VINHO

Apenas uma garrafa de vinho francês e uma taça de cristal dinamarquesa compunham aquela vasta mesa da sala escura. O motivo da comemoração, o leitor logo saberá. Deixemos que eu termine este terceiro cálice. Mas para matar a curiosidade de vocês e dar início à minha narrativa, esclareço que era uma graciosa mulher quem arrumava a mesa naquela noite cálida e apaixonante.

Espere, leitor. Vou dar um gole... Pronto. Podemos continuar. Essa linda mulher a quem me referi se chama Noélia. Uma mulher incrível ela é. Inteligente, extrovertida, sensata, carinhosa e extremamente apaixonante, com sua mania encantadora de beber vinho sozinha, sem motivo algum. Mas hoje, Noélia tem um motivo. É o que logo saberemos, pois até eu, leitor, não sei. Assim como você, recai-me uma curiosidade pequenina.

Vou dar mais um gole... Pronto, leitor. Para entender o por quê da comemoração de Noélia, é necessário saber que ela acabara de vir do trabalho. Noélia é colunista de um jornal de grande circulação. Passa o dia decidindo o tipo de texto, fotos, título, personagens etc., trabalho consumível para qualquer um. Mas Noélia gostava. Era a única coisa que a fazia estar longe do marido, aquele homem...

Terceiro gole do terceiro cálice. Algo estranho, leitor. Noélia odiava o marido, o canalha. Nunca deu valor a Noélia. Não amava a esposa. Por isso Noélia comemorava. Mas calma, leitor. Noélia não comemorava o fato de o marido não amá-la. Era outro motivo. Era no trabalho que Noélia esquecia as crises de ciúme do marido, as recomendações nefastas, as ameaças bobas de homem possessivo. Noélia queria viver livre do marido.

Espere... Pronto. Estava em meu quarto gole. Acho que é o último. Cansada de sofrer, Noélia decidiu agir: queria se livrar do marido. Mas como, leitor? Fugindo? Matando? Divorciando? É com pesar, leitor, que afirmo que Noélia escolheu a segunda opção. Matá-lo seria a única forma de estar completamente livre. Se fugisse ou divorciasse, iria persegui-la aonde fosse. Se morto, persegui-la-ia? Acho que não.

Mais um gole, leitor. Pensei que fosse o último, mas não. O vinho já tomou conta do meu sangue, como em transubstanciação religiosa. Noélia preparou tudo para sair da vida do marido: chamou-o ao seu escritório na Dummont. Estava decidida. Do escritório, desceram anonimamente ao estacionamento, onde ocorreu a banal discussão ensaiada: Noélia provocou ciúme no marido, o que o fez ficar furioso. Só sei, leitor, que a quente bala do revólver atingiu o peito do marido de Noélia. Estava morto. Noélia fez-se gáudio.

... ... ... ... Ah, leitor. Era o meu último gole... Onde parei? Espere. Deixe-me ler onde terminei. Pronto. O marido de Noélia morreu. Noélia somente fugiu dali, indo para casa. Descer à adega, pegar uma garrafa de vinho e uma taça de cristal dinamarquesa foi obra de segundos. Na vasta mesa, Noélia apresentava um semblante alegre, porém preocupado.

Não queria matar o meu marido, leitor. Eu não tive escolha. Não é justo sofrer por alguém que não me valoriza, que não me aceita... Mas hoje eu tenho um motivo para realmente comemorar.

[Neste momento, o marido de Noélia chega do trabalho. Noélia o observa e cai em cima da mesa, bêbada.]