Etienne, o imortal

O drama. Em que cada um tem o seu papel, sua emoção básica, sua personalidade. Mas que, no fundo, todos são o mesmo.

O certo e o errado. O bem e o mal. Quem não seria capaz de cometer crimes sob algumas circunstâncias, quem não poderia matar, se a isso fosse compelido para sobreviver, para botar comida na boca de seus rebentos? E por comida entendam-se a matéria bruta de que é feita a vida e as vagas idéias, os diáfanos símbolos do poder, riqueza e felicidade que apenas os homens valorizam. Brigaremos por conchinhas do mar, por punhados de sal, por pedras baças que se transformam em gotas brilhantes da eternidade, por metais que não se deixam corroer, por plumas coloridas, por peles macias, por secreções perfumadas, por plantas tóxicas, todos produto do labor humano, da sua arte de isolar pedaços da realidade e tranformá-las em eternidade momentânea, que se pode carregar dentro dos bolsos ou dentro de malas.

Etienne diz: farei de todos voce homens ricos e felizes, verdadeiros senhores, que sabem o que querem e como obtê-lo. Todos o seguimos sem discutir, o líder verdadeiro, empunhando espadas, decepando cabeças, cometendo barbaridades completas em nome das pretendidas riquezas. Mesmo bêbado, Etienne mantinha a lógica de seus ordenamentos. Lavamos o sangue e a culpa pela matança com o alcóol do rum, da cachaça, do uisque forte de milho, com as carnes assadas nas brasas, com as coxas macias das caboclas que terminavam num refúgio doce de perfume almiscarado.

Aí, tempo bom dos descobrimentos, acho que agora é o tempo das reflexões, onde cada ato deve ser visto dentro de um todo, porque um castelo de cartas pode desmoronar ao menor sopro do destino; e quando as forças do natural resolvem soprar voce tem que se abaixar a cabeça, se proteger e se meter dentro de um buraco qualquer para não ser riscado do mapa, o próprio mapa corre o risco de ser completamente alterado, até que sobreviva apenas um mísero lagarto que ressucite o império dos dinossauros daqui a milhares de anos.

Etienne era o seu nome de guerra, o seu codinome nos meios da corrupção; fazíamos esses festivais travestidos de piratas, de corsários, de expedicionários, sorvendo riqueza por todos os lados onde conseguíamos encontrá-las. Reunímo-nos, após os trabalhos para trocar informações e planejar as manobras de monitoramento dos políticos de influência no regime. Todos éramos democratas, profundamente democratas. Críamos na livre empresa para roubar. Isto é, roubar não, levantar fundos seria o mais certo a dizer, pois as atividads partidárias demandavam nuito dinheiro. Etienne tinha alma de pirata, era um predador dos fracos, dos bem intencionados, incapazes de se articular. Política... Eu nunca pude entendê-la; era tido como tímido, incapaz de fazer política. Então era um simples funcionário do grupo. Fazia relatórios, organizava agendas, marcava reuniões, datilografava atas secretas e oficiais do grupo, dos partidos, levava cafezinhos, comprava cigarros, água mineral, e passagens de avião, levava ternos para o tintureiro e ía buscar as amantes para encontros secretos. Era um subalterno, simplesmente porque não tinha a capacidade de fazer política, de articular-me com outros agentes políticos. Nunca consegui distinguir muito bem a arte da política do puro e simples conchavo para enganar os trouxas. Então, trabalhava para eles, em troca de um mirrado salário. Ficava com as migalhas. Etienne me dizia: “Seu moço, se você, um dia, me trair, mando te esfolar, você e toda a tua família, aqui e lá em tua cidadezinha...” Acreditava piamente, mesmo que parecesse brincadeira. Alguns anos de fidelidade, e a promessa de um cargo de assessor de deputado. Mais alguns anos e a possibilidade de uma rica aposentadoria. Era tudo o que eu queria, sair da sordidez com uma bolsa perene de dinheiro, por toda a eternidade. Aí sim, veriam quem sou eu... Cheio de moral e de dinheiro, sou capaz de, no futuro, encher Etienne de porrada.

