A cidade vive!

Maravilhado com a cidade, ali estava eu. No meio de seu burburinho, de seu ruído, de sua pulsação louca e de seus cheiros inomináveis... A cidade vive! Sou obrigado a dizer. Seus arranha-céus, suas ruas que nos carregam a lugar algum, suas praças e lugares inatingíveis: seu corpo.

Viajando por uma de suas vias consigo perceber aquilo que ela carrega em seu bojo: uma procissão de degenerados, um caos de corpos supliciados, todo um rol do grotesco que a atravessa dia e noite... Noite! Que palavra melhor para dizer tudo aquilo que penso dela, de suas artimanhas, de seu jogo de luz e sombra, de seu caráter crepuscular... Em seu bojo a criação e a destruição de tudo e de todos... A cidade vive!

Estes corpúsculos, esses supliciados que a alimentam com suas forças, que a impregnam com seu cheiro de suor e sexo, que a habitam sem medo e sem pudor, que se derramam como chuva e a ocupam de maneira impessoal e estrondosa: que viajam por ela como um jato de esperma percorrendo suas sarjetas e bueiros imundos... Toda criação escrita sempre ali, num eterno presente pessimista e sombrio, marcando e sendo marcada em seu próprio corpo, em sua própria carne... Lógica da tortura e tortura da lógica... A cidade vive!

É na escuridão que ela se revela... Como uma prostituta barata, ela só pode aparecer onde não pode ser vista, só pode se revelar no escuro, no jogo de sombras, na meia-luz, na comodidade impessoal do quarto de bordel, entre lençóis sujos, toalhas ainda molhadas e cheiro de foda... À noite ela se revela: sua face descarnada, sua bunda magra, seus peitos flácidos, sua barriga seca, sua pele amarelada... à noite ela se revela. Com um sorriso de escárnio no rosto, colocando todo seu peso em cima dos que ousam pisar em suas ruas durante a noite, dos que ousam percorrer seu corpo neste momento só seu... no momento de expressão de todos seus desejos e de suas angústias: “Não os quero aqui! Meu desejo é outro, minhas vergonhas são outras,minhas angústias são outras! Não os quero aqui...”. Nada do que existe nela é natural, nada do que existe nela é seu: todos são estrangeiros, todos estão mortos, todos não são parte dela... e ainda sim: A cidade vive!

É em seu meio, neste meio ilocalizável, sem lugar no espaço, que podemos participar de seus novos delírios, de suas novas criações... Se ela já não pode ser contida, se tentam a todo custo segurá-la, domá-la, é porque não participam de sua loucura: neuróticos da ordem contra a psicose do caos... Em seu meio ela acelera, chega a velocidades não mensuráveis, entra em relação com outros termos heterogêneos, propondo novas misturas, novas maneiras de se mexer o doce, de se posicionar, de trepar... Relações de força à força de novas relações, de novos domínios, novas substâncias... É ali, e não em seu começo nem em seu fim, que percebemos seus encantos, suas novas possibilidades à guisa de nossa própria existência, à guisa da existência de corpos que, em seu eterno balbucio, clamam por menos pressão, menos opressão, menos peso, menos angústia, menos cidade! A cidade vive!

Neste devaneio eu permaneço por tempo indeterminado: depois de tanto caminhar já não tenho mais forças para continuar... meus pés doem, minha cabeça lateja, minha barriga ronca após tantas refeições esquecidas... Mas do que quero reclamar depois desta viagem delirante no verdeiro bojo desta multiplicidade errante? Nômades são aqueles que mudam para permanecer no mesmo lugar, ocupar seu espaço sem medí-lo, sem estriá-lo, sem força exterior à própria força... Neste caminhar descobri que suas ruas são meus caminhos sempre tortuosos, suas praças são locais de aceleração e de encontro de multiplicidades novas que entram em relação neste lugares de pura intensidade... descobri que a escuridão é sua vestimenta favorita e que o sexo é sua expressão mais bem acabada... A cidade vive!

A chegada do ônibus me tira deste passeio e desta linha de pensamento que jamais seria capaz de terminar... Uma outra hora, um outro lugar, um outro fio condutor, uma nova coisa... Me afasto dela como quem se afasta de um vício... Não concedo seu último desejo porque não cabe a mim fazer isto por ela: sua angústia, sua dor também são minhas: é o máximo que posso oferecer. Agora pelas janelas do ônibus eu a vejo: me sinto esvaziado de qualquer sentimento, de qualquer forma de expressão, de qualquer coisa... dou meu último adeus àquela que nunca me amou e que, mesmo assim, foi a que impessoalmente melhor me acolheu. Minhas últimas palavras...? A CIDADE VIVE!

Daniel Rossi
Enviado por Daniel Rossi em 31/07/2009
Reeditado em 09/10/2009
Código do texto: T1729955
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