Universo Debutante

E tendo se passado três bilhões de anos terrestres do Juízo Final, a própria Terra não era mais que uma vaga lembrança na memória de seus antigos habitantes que na proporção de nove pra um, agora habitavam o Inferno e Céu respectivamente. O Inferno teve de ser ampliado em escala geométrica para conseguir abrigar tantos humanos que chegariam depois do advento do Juízo Final, que aconteceu coincidentemente no ano de 7992.

No ano de 2076, o planeta Marte foi colonizado, com isso as grandes nações que somavam um total de doze, puderam mandar seus compatriotas menos nobres literalmente para o espaço. No ano de 5150, Marte completava 2574 anos de independência da Terra, mas mesmo assim ainda era uma espécie de colônia, cordão umbilical muito difícil de cortar.

Toda a saga humana foi com certeza o mais belo épico jamais imaginado pelos mais ilustres escritores da Terra e Marte. Esta saga foi encerrada com chave de ouro, após Marcianos e Terráqueos terem se matado mutuamente numa guerra interplanetária, que começou por causa da escassez de água na Terra, e de sua abundância em Marte. Mas como estava escrito nos seculares livros sagrados que haveria um Juízo Final, assim sucedeu.

Bem, como eu estava dizendo no começo dessa narrativa, três bilhões de anos haviam se passado e no Céu tudo corria na maior perfeição, mas no Inferno aconteceu um fato tão inusitado que parecia brincadeira, mas não era. Não é que o Capeta ficou entediado? Também não era para menos, pois durante todo esse tempo ele só fez a mesma coisa, inventar novas maneiras de torturar condenados e dar ordens aos seus demônios para que aplicassem as novas técnicas de tortura por ele inventadas. Mas como tudo na vida cansa, a dele estava sendo um inferno, pois além de entediado estava ficando estressado também, e imagine o Capeta estressado. O fato é que, apesar de ser o Capeta o mais astuto do Inferno, tinha coisas que ele não era capaz de resolver sozinho, como por exemplo, seu estado emocional súbito. Então ele se lembrou que tinha um condenado que talvez o pudesse ajudar, seu nome era Sigmund Freud, era o inventor da Psicanálise. Apesar de não se lembrar do que o pobre infeliz aprontou de tão ruim quando viveu para ser condenado a permanecer para todo o sempre nas “profundezas” do Inferno, ainda sim se lembrava dele. O Capeta estava tão mal que foi consultar o tal de Freud. Eis o que aconteceu...

– Venha cá, preciso lhe falar, disse o Capeta

– Sim senhor, respondeu Freud

– Senhor está no Céu... Estou com um problema e preciso de uma solução urgente, se você conseguir solucioná-lo eu te promovo de condenado a servo, e só terá de aplicar os infinitos flagelos nos demais e não terá mais suplícios a suportar, mas, não se esqueça de que não pode sair daqui, afinal, o Inferno é eterno, uma vez dentro, já era...

– Por mim tudo bem, pode dizer qual é o problema, além de ser Capeta é claro..., disse Freud.

– O problema é que estou entediado e estressado, ser Capeta por três bilhões de anos não foi fácil...

– Já entendi tudo, você está entediado porque apesar de estar sempre inventando novas formas de tortura, mesmo assim sente que são todas iguais, sente que têm o mesmo efeito no condenado, uma vez que não é possível inventar coisa mais atroz que a própria vida eterna no Inferno...

– Caramba, você é bom mesmo heim? Quero dizer... Você é mal mesmo... Mas então, o que devo fazer para me livrar do tédio e do estresse? – perguntou o Capeta.

– Já que perguntou... Devo dizer que provavelmente jamais se livrará deles, é bem provável que o Outro lá de cima tenha planejado isto também para ti. Afinal, por que acha que iria ficar ileso depois de tudo o que fizestes? Primeiro houve um boato de que o Outro o extinguiria, mas depois ficou claro que se o Senhor fosse extinto, então não haveria ninguém para cuidar do Inferno. Assim, tu ganhastes a vida eterna, só que sendo o Rei do Inferno. – explanou Freud.