O primeiro ministro da França, sutilmente, corrigiu o prefeito, em visita oficial, ao dizer que GH fôra um corsário, e não um pirata, e que havia uma grande diferença entre as categorias. Segundo ele, um corsário tinha a autorização do rei para agir, estando portanto, resguardado pela lei, enquanto um pirata agia por si, era um empresário autônomo, sem respeitar a qualquer lei, exceto às criadas por ele, e, principalmente, sem pagar impostos e sem dividir as suas conquistas com as autoridades reais. Etienne, que estava presente, sorriu. “Pirata, pirata sem vergonha, isso sim”. Podia afirmar de cadeira, pois estivera no barco de GH, há quatrocentos e tantos anos. E, se hoje, permanecia no auge da força do homem, com apenas alguns cabelos brancos nas têmporas, o que acentuava o seu charme francês, era coisa que não sabia explicar. Talvez tivesse encontrado o famoso elixir da Flórida, nas suas aventuras do passado distante. Havia bebido daquele líquido precioso, e permanecia imutável ao longo das eras, adaptando-se `a mudança dos costumes. Hoje não era decente a pirataria, o extorquir pela morte e destruição os bens acumulados dos povos, e nem havia mais o que acumular, ouro, diamantes, rubis, esmeraldas. Hoje, administrava os bens já acumulados no passado, transformados em empresas multinacionais eficientes, que aos poucos se apoderavam de todos os negócios humanos, dos mais simples aos mais complexos, se imiscuem em todos os pequenos aspectos das vida dos homens, desde um defecação, quando vendem papel higiênico e desinfetantes de privada, até uma relação sexual eventual, em que um homem e uma mulher, enganados pela natureza, pensam que estão descarregando os agradáveis e misteriosos eflúvios do amor, mas estão apenas criando oportunidades para o aparecimento de novas criaturas na terra; pois bem, lá aparece uma grande empresa com a história do sexo seguro, e vende muitas e muitas camisinhas de Vênus, látex antialérgico, perfumado e vaselinado. Querem foder? Então passem pra cá alguns centavos. Etienne, o pirata, embolsa alguns centavos de qualquer coisa que alguém faça sobre a face da terra, desde uma cagada, até um foguete espacial. E, na rodada dos dias, as moedas tilintam em direção as suas contas bancárias.

Etienne, Etienne, estou trabalhando para êle há quatrocentos anos. Agora, não quero mais. Vou esperar esse pirata sem vergonha acabar a reunião e vou liquidar com ele, vou meter uma faca no seu pescoço. Vou acabar com sua vida de imortal, suas riquezas acumuladas não poderão salvá-lo, nem garantirão para ele o paraíso. Deixa o prefeito ir embora. Estão lá dentro combinando as sacanagens, ele e o prefeito, esse outro imortal, oligarca, oligofrênico, do oligopólio.

Ví quando matou a menina. Ateou fogo ‘a pólvora e explodiu o muro da cidade. Entramos, uma vaga de cabeças escuras, espadas elevadas, sedentos de sangue. Avançamos pelas vielas calçadas de pedra. A emoção presa a garganta, a energia solta, após meses de contigenciamento no mar. Vontade de estripar.

Eu já estava querendo parar com aquilo, o roubo, os assassinatos. Já tinha riquezas demais, baús cheios de ouro e jóias enterrados em praias desertas. Não queria mais, mas não conseguia desvencilhar-me daqueles animais. Fingi que corrí, fingí que arrombei portas, fingi que incendiei igrejas, fingí tudo aquilo que fiz. Só não consegui fingir minha raiva quando o ví enterrar a faca na barriga daquela menina. Por que, Etienne, por que?

Sairam agora saíram do gabinete. Despedem-se com abraços e tapas nas costas, os ternos que parecem estofados emitem sons de tamborins. Grosso, aquele paletó, seria difícil cravar uma faca através do pano, da entretela, que o deixava forte como um mongol acolchoado.

Apaguei as luzes da ante-sala, fechei as altas janelas e as cortinas. Fui até o gabinete. Etienne já estava sentado, mergulhado em papéis. Serví um cafézinho quente para o safado. Poderia tê-lo envenenado, alí com aquele cafézinho. Mas não, seria muito fácil, até para matar temos que fazê-lo com classe, eu quero que ele saiba que está sendo morto por mim. Quero olhar no fundo dos seus olhos e fazê-lo saber exatamente o que está acontecendo. Mato-o, desgraçado, pirata safado, mato-o pela menina, pelas carnificínas, pelo roubo secular, pelo mal que você me fez, não quero suas riquezas roubadas, não quero...

- Mais alguma coisa, “chef”?

Etienne mal elevou os olhos dos papéis. Uma lufada de vento moveu as cortinas.

- Não, Antoine, pode ir.

Fiz meia volta, empertigado, como um mordomo inglês. Ouví novamente a sua voz.

- Antoine, trabalhamos juntos há muito tempo, não é?

Voltei-me novamente, palpando o punhal no bolso.

- Sim, “chef”.

- Você trabalha bem, Antoine. Não é ‘a toa que foi treinado por mim...

Agora o silêncio, o quê poderia dizer? Meus olhos abaixaram, sem coragem de encarar aqueles penetrantes olhos azuis.

- Lembre-me de te dar um aumento mês que vem, Antoine.

- Obrigado, “chef”. É só?

Limitou-se a me dispensar com um gesto de mão, voltando aos seus importantes papéis.

A fumaça subia aos céus quando zarpamos. Etienne mandou desfraldar as velas e disse:

- Farei de vocês homens ricos...Todos vocês...