QUANDO SE AMA DE VERDADE...


A manhã estava coberta pela garoa quando Carla estacionou o carro na garagem do Edifício América, centro dos maiores escritórios de advocacia da cidade, em plena avenida Paulista, no coração de São Paulo.

Como sempre, nem reparava nas pessoas com as quais compartilhava o elevador, não se dignava a lhes dar um simples cumprimento de bom dia.

Em poucos segundos adentrou na repartição, apressada para se atirar totalmente no trabalho.

- Bom dia doutora Carla! – saudou-a o novo advogado - Os documentos solicitados estão aqui.

- Espero que pelo menos desta vez você tenha feito como lhe pedi. Pelo menos desta vez!

Pedro cabisbaixo retrucou:

- Faço o que posso, doutora.

- Não é fazer o que pode, é fazer direito, correto, com capricho, isto é o que vale, se você quiser manter seu emprego.

- Desculpe doutora.

- Deixe-me examinar a documentação?! Pode ir para sua sala. Depois nos falamos.

Carla chamou pela secretária, que – como sempre – vivia no mundo da lua:

- Rita, traz um café bem forte sem açúcar, por favor!

Debruçou-se no trabalho como se este fosse a coisa mais importante de sua vida.

E era mesmo!

Sócia fundadora do CN Advogados Associados, aos trinta e poucos anos, já se mostrava uma advogada bem sucedida e famosa.

Quase sempre obtinha vitória em suas defesas, angariando a admiração de todos pela postura ética e profissional adotada em seus relacionamentos com os adversários e clientes.

Possuía cultura vastíssima e uma inteligência rara.

Sentia-se responsável pelo CN e, por este motivo, controlava tudo e a todos com determinação.

Tratava as pessoas com uma certa distância.

Não admitia ser contrariada, fosse no trabalho, fosse em casa, sempre dava a última palavra.

Às vezes, tornava-se simplesmente detestável, mas, nunca ninguém tinha a coragem de contestá-la, pois, incrivelmente, estava sempre com a razão.

O trabalho tornou-se sua vida.

Mergulhava nele como se fosse o próprio ar que respirava – sem ele morreria!

Todos desconheciam, porém, que isto tudo para ela, mesmo inconscientemente, configurava uma fuga de si mesma.

Afogava-se no trabalho, para não se afogar na solidão.

Fazia já um bom tempo, tinha vivido um grande amor.

Entregou-se de corpo e alma a esta paixão, a primeira e última, em razão da qual decretou:

- Jamais amarei !

Sempre arredia a qualquer insinuação de flerte - achava-se muito ocupada para perder tempo com estas coisas do coração, bobagens de quem não tem nada mais importante para fazer!

O antigo amor tinha ido para Israel  prestar serviço militar.

Nos primeiros meses, correspondiam-se todos os dias, mas, com o passar do tempo, as cartas foram rareando, rareando até não chegar mais nenhuma.

Explicação? Não houve. Apenas o silêncio...

Carla perdeu a conta do quanto chorou.

Lutou com todas as forças para esquecer. Não conseguiu.

O sentimento era mais forte que a razão. 

“ O coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Então, a moça resolveu ocupar seu dias trabalhando muito .

- Quem sabe um dia conseguisse ficar livre desta dor??

Os sonhos, com o tempo, rolam feito as águas de um rio, jamais seriam os mesmos, pelo menos na superfície... Quem sabe lá nas profundezas eles estariam ainda acalentados?!

As pessoas mais próximas não se conformavam em vê-la neste gueto solitário, exílio imposto por vontade própria.

Convidavam-na para reuniões, festas, passeios...

Nunca aceitava!  Muitas vezes até chateava-se com os convites.

Parecia que as pessoas tentavam obrigá-la a fazer o que não queria.

Por que não a deixavam em paz? Não respeitavam sua vontade?

- “ O inferno são os outros ” – pensava em voz alta.

Um domingo mágico abriu-se com o sol espargindo raios de esperança, inundando a vida, mesmo para quem, como Carla, esquecera-se dela.

Aquela manhã estava tão especial! E um súbito desejo de se banhar em tanta energia a impulsionou a passear um pouco pelo Parque do Ibirapuera.

Há uma eternidade não se dava a este luxo.

Caminhando pelo parque contaminou-se pela alegria que a fez sorrir para as crianças que ali brincavam.

Comeu algodão doce, pipocas, tomou suco de acerola, nem um pouco importando-se com as calorias.

Sentia-se renascida. Feliz como nunca , nestes últimos anos...

De repente, ouviu alguém chamá-la.

Olhou na direção do chamado e quis reconhecer o dono da voz, porém o sol a cegou, não conseguia enxergar.

Mesmo assim se aproximou, e  qual não foi a surpresa, quando reconheceu o grande amor de sua vida:

- Saul, é você mesmo? Não acredito! Depois de tanto tempo?

O moço aproximou-se dela e a abraçou fortemente, como se quisesse matar toda a saudade em um único abraço.

Permaneceram juntinhos...
 
O silêncio falava pelos dois naquele momento de ternura.

Dos olhos do casal rolava toda a emoção há muito tempo guardada...

Alguns curiosos os rodearam e os aplaudiram, trazendo-os para a realidade.

Só então Carla reparou Saul amparado por muletas.

Saul olhou fixamente para ela e desabafou:

- Lutei contra meus sentimentos todos estes anos. Precisei juntar toda coragem para me apresentar a você assim, aleijado de uma perna. Não queria lhe impor minha deficiência. Por isto silenciei. Mas, meu amor é mais forte do que tudo. Supera todo o entendimento que a razão impõe. Se quiser me aceitar assim, como estou, serei o homem mais agraciado do universo.

Com a voz, ainda, embargada pela emoção do reencontro, Carla sussurrou:
 
- Ainda você tem alguma dúvida do meu amor? Esperaria por você para sempre e ... mais um dia, se fosse preciso!

Aconchegando-se nos braços de Saul, não querendo soltá-lo nunca mais, feliz ordenou:
 
- Vamos para casa.

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Mel Redi
Enviado por Mel Redi em 01/03/2010
Reeditado em 02/03/2010
Código do texto: T2113860