TUDO AQUILO

Pode parecer uma incoerência da vida, mas por que a vida deve conter alguma coerência?

O homem sentia crescer dentro de si a necessidade de pintar, isso, de passar para a tela as imagens, as cores, os tons fortes misturados aos mais amenos, sombra e luz, sol e caverna, e sentia que seria capaz de, através das cores e dos traços, transmitir o clima, a tensão, o frio da paisagem, o calor do momento, tal era a força e nitidez com que tudo que lhe vinha à mente possuía e impregnava todo o seu ser. Isso, a pintura seria a melhor forma de por para fora tudo aquilo, sem ao mesmo tempo deixar que tudo aquilo se perdesse, já que o interior do homem é o universo mais rico e mais fugaz, e tudo aquilo que agora lhe surgia com tanta evidência e completude, uma verdade, uma realidade, mas tudo dentro de si, tudo aquilo num momento seguinte poderia se perder, se misturar, embaralhar, e tudo aquilo se perderia. Se os pincéis, rápidos, marcassem a tela, com as impressões, mesmo que imperfeitas, de tudo aquilo, restaria algo, no momento seguinte, e a morte teria sido, mesmo que em parte, derrotada, e a construção talvez se tornasse diferente, não diria mais fácil, por que jamais será mais fácil construir, sendo que o contrário estaria repleto de razões (as facilidades das desconstruções), mas algo teria sido modificado a partir do momento em que aquela tela passasse a existir, num quarto de empregada desativado, que fosse, ou no saguão de um hotel de luxo, não importaria. Alguém em algum outro momento o veria e desse encontro algum novo gesto nasceria. Alguém puxaria, por exemplo, um caixote largado num canto e sentaria ali perante a tela, esquecido da vida, e ficaria ali durante horas, dias, incomodado ou extasiado, aparentemente parado, mas não, já que o movimento em seu interior seria imenso, na verdade teria saído da inércia em que estaria mergulhado durante tanto tempo, imerso, e passaria a andar, justo no momento em que se deparou com aquela tela, já que o andar das pernas tem pouco a ver com o andar da vida (pessoas que andam muito com as pernas por vezes escondem a paralisia de suas vidas, palavras de um andarilho). Alguém ficaria, por exemplo, chateado ao se deparar com aquele trambolho, e teria que interromper a harmonia da ação que vinha executando, até decidir o que fazer com aquilo, com aquele objeto, talvez o melhor fosse deixá-lo encostado no chão da parede, esquecido que fosse, mas haveria sempre o risco de que outra pessoa futuramente o incomodasse, achando que de fato o que houve foi um esquecimento ao invés de uma ação proposital de abandono. E por aí afora, a tela provocaria uma infinidade de ações e reações inimagináveis naquele momento, até porque naquele momento a tela não existia. Até porque o que uma tela, uma pintura provoca faz lembrar a atitude perante à vida ou à morte (da vida) do homem: ebulição interna, vida, ou respeito, reverência mesmo a mais formal, pró-forma, diante do morto.

O homem estava possuído dessa força, dessa necessidade, dessa iminência, dessa certeza de melhor ação, uma espécie de êxtase, iluminação divina, vontade completa, mas como pintar, se ele era cego? Jamais vira um quadro, um desenho, uma pintura, e era absolutamente incapaz de qualquer traço coerente saído de suas mãos. De tudo o que ouvira, das descrições escritas e faladas, fora criando dentro de si um mundo de imagens, onde tomava emprestado dos cheiros e dos toques as maiores impressões, as sensações que percebia e lhe davam as dimensões dos objetos e ações. Essa era a sua incoerência, aliás uma incoerência humana, que a visão de fora esconde, tampona, não permite que os homens tenham plena consciência dela. Os homens se conformam em achar que o seu mundo interno é o mais semelhante ao mundo de fora, que os objetos e as pessoas do seu mundo interno são iguais ou parecidas com os objetos e as pessoas do mundo de fora. Não se dão conta que o mundo de fora não existe, ou melhor, existe sim, porém cada homem o percebe e o recria à sua maneira. Não se é forte ou ousado ou insensato, ou o que seja, para eleger o seu mundo de dentro como a sua verdade. Sua tangerina, talvez, teria o tamanho de uma abóbora; talvez as baratas também seriam enormes, um hipopótamo e um dinossauro seriam minúsculos animais. As pessoas teriam um corpo totalmente diverso daquele que os olhos vêem. Ah! incoerência!! Quanto mais forte e dominante é o mundo de fora, a realidade externa, mais fraco e dominado se sente o homem. Fraco e dominado na sua criatividade, na sua capacidade de fantasiar, de dramatizar, de viver papéis, de viajar dentro de si até à Lua, até Plutão, até ao céu, até ao inferno. E mais ainda se em algum momento de sua vida se deu conta de que o seu mundo interno é muito diferente, não bate, não corresponde a tudo aquilo que as pessoas ao seu redor vêem, fazem e acreditam, e não se sente com forças para eleger o seu mundo interno, de alguma maneira vivenciá-lo, abraçando algum rio onde em suas águas pudesse nadar e escorrer, alguma arte ou religião, talvez. Talvez a loucura, às vezes... Talvez o homem cego, se conseguisse pintar, retratasse um mundo interno mais genuíno. Assim como Beethoven que, estando completamente surdo, pode realizar a genial Sinfonia Coral, admirada e reverenciada pelos homens que sentem, naquela música, uma espécie de toque divino, uma vibração com um lado seu lá de dentro, entorpecido por todos os sons que não lhe dão descanso desde o seu nascimento. Será que assim é? Só o paralítico seria capaz de ser o maior dançarino? O privado de olfato seria capaz do melhor perfume? A escultura a mais bela seria obra de um mutilado? Tudo aquilo pertencendo ao mundo de dentro? Talvez. Quando o homem entra em contato com a arte, a obra de arte já pertencendo ao mundo de fora, e gosta, e aplaude e se encanta, é porque algo dentro de si, de seu mundo interno, abafado, moribundo, algo foi tocado, uma possibilidade ou uma lembrança, e por momentos o homem se engana, ou se ilude, se embriaga, vivendo, naquela obra de arte que está diante de si, a sua própria obra de arte, por instantes é o seu próprio autor, adotando-a, o autor incapaz de gerir sua obra de arte, mas naquele momento capaz da obra de arte feita por outro homem. Entusiasmo e frustração, entusiasmo percebido, frustração nem sempre.

O homem, por acaso cego, sentia-se privado não da visão, porém da possibilidade da comunicação. Isso. Tudo aquilo, surgido de fermentação, de ebulição, tão nítido como imaginava ser um Van Gogh, um Kurosawa, um Rodin, um Picasso, tudo aquilo estaria fadado à morte, antes dele próprio (mentira, morte sim mas a dele próprio). Talvez se ele conseguisse falar tudo aquilo para alguém, um pouco que fosse, mas para quem? E onde encontrar as palavras? Nele, as palavras eram tão poucas, tão fracas, lentas, curtas, apressadas, como se ele depositasse em cada uma muitos mais significados que aqueles comumente aceitos, como se fosse um pintor de esboços, esboços para os outros, não para ele próprio, capaz de identificar numa frase sua, dita, um texto verdadeiramente dito. Por isso falava tão pouco, sempre achando que dizia muito. Não sabia braile, tinha uma vaga idéia dos sinais que compunham o alfabeto, só lhe restava tentar... entre um pincel semeando traços sobre uma tela e incapaz de conferir (e para que conferir?)... entre uma caneta semeando sucessões de sinais sobre um papel, poderia assim pedir a alguém que o lesse (e para que conferir?).