A carta do homem-pássaro à sua enamorada.

Inicio este relato com singelas lembranças e reflexões porque foi esse o único meio apropriado que encontrei para expressar o que sinto. Julgue-o como desejar:

Eu o chamava de Passarinho. Passarinho; porque não nomeio nada, acredito que o ato de nomear as coisas cria uma relação de proprietário e posse. Passarinho vinha a minha janela todas as manhãs. Com as perninhas de graveto no alto de um pequeno poleiro, inclinava-se sobre o comedouro; beliscava alguns alpistes e, por fim, entoava belas melodias. Por algum motivo metafísico; Passarinho sempre sabia como eu estava a cada manhã, logo, sabia a canção mais adequada para cada amanhecer. Uma manhã, após a morte do meu avô, lembro que Passarinho assoviou notas tão profundas e tristes que poderiam ser alvo da inveja de qualquer bluesman.

Passei da infância à adolescência tendo Passarinho como o melhor amigo. Nossa amizade era tão forte que comoveu o meu tio Douglas levando-o ao ponto de comprar uma gaiola. Achando que seria do meu agrado, ele aprisionou Passarinho no cativeiro recém comprado. Acredito que não posso chamá-lo de insensível, então que seja de insensato. Acho desnecessário descrever o quão fiquei chateado ao ver Passarinho naquela gaiolinha apertada, mas digo quais foram as minhas imediatas ações: Abri a janela do meu quarto; abri a portinha da gaiola; estiquei a mão espalmada na altura da portinha e esperei. Ainda muito assustado, Passarinho pousou em minha mão. Foi a primeira vez que o tive tão perto, embora gostasse muito dele, não gostei daquela sensação de proximidade forçada.

Essa amizade tão pura que tive por Passarinho foi abalada no final da minha adolescência, quando a prefeitura cortou a maior parte das arvores do meu bairro. Passarinho ainda resistiu algumas semanas naquele ambiente cinza morto, mas acabou sendo obrigado a procurar lugares mais arborizados para habitar. Desde a partida do meu grande amigo passei a invejá-lo mais do que já o invejara antes, porque percebi naquele frágil pássaro uma dádiva que não é dada a todos: a liberdade. Eu havia descoberto que sou um pássaro no corpo de um homem, frustrado por não poder voar pelos céus, mas consolado pelo livre arbítrio.

Agora, por que te contei isso? Calma, veja bem: minha querida, na primeira vez em que a vi, andando no calçadão como se pisasse em nuvens, senti algo que nunca sentira antes, foi uma felicidade tão imensa, contagiante e inominável que não encontro mais palavras para defini-la. Essa felicidade se estendeu durante todo o nosso relacionamento, porém foi diminuindo dia-a-dia. Infelizmente, agora só me resta uma pequena centelha desse maravilhoso sentimento, que assim como a amizade por Passarinho, jamais morrerá.

Embora as características mais profundas de cada um seja o fator mais importante para definir o rumo de nossas histórias, muitas vezes nós erramos ao interpretar os sinais do destino escolhendo caminhos alternativos na estrada da vida. E esses caminhos podem nos dar grandes felicidades, entretanto, nos roubam algo nosso, algo tão sublime e fundamental que é estranho a nossa própria consciência. Portanto, uma lacuna na alma é o preço que nós pagamos por não seguirmos os caminhos definidos pelo destino.

Agradeço sinceramente por ter agregado a minha alma, nobres sentimentos que me acompanharão por toda a eternidade. Mas apesar de todo o bem que você me faz, preciso partir para um novo horizonte, porque assim como a gaiola feriu ao Passarinho, a nossa relação, de certa forma, me feri. Acredite, sou como um pássaro. Creio veementemente que o meu destino é ser livre. Desculpe-me se tomo essa atitude tão tarde, mas só agora percebo o quão as grades de uma relação tão próxima me sufocam e me tiram o viver.

Se me permite ainda, depois dessas sinceras palavras, um pedido: Seja a minha amiga, porque creio que será uma amizade verdadeira. Prometo que cantarei as mais belas palavras, empoleirado em sua janela, nas manhãs que você precisar, porém, dispenso o alpiste.

De alguém que ainda a ama.