O SEGREDO DA CAIXA

Era uma vez, há muitos e muitos anos, um rei como hoje já não existe mais. Era justo e sábio. Administrava seu reino com firmeza e ternura. Durante seu reinado, não havia pobreza nem fome. A vida de seus súditos, de um modo geral, era modesta. Mas não lhes faltava o pão nem o vinho. E todos viviam alegres e em harmonia.

Esse rei possuía uma caixa muito valiosa, pois dentro dela havia um segredo muito importante. Ninguém, além do rei, sabia o que havia dentro da caixa. E para proteger o misterioso conteúdo, o rei colocou, pessoalmente, um segredo na fechadura. Era uma pecinha de metal que, acionada da maneira certa, fazia a caixa se abrir como que por encanto.

O rei tinha dois filhos. O caçula era bom, honesto e justo, como o pai. Do outro já não se podia dizer o mesmo. Era ambicioso e cruel. Corria à boca pequena que planejava destronar o próprio pai e assumir o poder por completo. Certa vez, ouviu de uma velha cigana que somente conseguiria por as mãos na coroa e apoderar-se do trono quando conseguisse a posse da "caixa mágica". A princípio, o malvado príncipe não deu muita importância, pois mal sabia da existência da tal caixa. Mas, com o tempo, movido pela curiosidade e pela cobiça, começou a procurá-la por todo o palácio.

O rei, porém, era um homem que conhecia a alma humana. Com muita tristeza no coração, percebeu as intenções do filho mais velho e tomou suas providências. Acontece que o rei tinha um único amigo em quem confiava verdadeiramente. Este amigo era o alfaiate, que por ser pobre e silencioso, ninguém desconfiava que era tão próximo ao rei.

O rei revelou ao alfaiate não só como se abria a caixa, como o fez na sua própria presença. Quando o alfaiate olhou para o conteúdo da caixa, seu rosto se iluminou! Jamais, em toda a sua modesta vida, pensou que veria coisa igual! Sentiu tamanha felicidade com o que viu, que chegou a imaginar que se a morte o levasse naquele mesmo instante, partiria em paz. O rei tornou a fechar a caixa e entregou-a ao amigo, dizendo: - "Você agora sabe. A partir de hoje, você é o guardião desta caixa. Aconteça o que acontecer, jamais a deixe cair nas mãos de quem quer que seja. Guarde-a com você, até o dia em que eu, e somente eu, a pedir de volta".

Mas, que infortúnio! O filho mais velho havia subornado os encarregados da própria guarda real! Em menos de meia hora, o coisa-ruim soube da visita de seu pai ao alfaiate. "É óbvio que meu pai não foi lhe encomendar vestes novas", pensou, "pois, do contrário, seria o alfaiate quem viria ao palácio". No dia seguinte, o malvado mandou chamar o alfaiate, com a desculpa de que precisava renovar seu guarda-roupa. O alfaiate não pensou duas vezes: carregou seu cavalo com algumas roupas e provisões, enrolou e pendurou a caixa bem amarrada ao seu próprio corpo e partiu sem olhar para trás.

Ao saber do sumiço do alfaiate, o ambicioso príncipe teve a certeza de que a caixa estava com ele. Em pouco tempo, a caixa tornou-se o assunto principal do povo. Em todos os recantos do reino, do mais humilde ao mais sábio ou rico, não se falava noutra coisa:

O que haverá dentro daquela caixa?

Enquanto isso, o pobre alfaiate continuava sua viagem, atravessando florestas, rios e montanhas. Viajou por três dias e três noites, sem descanso, parando apenas para alimentar e dar água ao seu cavalo.

De repente, eis que o cavalo se assusta com um pequeno esquilo, tropeça e, na queda, a caixa cai, rola por um pequeno barranco e desaparece por entre as águas do rio. O alfaiate, exausto, desesperou-se. Não havia o que fazer. Era tão leal ao rei e não conseguiu guardar seu valioso segredo. Tão envergonhado ficou, que escondeu-se num mosteiro, sem revelar quem era.

