhas se estendeu pela família e vizinhos. Em pouco tempo todos no bairro, sempre que encontravam uma caixinha diferente, compravam e corriam para presentear Mariquinha só para ver o sorriso agradecido da moça.

A coleção de caixinhas foi aumentando exponencialmente. O passatempo preferido de Mariquinha era arrumar as caixinhas fazendo combinação de cores e formados. Era tanta caixinha que um dia o pai de Mariquinha deu de presente para a filha querida uma prateleira enorme, tão grande que abarcava toda a parede. Mariquinha pediu ao pai que as portas fossem de vidro, corrediças, e que colocasse fechaduras. Era para evitar que as crianças pegassem as caixinhas. Assim ficava mais fácil para manusear e guardar a sua coleção de caixinha sem a inoportuna curiosidade natural das crianças. O pai, é claro, concordou. Afinal, colecionar caixinhas era a única mania da filha. Mania, não! Hobby! Esclareceu um tio de Mariquinha.

E a vida transcorria monótona, imutável. O marido de Mariquinha viajava a trabalho, Mariquinha recebia caixinhas de presentes, ele voltava depois de vários dias ausente, farreava, enchia a cara de bebidas e para não perder o costume dava uns bofetes em Mariquinha. A família reclamava e Mariquinha se resignava. O tempo foi passando, Mariquinha apanhando, a família reclamando, o marido farreando e Mariquinha se resignando.

Um dia, no almoço de família, e claro, como sempre, Mariquinha compareceu sem o marido para gáudio dos parentes, alguém na mesa externou o sentimento geral:

-Mariquinha, minha querida! Larga esse traste. Essa coisa que você chama de marido só trouxe tristeza e desgraça para a sua vida.

Ao que Mariquinha respondeu calma e gentil como sempre:

-Gente, essa é a minha vida. É o que o destino me reservou. Deixem estar que com o tempo tudo se ajeita. Vamos dar tempo ao tempo. Quem sabe, um dia tudo se ajeita da melhor maneira para todos nós. Não é mesmo?

-Mariquinha está certa! Dêem tempo ao tempo. E mesmo, desculpe-me Mariquinha, eu soube que o traste tem uma amante numas dessas cidades em que ele fica para fazer as suas vendas. Quem sabe um dia ele não vai e fica de vez por lá.

Mariquinha calada estava e calada ficou. Somente quem estava bem perto percebeu um pequeno brilho perpassando pelos olhos um tanto tristes da moça.

O tempo foi passando. O marido de Mariquinha viajando, Mariquinha colecionando, a família reclamando, Mariquinha apanhando e a indignação aumentando.

E o tempo foi passando, passando, passando... Passando... E um dia o marido de Mariquinha viajou e não voltou... Foi um alívio geral entre a família e os amigos do bairro.

O tempo continuou passando... Passando... Passando... E um dia, uma das tias carolas encontrou uma das portas corrediças semi-abertas e distraidamente pegou uma das caixinhas lindamente ornamentadas e abriu-a...

Por toda a casa e vizinhanças ouviu-se um grito medonho. Todos acorreram para a sala das caixinhas, afinal, ali, parecia ser a origem do grito.

-Acudam! Tia Gertrudes está desmaiada em frente à prateleira de caixinhas

Todos correram para ver o que estava acontecendo. Tia Gertrudes não era mulher de desmaiar por qualquer besteira.

Encontraram Tia Gertrudes desfalecida e com uma das caixinhas lindamente ornamentadas semi-aberta em uma das mãos.

Enquanto todos cuidavam da Tia Gertrudes, outra tia carola, curiosa, pegou a lindamente ornamentada caixinha semi-aberta, abriu-a, olhou-a, deu um grito e desmaiou. Foi um “Deus nos acuda”.

-Tragam um algodão embebido em cânfora. Não! É melhor trazer o algodão embebido em arnica. Arnica desperta até defunto.

Os minutos foram passando, passando, passando, e todos cuidando das duas tias. A lindamente ornamentada caixinha jazia em um canto, esquecida. Uma das crianças pegou a lindamente ornamentada caixinha abriu-a e gritou:

-Mãe! Tem uma orelha aqui dentro da caixinha da Tia Mariquinha.

Todos correram para cima da criança com a caixinha lindamente ornamentada nas mãos e esqueceram-se das outras crianças que correram em bando para as portas corrediças abertas.

-Paiêêê! Aqui na caixinha da Tia Mariquinha tem um dedo, parece que é um dedão do pé.

-Mãêêê! Aqui na caixinha da Tia Mariquinha tem uma coisa esquisita, parece um nariz.