Um vampiro em São Paulo


      Saudade que tenho de minha terra natal, outros tempos eram aqueles. Século XVIII, sul da França, berço do lluminismo. Ousadas e brilhantes ideias da ciência e um esplendor artístico febril ferviam por toda a Europa. Sinto falta das danças de salão, das orquestras, dos saborosos vinhos e das donzelas com seus vestidos apertados. A vida era tão mais fácil e agradável naquela época. Nós, criaturas da escuridão que desconhecemos o que seja a morte, carregamos o fardo de ver o tempo transcorrer indefinidamente e que com o passar dos anos e séculos escoa cada vez mais lento, tedioso, penoso. As pessoas, ingênuas como são, se deixam levar pelas imagens distorcidas e exageradas que fazem de nós na literatura e cinema. Se não nos enchem de beleza e glamour, nos mostram como verdadeiras feras horríveis sedentas por sangue. Uma pequena parcela do que escrevem é verdade, o resto são apenas bobagens e ficção. E o que escapam aos livros e filmes são as nossas dificuldades cotidianas, coisas pequenas, até banais, mas que nem por isso deixam de nos aborrecer.  

      Desconheço na literatura vampiresca um livro que fale sobre vampiros brasileiros, mais especificamente, vampiros paulistas moradores do bairro de Higienópolis. Simplesmente não existe. E para suprir esta carência na literatura relato aqui as minhas experiências pessoais, tudo o que seria omitido em um conto vampiresco por ser vexatório demais para a classe. São lamentações urbanas de um jovem vampiro com corpo de trinta e três e alma (se é que a tenho) de mais de três séculos.


      Tenho uma fortuna inestimável, propriedades e contas bancárias espalhadas pelo mundo. Não é nada difícil para um vampiro com experiência de vida secular e habilidades sobrenaturais se sobressair nesse capitalismo selvagem que inventaram. Sugar o sangue dos outros, metaforicamente falando, é o que melhor sabemos fazer. Ter olhos de águia, força e velocidade descomunais, capacidade para leitura mental, sedução, persuasão e indução hipnótica são ferramentas bastante úteis nos negócios. Isso sem mencionar a minha natural beleza e porte que vieram do berço. Posso dizer que sou bem sucedido, e o dinheiro, convenhamos, facilita a vida de qualquer um, inclusive de um vampiro. Mas também para um vampiro dinheiro não é tudo nessa vida.


      O que mais me aborrece em São Paulo: o trânsito. Diferentemente do que podem pensar eu não me transmuto em morcego, não posso sair por aí voando acima desse caos que são as avenidas paulistas. De nada adianta ter um avião ou helicóptero se quero me locomover apenas alguns poucos quilômetros dentro da cidade. Se vou à orquestra na Sala São Paulo ou mesmo ao cinema, aborreço-me por permanecer mais tempo do que gostaria dentro do carro. O trânsito dessa cidade está cada dia mais insuportável.


      As queimaduras de sol, outra invenção dos escritores, nunca existiram, até gostava de banhar-me nos calorosos raios solares matinais em épocas passadas. Mas tamanho é o buraco na camada de ozônio e a poluição que existem hoje que os raios ultravioleta de fato queimam a minha pele - sou obrigado a usar filtro solar. Não fosse apenas isso, há ainda a baixa umidade do ar. O ar cada vez mais poluído e seco resseca as minhas mucosas nasais causando irritação na garganta e um lacrimejar insistente nos olhos. Não se relatam vampiros alérgicos nos romances.


      Ultimamente venho sofrendo de falta de apetite, suspeito até ter uma anemia leve. Não é para menos, como é que se espera que um vampiro se alimente bem com sangue tão ruim e de baixa qualidade que há por aí? A gordura e colesterol das pessoas, que ultrapassa todos os limites estabelecidos pela OMS, faz o sangue engrossar deixando-o com um gosto horrível de manteiga na boca. Certa vez fiquei doidão por ter bebido o sangue de um viciado em uma boate. Entrei em êxtase, tive espasmos musculares e dancei freneticamente a noite inteira sem conseguir me conter. E às vezes o teor alcoólico no sangue da vítima é tão alto que chego a ficar de ressaca no dia seguinte. Sangue bom e puro está cada vez mais raro de se encontrar.


      E venho ficando cada dia mais melancólico e desesperançoso com tudo. Deprimido mesmo. Já estou no oitavo analista e com este, finalmente, afeiçoei-me. Os primeiros viraram almoço. Ele disse que esta pele branca e fria que tenho é um dos sintomas do transtorno de ansiedade que diagnosticou. Estou tomando anti-depressivos para amenizar a angústia. Mas o que mais me atormenta não é o trânsito, as queimaduras solares, poluição ou má alimentação - o que mais me atormenta é a insônia. Se Deus não me concede a bênção do sono eterno poderia ao menos não privar-me do sono noturno. Maldita seja essa insônia! Já vivi demais, a vida para mim passa devagar, não dormir e ter que estar em vigília em dobro, dia e noite, me angustia a tal ponto que chego a pensar em matar-me. Se isso continuar por mais tempo não sei se poderei aguentar. Se não conseguir pregar os olhos à noite, prego uma estaca em meu peito.


      Essas são as minhas lamentações, as lamúrias de um vampiro paulista. Se algum escritor desejar, coloco-me à disposição para uma entrevista e concedo os direitos autorais de minha biografia. Escrever sobre a vida de um vampiro melancólico e, sobretudo, honesto, creio eu, traria bom retorno. Consigo até imaginar o desfecho de minha biografia, o último parágrafo do livro:

      Pierre, o vampiro alérgico e melancólico de Higienópolis, por fim, tirou a própria vida. Militava contra o trânsito caótico, a má qualidade do sangue das pessoas e a poluição em São Paulo. Não pôde suportar a insônia, seu pior pesadelo. Os anti-depressivos não tiveram efeito e seu analista não o conteve - cravou no próprio peito uma estaca de madeira. Morreu em paz. Em sua mão direita um rosário, no rosto um quase imperceptível sorriso. Após séculos, finalmente conseguiu se livrar da maldição rogada por Deus - adormeceu em sono profundo, embalou na doce e tranquila escuridão do sono eterno.


Agosto de 2010

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Este texto faz parte do exercício criativo "Insônia".
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