Adeus, Dom Quixote

Apoiar a vida humana, apoiar todas as formas de vida.

O grande mistério que é uma mulher... Ouçam, achei que estava acabado e aguardava apenas a liquidação de meus negócios terrenos para poder morrer dignamente, de forma a não deixar complicações para os meus descendentes.

Passei a desfazer-me dos objetos que com tanta ganância coletei pelos anos afora. Livros raros, primeiras edições autografadas pelo autor, moedas antigas, peças de bronze, mármore e marfim, armas de aficionados...

Os vendi pacientemente pelos melhores preços, sem saber exatamente se havia ou não tido lucro na transação, a única condição que fosse à vista e a dinheiro, como se eu fosse um ladrão de minhas posses. Afinal, para que serve toda essa tralha? Com o dinheiro entrando participarei de boas farras regadas a champanhe, saboreando grande charutos cubanos.

Diferentemente de outros futuros defuntos de cabelos brancos, não fazia questão de ter mulheres, jovens ou velhas em meus acepipes. Sexo era matéria ultrapassada para mim, e se, por ventura, uma jovem vinha me fazer afagos, claro estava que era para amealhar um pouco de dinheiro do que pelo impossível amor que eu pudesse nela despertar. Coitada, toma lá um pouco do meu tesouro...

Ah! Esses velhinhos de carnes frouxas, com pensamentos lúbricos e perversos, não seria eu que iria passar de velho babão a chupador de carteirinha. Afinal de contas, sexo serve para a reprodução e é uma lástima ver idosos querendo se reproduzir como se fossem ainda garanhões premiados.

Assim, cheguei ao Dom Quixote, uma edição com capa de couro e título em letras de ouro, em espanhol. Gravuras de Gustave Doré, simplesmente maravilhosas. Resta-me dizer que nunca o li, deveras mente. Li trechos, admirei desenhos. Tinha também uma edição portuguesa para tirar as dúvidas. Mas nunca tive tempo, ou disposição, no dizer dos meios literários, de debruçar-me sobre a obra. Não debrucei, nem deitei, e muito menos me acocorei. Levei o tijolaço debaixo do braço para vendê-lo a um mercador.

Sentia-me como um garoto matando aula, quando adentrei na loja sombria do gajo. Cheiro de xixi e cocô de gato, misturado com a sabedoria poeirenta dos livros para quem se dispusesse a debruçar-se sobre aquele entulho secular do enorme e escuro sebo, onde abundava a Carne e João do Rio e Oscar Wilde em papel jornal.

- Eis aqui um Don Quirote! Disse eu exultante pronunciando corretamente o j com som de r.

- Ah!, sim, a edição de Joaquin Gil, de Buenos Aires, de junho de 1944. Pena que desse eu já tenho doze exemplares. Todos encalhados, há anos. Acho que o último trouxa que comprou foi você.

Diabos, modo excelente de negociar, deu-me o tranco e anunciou:

- Posso pagar, no máximo, 10 reais e olha que é muito, hein?

- Mas, Manoel, com dez reais não como nem um filé! Don Quijote vale mais, tem que valer. É um Don Quijote, cara! – enfatizei o Quijote com um movimento longo do braço. Se estivesse empunhando uma espada, teria cortado o mercador em dois, como as cimitarras andaluzes dos meus livros de criança.

_ Cinqüenta, no mínimo cinqüenta.

Poderia com o valor de um Don Quijote, divertir-me enquanto comia um filé à francesa e tomava umas canecas de cerveja. Caso o mantivesse, teria muitas e muitas horas de chateação, gastando os olhos e as cataratas naquelas letrinhas miúdas e sem sentido. Afinal, nunca consegui avançar muito na leitura do calhamaço, cujo prefácio começa com a ironia: “desocupado leitor...”

Desocupado, realmente, é tudo o que me restou. Desocupado, faminto, roupas sujas, barba por fazer. Tal como um Don Quixote, passei a vida imerso num sonho, cujo despertar parece ser a morte.

Manoel bota 10 reais na minha mão.

- Se não podes comer filé, coma um P.F.

Para muitos de nós, frutos maduros prontos para se desprenderem da árvore, a morte é a última esperança, a única esperança.