Descoberta

Desci as escadas afoito. Não me lembrava bem de como havia ficado tantas horas naquele apartamento, lembrava apenas de ter sido convidado por Ralf Furkäns, um renomado enólogo de origem alemã, para experimentar um novo tipo de vinho, que segundo ele fora descoberto numa quinta da região. Cheguei no horário combinado, o táxi me deixou a alguns metros do moderno e imponente edifício São Antão. Havia uma inscrição na porta indicando para entrar em silêncio, empurrei a suntuosa porta de vidro, o ambiente era muito escuro. Pude ouvir quando Funrkäns disse para subir.

Procurava um interruptor e acabei esbarrando numa frágil e empoeirada mesinha, que provavelmente havia servido para um porteiro. De repente uma fraca luz iluminou o ambiente, pude ver então que o interior do prédio contrastava imperiosamente com o seu exterior. O lugar parecia sujo, as paredes cobertas por uma espessa camada de bolor, ao caminhar percebia as irregularidades do chão, senti calor. Novamente Furkäns gritou para que eu subisse, seu tom era autoritário e por um instante me senti constrangido por estar ali.

A escada era circular, feita de madeira e adornada com pequenos entalhes, repetidos uniformemente, de anjos. Escureceu novamente, ouvi uma tosse, e o ranger de uma porta se abrir. Uma luz ofuscante se lançou por todo ambiente, ouvi vozes, risos e um velho jazz a tocar.

Fui recebido por uma senhora que usava fitas em seus cabelos, me sorriu maliciosamente e fez um elegante gesto para que eu entrasse. Funrkäns, me olhou com desdém, apenas fez um leve aceno com o charuto. Fiquei parado, esperando que alguém se dirigisse até mim, mas não aconteceu. Com raiva, por estar ali, sentei-me numa cadeira que estava ao meu lado. Ninguém se falava.

A angústia me tomava conta, o que era aquilo? Havia sido convidado para a degustação de um exótico vinho e agora estava apenas degustando uma odiosa reunião. O som parou de maneira abrupta, percebi quando Furkäns ordenou para uma estranha figura, um corcundinha trajado de garçom, para que servisse o vinho. Fui conduzido pela senhora de fitas no cabelo até uma enorme mesa triangular. Ela imperativamente indicou meu lugar.

Naquela hora percebi que iríamos apreciar o tal vinho. A mesa era coberta por uma toalha bastante velha, que parecia inclusive estar suja. O silêncio voltou.

Acordei, ou pelo menos acho que foi isso, assustado, estava em pé diante de uma escada, novíssima, que parecia nunca ter sido usada. Desci rapidamente, saltava os degraus, e logo estava do lado de fora do edifício.

O que havia acontecido? Minha roupa estava manchada, julguei pela cor se tratar de vinho.

Chegando em casa peguei minha pequena agenda e procurei pelo nome de Furkäns, queria lhe ligar para que me explicasse o que tinha se passado naquele estranho lugar. Seu nome não estava na agenda, procurei em meus papéis sobre a escrivaninha, e nada.

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No arquivo geral da cidade encontrei uma pequena passagem, num velho jornal diário, sobre uma seita que recrutava pessoas para se tornarem seus serviçais, senti um calafrio. A notícia parecia ser uma velha estória de horror, eram chamados de vampiros pós-modernos os que dela faziam parte.

A notícia era breve, mas indicava que o relato completo sobre o fato estava em uma outra edição. Depois de algum esforço encontrei-a, era um relato terrível.

“Um grupo de pessoas se reúne para beber sangue em taças. Isso mesmo! Tinham todos os rigores de exegetas enológos, o sangue era guardado em garrafas, que permaneciam numa sala especial, espécie de uma moderna adega. Todos se suicidaram, com exceção do Sr. Ralf Furkäns, que permaneceu foragido por quase três anos, até ter seu corpo encontrado na casa do jovem escritor e enólogo Sr. ....”

Fiquei um tanto assustado. Pensei algum tempo e acabei adormecendo sobre os jornais. Quando acordei pude observar um velho e elegante corcundinha na mesa ao lado, sorriu-me com estranha felicidade, levantou-se acendeu um cigarro e sumiu por entre as prateleiras.