Múltiplas existências

À frente, através do pára-brisa degrade, vê a estrada ser engolida pelo veículo. Aparece, reaparece e desaparece no horizonte, numa reta sobre uma topografia ondulada. O sol se pondo, dá um matiz vermelho dourado à paisagem naquele fim de tarde. Quase não se cruza com outros veículos pelo caminho. O rádio, mesmo alto, não consegue quebrar aquela sonolência. De repente, um gigantesco caminhão surge frente a frente. O mato arranha o rosto, puxa a direção para o outro lado. Cadê a pista à esquerda? Cadê a pista? Solavancos! Está à direita? As costas doem. Está mais escuro. O carro pára. Respira fundo. Olha para os lados. Está no acostamento. O sol, que antes se punha à frente, um pouco à direita, está atrás agora. Tenta ligar o carro. Dois longos solos e só então ele pega. Guia para a faixa, gira 360 graus. As mãos estão doídas. Tentando se refazer do susto, prossegue se perguntando como conseguiu se livrar do choque frontal. Como? Melhor não pensar. Acelera!. O Rádio, indiferente, continua tocando a mesma música. Seria a mesma música? Nem quer parar para fazer análise de danos. É claro que se a depressão do solo... Porque depressão? Aquilo era uma vala mesmo! Bem, se aquela vala fosse mais funda, não teria saído sozinho de lá. ...Ou se o carro tivesse entrado perpendicularmente nela... Teria um choque frontal com sua lateral. Mas isso não ocorreu e ele está indo ver mulher e filhos.

Mais uma hora e estará em casa. Quase se esquece de como ela era. De como era a sua própria casa. Só aos poucos ia lembrando os detalhes corriqueiros da chegada a casa.

Acho que é por isso que as pessoas dizem que “nascem de novo” ao escaparem de um acidente ou, quase acidente, pensa.

Conta o que houve à esposa. Algum tempo após o jantar, põe as crianças para dormir e vai para o seu quarto.

Distrai-se sentado no banco da praça em frente à rua que mora, a uns 60 metros à frente de sua casa. O sol discreto daquela manhã de outono lhe relaxa. Um carro da polícia lhe chama a atenção. Ele chega discreto e pára. Dois policiais descem. Um fica no carro e o outro se dirige para a sua casa. Alguns segundos depois a porta abre. É sua esposa. Ela lhe parece diferente. Mais branca... Cabelos mais negros e maiores... Mesmo assim, estranhamente, ele sabe que aquela mulher é a sua esposa! O policial entra. Não sabe porque, mas não se levanta para ir ver o que está acontecendo. É como se tivesse que deixar rolarem os acontecimentos. Dez longos minutos se passam. A porta abre novamente. O policial sai e em seguida a sua esposa. Ela parece chorar muito. Entram no carro e vão embora!

Acorda suado. Sua esposa está ali, dormindo. Levanta-se, vai até o quarto das crianças, confere se estão dormindo, vai até a cozinha e, após tomar um pouco dágua, volta ao quarto. Olha mais uma vez sua mulher ali. Ela é diferente daquela que viu no sonho, mas ambas são a mesma pessoa. Tenta se acalmar. Concentra-se tentando estabelecer uma relação entre as duas. Não consegue. Tem uma outra sensação intrigante! Seus filhos... Eles são tão pequenos. Aquela mulher do seu sonho lhe passou a sensação de que os filhos com ela são um pouco mais velhos! Deita-se, mas não consegue dormir. Algo lhe diz que outros sonhos lhe reservam mais sobre o que jamais imaginou. Que por algum engano seu consciente ultrapassou uma barreira proibida.

- Bom dia!

- Como vai? Quer sentar?

- Obrigado.

Passam-se alguns minutos sem nenhum dos dois falarem.

-...E então? Pergunta o psicoterapeuta.

-...É uma coisa que está ocorrendo comigo.

Passam-se mais uns minutos. O terapeuta está num canto da sala, na penumbra. Parece achar melhor não mostrar seu rosto jovem logo.

- Quer falar sobre isso?

- Preciso, se não enlouqueço. Aliás, acho que já estou ficando louco.

O psicólogo o aguarda com o semblante clássico.

- Acho que tenho muitas vidas!

- Você acha que tem muitas vidas.

- É.

- Por que acha isso?

- Porque a cada perigo de morte que me ocorre, sonho, a seguir, com a alternativa de que eu estivesse morto e com as pessoas que me cercam dentro daquela situação.

-... E como se sente?

-... Não é só isso. Há mudanças entre a vida segundo este momento que vivemos agora e...

- Continue...

- E o outro, como direi... Mundo. O mundo que deixei.

- As pessoas não são exatamente as mesmas e nem as coisas.

- Curioso! Provavelmente teremos muito que conversar. - Tendo dito isto, acende a luz da sala. Um longo silêncio testemunha o olhar de espanto do cliente. Tem certeza de que já esteve ali antes, mas não sabe como nem quando.

Talvez lhe seja revelado no próximo insight.

fim