– Você está me dizendo que eu também sou uma espécie de condenado? Pior é que nem sinto vontade de te punir por essa insolência.

– Mas isso não é tudo, receio que tenha sido vítima de uma trapaça feroz... – lançou Freud.

– Como assim trapaça? Quem me trapaceou? – perguntou o Capeta.

– Ora quem mais, se não o Outro lá de cima? Nunca te passou pela cabeça sobre a razão de Tu serdes como és? De onde vem tanta maldade e esse desejo de destruir tudo que é bom, porque tens ódio do belo, do amor, da pureza e de tudo que é sublime? Por acaso és Tu o inventor da maldade? E se por acaso for, de onde vem a sua inspiração, por que num infeliz dia resolvestes se rebelar contra seu Pai? Sim, seu Pai, pois se Ele é o seu criador, assim como o é de todas as outras criaturas, desde os vírus até os querubins... Vou mais longe. Quem te deu tanto poder? Pois Tu és tão mal quanto o Outro lá de cima é bom, ou seja, Tu és o seu inverso, e como é possível se és apenas criatura submissa a seu criador? Então talvez Tu tenhas sido uma experiência mal-sucedida, mas se fosse assim, Ele simplesmente o aniquilaria num estalar de dedos e num piscar de olhos, mas ao contrário disto, teve todo o tempo, seu nome clamado muito mais nos templos santos de seu Pai, muitos milhares de vezes, mais que em sua própria casa, que é aqui no Inferno, eis a razão pela qual andavas o tempo todo na terra, a alimentar o coração dos homens, e a investir em seu potencial destrutivo, fostes os homens as criaturas que mais te adorou em todo o universo, mesmo os homens que diziam te odiar, clamavam teu nome em alto e bom som. Foi justamente por essa razão que tantos foram chamados e tão poucos escolhidos, mas alguma coisa o favoreceu, pois na luta entre o Bem e o Mal, é evidente que a sua vitória foi arrasadora, 9x1 e jogando na casa do adversário... Mas como o Outro lá de cima é quem dá as cartas, você ganhou em quantidade, mas perdeu em qualidade, que azar o seu não é? Jogar contra Ele é certeza de que perderá, mas, disto todo nós sabemos, até mesmo você... – falou longamente Freud.

A cada palavra de Freud, o Capeta ficava mais boquiaberto e atento. Era como se experimentasse de uma taça do melhor vinho, depois de vagar por infinitos dias sob o Sol e sobre a areia escaldante... E Freud continuava seu discurso como que em êxtase, nem ele mesmo sabia de onde vinha tanta articulação...

– (...) Só o que ninguém consegue explicar é por que, mesmo sabendo disto, todos insistem em jogar, desde Você lá no começo de tudo, até os homens quando habitavam a Terra e Marte. A maioria dos homens sabia o que era o Bem e o que era o Mal, e, no entanto, escolheram o Mal. Por que será? Será que era por causa de sua natureza fraca, será que era por burrice? A verdade é que ninguém nunca soube responder a essa pergunta e provavelmente só o Outro lá em cima tenha a resposta, aliás, Ele tem a resposta para tudo e mesmo antes que se tenha inventado a pergunta...

Neste momento o Capeta o interrompe.

– Pare, não precisa dizer mais nada, estou curado e você terá o prometido, minha intenção não era exatamente de "cumprir uma promessa", mas como estou muito feliz, você será promovido a partir de agora... Quanto a mim, preciso de um tempo para meditar sobre meu destino, vou fazer um retiro, talvez eu vá para uma estrela, é pena que o Sol se apagou há algum tempo, era um lugar muito cheio de luz, mas em compensação era um inferno de quente, mas tudo bem, vou dar uma trégua aos condenados enquanto medito...