Mas, numa vila não muito distante dali, havia um jovem humilde e distraído que gostava muito de pescar. Todos os dias, à tarde, pegava seu barco e saía para a pesca. Naquele mesmo dia, ao puxar sua rede, ao invés de peixes - que surpresa! - havia ali uma bonita caixa que reluzia à luz do sol.

"O que será que há dentro desta caixa?", pensou. "E como chama a atenção!"

Mais que depressa, o jovem pescador tentou abrir a caixa.Tentou de todas as maneiras, sem sucesso. Como não conseguiu abri-la, sua curiosidade ficou ainda maior. Foi então que o distraído pescador se lembrou de já ter ouvido boatos sobre uma caixa perdida. Ah, e era do rei! E o melhor: o rei estava oferecendo uma recompensa pra quem encontrasse e devolvesse a caixa intacta!

Imediatamente, o jovem pescador pegou aquela caixa, ajeitou-a dentro do seu barco em um cantinho protegido, e remou o mais rápido que pôde até chegar em terra, onde foi correndo entregar a caixa ao rei.

Chegando ao palácio, ele se identificou e aguardou pelo rei. Quando este chegou, o pescador entregou-lhe a caixa e pediu sua recompensa.

Qual não foi a sua surpresa, quando, ao invés de recompensa, ele foi levado pelos guardas e trancado numa masmorra escura e fria. Pode parecer estranho, mas, na verdade, não era o rei que pegara a caixa das mãos do pescador. Era seu filho mais velho, que havia prendido o próprio o pai numa torre inacessível. E, disfarçado de rei, recebeu a caixa, que, naquele momento, era tudo o que mais desejava na vida.

O reino agora estava nas mãos do filho avarento, cruel, criminoso, que escondera o verdadeiro rei e que ainda possuía a poderosa caixa. Só que TER não é SABER. E, sem conhecer o conteúdo da caixa, ela de nada valia. As únicas pessoas no mundo que sabiam como abrí-la, eram seu pai e o alfaiate.

O outro filho do rei estava combatendo inimigos em outras terras, porque seu irmão o queria longe, bem longe e o fizera partir para a guerra.

Não restou outra alternativa ao malvado príncipe, agora rei, senão viajar até a torre onde estava enclausurado seu pai e ordenar que ele abrisse a caixa.

Desta forma, o príncipe mandou preparar uma comitiva dos seus súditos mais leais, cercou-se de guardas armados e, em apenas dois dias, todos estavam prontos para a viagem que seria a mais importante de suas vidas. Provisões e remédios, roupas e barracas, todos estavam ansiosos e pressurosos para descobrir, finalmente, qual é o conteúdo de tão lendária caixa.

A viagem não foi fácil, da mesma forma que o príncipe escolhera um lugar inacessível para trancafiar seu velho pai, agora, nesta mesma estrada estava ele, sentindo o sacolejar dos cavalos a passo mudo, porém constante. A leste, o sol pintava as nuvens com um lilás profundo e a noite galopava mais rápido que a comitiva. Era hora de descansar, de procurar uma clareira segura e montar acampamento; mesmo que a impetuosidade do príncipe mostrasse claramente favorável a prosseguir sob o manto da noite, mas o bom senso de seus conselheiros convenceu o nobre rapaz.

Sabia que precisaria de um dia inteiro para chegar à torre onde enclausurara seu velho pai, sem dó nem piedade. Afinal de contas, para ser soberano, é necessário ter atitude, personalidade, mesmo que para exercer esta soberania fosse necessário usar as cabeças de amigos e familiares como degraus e usar seu sangue como bálsamo de coroação. Sim, pois seu pai não fora deposto com um simples ultimato, mas seus leais soldados lutaram até a morte – ou à prisão – em favor do legítimo rei de sua nação e corações.

