O baú

Todos os moradores achavam Judite séria demais, fechada e um tanto amarga. Nunca recebia visitas e não se preocupava nem um pouco em expressar simpatia. A sua vida era aquele pequeno e antigo prédio de quatro andares e sem portaria, porteiro e elevador. Sentia-se importante exercendo a função de síndica. Quanto ao seu caráter e ética seria injusto julgá-la, ainda mais agora que havia falecido. Para uns ela era uma viúva batalhadora, com convicções e fé inabaláveis. Já para outros era apenas uma velha teimosa e egoísta. O que ninguém poderia imaginar, porém, é que ela mantinha em um porão no subsolo do edifício quinquilharias, velharias e, dentre estes, um pequeno baú.

Foi uma surpresa para os moradores a descoberta, quase um mês depois de sua morte, do pequeno cômodo que ela utilizava como depósito particular. No subsolo do prédio, um lugar úmido e com pouca iluminação onde ficavam apertados os veículos dos moradores, havia um pequeno porão onde os utensílios de limpeza e manutenção eram guardados. Apenas Judite tinha acesso ao aposento e só o abria quando da visita da faxineira do prédio. Ali encontraram alguns pertences pessoais de Judite, pequenas bugigangas e essas coisas que vamos acumulando em casa e que não têm mais serventia. O baú estava lá. Feito em mogno com delicados entalhes e gravuras, permanecia fechado com um cadeado.

Judite era uma pessoa solitária e ninguém soube informar contatos de amigos ou familiares quando morreu. Seus bens, sem que ninguém viesse reclamá-los, estavam à disposição do Estado e suas leis: no prazo certo acabariam sendo leiloados. Com a aprovação do novo síndico, Sr. Sebastião, formaram uma pequena comissão para deliberarem sobre o baú. Decidiram abri-lo. É certo que a curiosidade superou a decência e a discrição mas juntos concluíram que seria melhor averiguar o conteúdo do baú antes de entregá-lo ao Estado.

Curiosos, ninguém ficou surpreso ao ver o que o baú guardava. Encontraram uma sapatilha de balé velha, partituras de música para piano, alguns livros, fotografias e muitos cadernos. Quase uma dezena de cadernos encapados a couro, todos escritos à mão com caneta tinteiro e caligrafia perfeita. Páginas e páginas de poesias, contos, relatos, registros, algumas colagens, desenhos e rabiscos - eram os diários de Judite onde ela confidenciava livremente como verdadeira poetisa e escritora os seus sentimentos e pensamentos. Escrever diários era um hábito que tinha na juventude e mocidade mas que com o passar dos anos foi abandonando até esquecê-los todos ali naquele porão.

O Sr. Sebastião ao pegar um destes cadernos deixou cair um pedaço de papel que escorregou de suas páginas. Ao pegá-lo do chão percebeu ser uma velha embalagem de bombom com as seguintes palavras escritas à mão em letras miúdas, que leu em voz alta:

"Minha querida amada

És bela e delicada como uma flor

Até os anjos, as estrelas e o Sol

Choram por sua infinita doçura

Minha querida! Que seria de mim

Sem seu amor?

Sempre seu. Inverno de 1963"

Os presentes silenciaram-se por alguns segundos devaneando sobre o passado de Judite: quem teria sido aquele que tão singela poesia lhe dedicou? Quão doce teria sido aquele bombom e momento? Todos lançaram um olhar diferente à velha síndica recém-falecida contrapondo a antiga imagem que tinham dela com a garota sonhadora de outrora.

E todos lamentaram o fato de Judite ter escondido no porão de sua alma tão maravilhosas poesias, memórias, contos e sentimentos, e de ter morrido sem ter aberto e revelado ao mundo o seu baú - seus sonhos de bailarina, os cantos da menina pianista, suas estórias favoritas e lembranças das pessoas que lhe eram queridas. Não continha jóias, tesouros e nem riquezas inestimáveis, é certo, mas era o seu baú. O baú de Judite.

P.S.: a mesma comissão que decidiu abrir o baú decidiu também guardar os seus diários e estudar meios para, quem sabe, uma possível publicação. Hoje, quem visita aquele velho prédio ainda pode ver no pequeno hall de entrada um quadro com a foto - que fora encontrada no baú - de Judite ainda jovem, bela e sorridente, em homenagem e memória a saudosa síndica.

Junho de 2010