E foi assim que o Inferno ficou em paz por algum tempo. Quando voltou de seu retiro em uma estrela qualquer, o Capeta estava mais atentado do que nunca, e seu grande projeto agora era atacar seu Pai, o Outro lá de cima.

Não demorou muito lá estava ele. Um lindo Querubim com feições andrógenas o recebe, toma um susto e ao mesmo tempo quase cega o visitante.

– O que você quer? – pergunta o Querubim.

O Capeta não hesita em dizer:

– Quero falar com o seu chefe, diga que é caso de vida ou morte.

– É sem dúvida um acontecimento insólito, mas irei dizer a Ele. Claro que ele já sabe que estás aqui, e o que deseja, mas é só uma questão de praxe, você entende né? Deus é muito caprichoso. – responde o Querubim.

– Ah tudo bem...

Quando Deus chega, o atende no saguão do Céu, afinal o Capeta não pode entrar no Céu por uma questão de ética e segurança. Eis o diálogo que se deu:

Deus vai logo perguntando:

– O que é que você quer?

– É que estou cansado da vida que levo, aquilo lá embaixo está um inferno...

– Ora, mas lá é o Inferno...

- Você entendeu o que quis dizer...

- Está cansado e o que pretende fazer? – perguntou Deus.

- Quero abandonar tudo e começar uma nova vida.

- E quem vai tomar conta do Inferno?

- Ah sei lá, você é Deus, o Sabe Tudo, deve ter uma solução para isso. Por que não aproveita que estou renunciando e não perdoa aqueles pobres infelizes lá do Inferno, afinal até o Hitler já pagou por todo mal que fez. Aliás, a grande maioria que está lá se diz inocente. – disse o Capeta.

- Oras, todo condenado sempre diz que é inocente. – argumentou Deus e riu.

- Parece até a justiça dos homens, lembro-me que quando estava fomentando o Mal na Terra o homem punia com mais vigor quem roubava uma galinha para matar a fome do que quem roubava milhões dos cofres públicos. Lá no inferno, todos cumprem a mesma pena pelos mais diversos crimes. Aliás, tem uns que não fizerem mal nenhum na Terra a não ser o de não acreditar na Sua existência e só por isso Você os condenou... Com todo respeito, isto é muito ridículo, mas o mundo é Seu, Você quem criou tudo, Você quem fez as leis, Você é Júri e Juiz e Você condena e absolve quem quiser.

– O que houve com você, por acaso andou lendo os grandes pensadores da Terra e Marte? – perguntou Deus.]

- Pra falar a verdade fui Eu quem os inspirei, só que fazia isso só para Te contrariar, nem sabia que na verdade estava fazendo um bem a eles, mesmo contrariando a Sua vontade, porque pra Você o importante não era que os homens pensassem, e sim que acreditassem, que Te adorassem cegamente, sem entender a razão da própria fé, pois o que sempre ambicionou foi a adoração dos homens, mas Você errou demais, Você manipulou a vontade dos homens, algumas vezes fez brotar em seu coração a ira, muito mais do que eu mesmo. Como explica o fato de ter um povo escolhido, o que tinha aquele povo de melhor que os outros, que atributos Você os presenteou, por acaso não eram todos os homens criados iguais para terem chances iguais? Então não deveria haver escolhido e, por ironia, talvez o povo que mais sofreu injustiça na Terra, veja só o que Hitler fez com eles, quase extinguiu toda a sua raça. Seria absurdo dizer que o quanto mais se aproximavam de Ti, mais fustigados era, como comida de leões, como pingentes em forcas, como espantalhos em cruzes de madeira. O que fizestes a Caim, a Judas, a Jó e ao seu próprio filho? Que tipo de pai sacrifica o próprio filho, ainda mais por uma Humanidade que você mesmo sabia estar quase toda condenada? Não me diga que não sabia porque você sabe tudo, aliás, sempre soube. Todos não foram mais do que simples marionetes em Tuas mãos. E o livre arbítrio? Outra grande farsa, uma grande mentira, pois Você dizia que havia dois caminhos alternativos. Como havia dois caminhos se apenas um dava acesso ao que se almejava? Imagine. Você bate na cara e depois oferece uma moeda para se desculpar, primeiro é preciso saber se a dor e a humilhação alheia está a venda ou não. Só depois deve oferecer seu preço. Quer saber mais? Eu poderia discursar por toda Eternidade sobre os infinitos erros de Sua criação e de Suas leis, mas não tenho tempo, nem disposição, agora o que eu quero é me redimir, e nem faço questão de entrar no Céu e também se não quiser me perdoar, não faz diferença pois se Você continua afirmando que o livre arbítrio é uma verdade, então posso fazer do meu destino o que bem entender, Você não me controla, certo? – o Capeta pára, respira e continua.