Contemplando a miríade de estrelas, uma lua ovalada suspensa no céu, o jovem déspota deita-se ao relento, ao redor de uma fogueira e o crepitar dos gravetos lhe incomoda. Não tem sono, apenas um cansaço que lhe fere as ancas e a cabeça. Começa a recordar de tudo que houvera feito para garantir, mesmo por usurpação, o trono de seu principado.

A memória é um férreo juiz, impiedoso, e faz-lhe lembrar sobre sua infância, de como fora criado com amor, açúcar e afeto. Estava sendo talhado para herdar o reino, de forma justa e aceitável, não pelo modo como fizera. Os súditos dobravam os pescoços diante de sua passagem, mesmo menino, para reverenciá-lo. Sentia que o mundo girava ao seu redor (e de fato era assim mesmo) e adorava a idéia de mandar em todo aquele povo, mesmo nos seus coleguinhas da mais terna infância, estes seriam súditos que lhe tributariam impostos e devoção.

Lembrou também do nascimento de seu único irmão, quando tinha pouco mais de oito anos de idade. Um parto complicado, uma chegada ao mundo de forma tumultuada, mas que aconteceria pela coragem de sua mãe e dele próprio. Uma pequena vida, já precisando lutar para sobreviver, desde o útero até o nascimento, mas que vingara e chegava ao reino com luz própria. Talvez tenha sido neste ponto o divisor de águas na consciência do primogênito. Todos os olhares, mãe e pai, criados e amas, súditos e súditas, todos se voltavam ao caçula e comentavam o heroísmo de mãe e filho: “essa é nossa rainha, que gerou um verdadeiro rei, corajoso, destemido, com imensa vontade de viver”, era o resumo das exclamações do povo. Indignava-se ao saber que o próprio pai fizera uma promessa pública de indulgências, perdões e redução de tributos se sua amada e seu caçula sobrevivessem à aventura da gestação. Com isso, o povo se sentia participante da casa real e co-irmãos daquele que haveria de nascer. Não só o rei cumpriu seus votos como distribuiu presentes aos infantes daquele reinado, como prova de agradecimento à vida, que passara a valorizar ainda mais.

Diante disto, o mais velho, já com 9 anos, mente e coração empedernidos, espírito de ferro e bronze,começava a delinear seu futuro comportamento e deixou que sua alma alimentasse os mais terríveis desejos ante sua família. Nem mesmo a morte de sua mãe, poucos anos depois, fê-lo apagar essa chama de vingança por um mal que nunca lhe fora feito.

A fogueira se tornara carvão e poucas brasas insistiam em arder. Todos à sua volta estavam dormindo, exceto os guardas de plantão que formavam um círculo em volta do príncipe. Mas a noite seria cruel, com aquela lua iluminando sua memória e pensamentos...

O dia mal raiou e todos em pé começavam a jornada final. Um pão aquecido em brasas e um pouco de mel bastavam de desjejum. A ânsia de chegar logo à maldita torre era maior que qualquer fome e o desjejum poderia ser menos lauto que o servido nos átrios do palácio real.

Cavalos descansados, alguns jumentos bons para a carga, dezenas de pessoas para garantir a segurança e o bem estar do usurpador e a distância era cada vez menor, passo a passo, trote a trote; não somente seu cavalo, mas suas lembranças impulsionavam-no em direção ao seu destino fatídico: queria ter rapidamente a visão paterna em sua retina e poder, de uma vez por todas, desvendar o mistério daquela caixa. Um jumento especialmente protegido carregava, sem reclamar, o motivo de tamanho deslocamento. Uma caixa, simples e robusta, talhada em carvalho e decorada com metal em suas bordas...o que haveria de especial naquele compartimento?

O sol já passava de lado a outro, mais de meio-dia, quando, envolta em brumas, o príncipe conseguia vislumbrar a torre. Era alta, inacessível, exatamente como havia pedido ao verdugo que conduziu o rei até seu fatídico destino. Uma vez por semana havia a troca de guarda, quando era trazida a ração real: pão, cereais e água, uma dieta muito diferente daquele que estava acostumado.

