Definitivamente

"Definitivamente", que palavra assustadora e sombria, a ilusão de imutabilidade e certeza pairando em cada letra. Lembro-me de uma metáfora de Nietzsche, de um tigre, de alguém cavalgando um tigre, ou da verdade cavalgando um tigre, que falava de certezas fugidias e frágeis, das verdades que ruem e são substituídas por outras verdades, do solo instável sobre o qual caminhamos e que jamais questionamos.

Definitivamente, era uma boa metáfora.

Foi lendo Nietzsche, numa escada para o pátio da universidade, que primeiro conhecido Rubião, ou melhor, foi numa estação de trem em Berlim, e ele não se chamava Rubião, mas Krueger, ou Schieffer. Ele me perguntou o que eu lia, e sem interesse lhe mostrei a capa do livro, “Also sprach Zarathustra”. Ele riu, enfiou a mão dentro da mochila e retirou um livro idêntido. Definitivamente, uma incrível coincidência.

Embarcamos e ele se sentou ao meu lado. Falamos sobre o idealismo alemão, metafísica, comunismo e discordamos sobre a qualidade do cinema de vanguarda russo, sobre o que eu pouco entendia, mas contra o qual eu tinha fortes convicções contrárias.

Já havia passado da meia-noite e todos os passageiros já dormiam, quando as luzes do trem se apagaram e o freio foi acionado. Houve gritaria e pensamos que iríamos morrer, que talvez o trem houvesse descarrilado ou se chocado contra algo. Ou isto teria ocorrido num bimotor de uma companhia aérea indiana que foi forçado a pousar num aeroporto clandestino em meio ao nada. Ou poderia ter sido também num ônibus interestadual que se perdeu em meio à floresta amazônica. Não me lembro... Definitivamente, não me recordo.

Mas sei muito bem que era noite e que o impacto havia sido tão forte que parecia estarmos rolando ribanceira abaixo, as malas rodopiavam chocando-se contra o teto e contra os passageiros, e alguns de nós, que estávamos sem os cintos de segurança, também éramos arremessados em todas as direções.

Gritei o nome de Schieffer, mas ele não respondeu, talvez porque o nome dele não fosse este.

Então o silêncio.

Então recomeçou o choro, os lamentos e os gritos. Sobre mim, havia o corpo de alguém. Definitivamente, estava morto.

Consegui arrastar-me para fora e nada podia ser visto. As trevas só eram violadas pelo incêndio que começava a consumir o trem, ou o avião, ou o ônibus. Uma explosão ou outra iluminava as árvores ao nosso redor, mas nada suficiente para nos dar alguma indicação de onde estávamos. Um céu sem estrelas nem Lua aumentava o nosso desespero.

Alguém segurou em meu braço, suplicava ajuda. Tentei remover as ferragens de sobre ele e com abraços me agradeceu. Chamava-se Indra e era vendedor de peças de relógios. Definitivamente, ele estava atrasado para seu compromisso, ele me disse. Rimos, e caminhamos de braços dados para longe da catástrofe.

Ambos nos sentamos sobre um pedregulho e assistimos ao terrível espetáculo dos murmúrios e das chamas. Nossa esperança era que alguém viesse nos resgatar, mas a noite nunca acabava nem o sol raiava no horizonte.

Especulamos que talvez estivéssemos mortos e nossos corpos estraçalhados entre os destroços, mas logo descartamos esta hipótese, pois Indra tinha um corte profundo na coxa, de onde minava sangue, e concluímos que fantasmas não sangram, portanto, que ainda estávamos vivos. Além disto, Indra dizia-me que se sentia fraco e, se não nos tirassem dali, ele pressentia que não conseguiria sobreviver. Entregou-me sua maleta de viagem e suplicou-me que, caso morresse, eu viajasse até sua cidade-natal e a entregasse à sua esposa e filhos. Definitivamente, um pedido que me incomodou.

Mesmo assim, jurei pela alma de meus pais que faria o que me havia sido pedido, principalmente porque contava com o nosso resgate imediato. Todavia, Indra perdia sangue com profusão e reparei que ele mal se sustinha sentado. Passou, então, a balbuciar devaneios até que, pouco a pouco, ele morreu.

Morria também os lamentos longínquos dos que estavam entre as ferragens e fui ficando sozinho. Definitivamente sozinho.

Apanhei a maleta de Indra e caminhei sem rumo pela floresta até chegar a um rio, ou a uma estrada, e continuei caminhando por entre aquela noite sem fim. Ao meu redor, ouvia o rugir de criaturas da selva e temi que estivessem me seguindo. Sobreviver a uma catástrofe e ser comido por um predador era definitivamente irônico.

Mas isto não ocorreu e após horas e horas vagando consegui chegar a um vilarejo, onde me acolheram, deram-me alimento e de onde partiram os primeiros esforços para resgatarem os eventuais sobreviventes do desastre.

Num quartinho de hotel, acomodei-me na cama e abri a valise de Indra. Nela, havia várias peças diversas de relógios, fato que eu já esperava, mas também havia algumas fotos de familiares e alguns maços de dinheiro. Era isto que Indra esperava que eu retornasse a seus parentes. Contudo, eu não tinha indicação alguma de onde encontrá-los, por isto, apanhei o dinheiro e enfiei a valise debaixo da cama. Definitivamente, Indra que se ferrasse!

Na TV, as notícias do acidente ocupavam todas as manchetes e falavam dos sobreviventes. Em breve, eles apareceriam por aqui também, pedindo que eu desse meu relato para as câmeras, mas como nunca fui muito eloquente, deixei o vilarejo e segui meu rumo.

Definitivamente, um rumo bastante tortuoso, como todos os demais infindos rumos possíveis.