– Portanto eu renuncio, vou para uma constelação há 13 bilhões de anos luz daqui, e vou criar um mundo segundo o que eu acredito agora, será baseado na arte e no prazer eterno, tudo terá sentido, lógica e beleza, e se por acaso o pessoal do Céu ficar morrendo de inveja e a discórdia começar a reinar, a culpa será sua. Bom, o que tinha a dizer é isso, agora quero o seu parecer.

- Sinceramente, estava indo tudo muito bem. Mas parece que alguma coisa saiu fora do controle novamente, já sei que foi aquele tal de Freud quem começou toda essa confusão em tua cabeça, onde já se viu o Capeta renunciar? Isto é absurdo, mas se você está realmente determinado em sua renúncia, tenho de partir para o plano B. É hora de você saber toda a verdade sobre tua existência, até porque na verdade destes o sinal de que atingistes finalmente a maturidade adequada para saber das coisas maiores. Então se prepare para ouvir.

Deus faz sua pausa cênica para deixar o Capeta em suspense. Logo continua:

– Na verdade, tu és meu irmão gêmeo, mas como você deve saber, mesmo irmãos gêmeos não têm a mesma idade e pelo fato de eu ter nascido primeiro, fui eu quem encheu o mundo de luz e todo o lado luminoso ficou associado a mim, mas o mundo não tinha sentido ainda, até que você nasceu, após alguns trilhonésimos de segundos, representando o lado escuro do mundo. Finalmente o mundo tinha uma dinâmica, pois nada existe sem esse Dualismo Universal. O fato de eu ter nascido antes me fez ciente de certas coisas que a ti não foi possível saber, mas em ti havia o seu correspondente, de forma que, para o mundo, nem eu, nem você seríamos dispensáveis, um não pode existir sem o outro, pois o lado luminoso dá sentido às trevas e vice-versa.

- Agora me lembro de tudo, que incrível, que maravilhoso é a Existência.

- Quanto a mim, sinto um gosto amargo na boca, aliás sinto este gosto por todo meu corpo, mas eu já esperava por isso e já estou preparado.

- Agora sou capaz de sentir a grandeza da onipresença, onisciência, e onipotência... Quanto êxtase! - exultou o Capeta.

Após dizer estas últimas palavras, os dois começaram a se transformar em dois focos de luz tão incandescente que tinham o brilho e a potência de um Big Bang e se fundiram em seu apogeu, espalhando-se por todas as direções como uma onda de luz de uma tal freqüência que atravessava todos os corpos celestes impregnando-os, assim como todos os seres do Céu e do Inferno. À medida que a luz ia atravessando cada corpo, tudo ia se enchendo de luz, de cor e beleza, e um grande redemoinho se formou, de forma inexplicável, misturando toda a região do lugar onde antes fora o Inferno com a região do lugar onde antes havia sido o Céu, num único mundo de luz e beleza.

E foi dessa forma que o universo passou de sua fase adolescente para jovem, aos seus 15 bilhões de anos.