Ao aproximar da edificação, o carrasco de plantão fez uma saudação que como resposta teve apenas uma frase seca, lâmina de ódio e desprezo, cortando o ar:

- Leve-me até meu pai!

O súdito não hesitou e galgou cada um das centenas de degraus que conduziam ao alto da torre. Um caminho de musgo e umidade, paredes frias como uma acusação formal de assassinato, usura e maldade. Degrau por degrau, plataforma por plataforma, até à masmorra, não subterrânea, mas elevada, que tem como sentença de morte a lei da gravidade. Quem seria capaz de voar como um Ícaro pós-moderno e fugir daquela prisão?

Pai e filho se encontram, depois de muito tempo, e sem nenhuma cerimônia, o príncipe diz ao pai:

-Diga-me como abrir esta caixa e te farei livre para viver em outro lugar.

O velho sentiu suas pálpebras tremerem. Era sábio o suficiente para saber que seu filho não teria a humildade necessária para pedir-lhe perdão, mas seu coração paterno guardava um último resquício de esperança para que ele viesse a fazê-lo. Sentiu acuado, impotente, mas sua sabedoria prevaleceu:

-- Meu filho, você não precisa mais do que esta caixa contém. O segredo agora se tornou inútil.

O filho, mesmo assim, tomou a espada em sua bainha e encostou a ponto no pescoço enrugado de seu pai. Tornou a exigir que abrisse a caixa.

-- Meu filho, mate-me, mesmo porque eu já morri desde o dia em que você me encerrou nesta prisão.

Num ímpeto de insanidade, ele mesmo degolou seu pai e encharcou sua túnica com um banho de sangue real. Seus dois acompanhantes correram aterrorizados e espalharam a notícia entre os membros da comitiva real. Pânico e terror caíam sobre eles como as chuvas de verão.

No alto da torre, o príncipe arremessara a caixa para baixo para destruí-la e por meio da força (como fizera para usurpar o trono) saberia seu conteúdo, e assim o fez, gritando do alto da torre:

- Afastem-se da caixa, quero ser o primeiro a ver o que ela contém.

Desta forma, arremessou a caixa, que realizou uma viagem em queda livre, mas os passos do príncipe eram mais rápidos e chegara antes ao chão da torre. A caixa se espatifara com um ruído fúnebre naquele chão rochoso e finalmente o príncipe pôde contemplar seu conteúdo: Uma coroa inimaginável, perfeita, obra de um ourives único, feita com metais únicos: ouro e platina. Pedras preciosas ornavam seu perímetro e, junto à coroa, uma mensagem real, carimbada com o anel de seus pais:

- Que esta coroa repouse sobre a cabeça de nosso primogênito quando for a hora correta de este subir ao trono e que seu reinado seja justo e feliz, para ele e para nosso povo.

Um misto de pânico de loucura tomaram conta do príncipe, que somente conseguia chorar e balbuciar palavras sem sentido. Mas era tarde demais. Quando contemplou o primeiro degrau da torre, viu que o sangue de seu pai já tingia as pedras...

Não demorou muito para que uma outra comitiva liderada pelo filho caçula do rei chegasse à torre. Os súditos leais ao primogênito não esboçaram reação ante a chegada das tropas reais e se entregaram para um julgamento justo a ser realizado no reino. Quanto ao usurpador, este foi levado acorrentado e teve sua segunda pena promulgada pelo seu irmão, que ficasse preso até sua morte.

A primeira pena ele já estava cumprindo desde que abriu a caixa: a lembrança de saber que tudo que sempre quis, seria dado a ele, mas quis ele mesmo ser senhor do tempo e do sangue alheio. Agora era escravo do tempo e de seu próprio sangue: enquanto vivesse, seria penalizado por sua memória.

Marcelo Lopes
Enviado por Marcelo Lopes em 30/06/2005
Código do texto: T29414
Classificação de conteúdo: seguro