Requintes de crueldade

Naquela tarde ensolarada, chegávamos a um apartamento, no qual íamos passar o verão numa praia paradisíaca. Logo de cara, deparei-me com uma jovem muito sinistra e apática, sem um pingo de sangue para indicar que estava viva. Era pálida, magra, feia e sem vida.

Fiquei dias observando seu comportamento, ela passava horas e horas a olhar para um só lugar. Agarrada a um pilar do prédio, vagava com seu olhar quase morto. Sua tristeza era percebida e comentada por todos que ali veraneavam.

Impaciente, muitas vezes, passeava desnorteada de um lado para outro, sem rumo. Cheguei a pensar que estava maquinando algo. Seu aspecto era horripilante, sua áurea pesada, tudo isso acompanhado de uma roupa preta que carregava a dias naquele corpo branco como um papel.

Minha curiosidade foi tamanha que tentei uma aproximação. No primeiro momento, ela recuou-se. Tentei a segunda vez e... nada, não tive sucesso. Na terceira tentativa disse apenas, “bom dia!”. Ela nada respondeu. Pensei por algum momento que fosse muda.

Já havia passado uma semana e ainda não tinha escutado sua voz. Descobri com alguns vizinhos que aquela jovem estava com as irmãs passando férias na casa do tio. Este era um sujeito quarentão, gerente de um clube na cidade. Só chegava em casa a noite e, aos finais de semana, gostava de freqüentar os restaurantes chiques e os bares da orla marítima. Vivia rodeado de garotinhos e, quando não saia de casa, que era muito raro, dava pequenas festas que perdurava por toda madrugada. Corriam boatos que era homossexual.

Aquela “menina” devia ter entre 20 e 25 anos, passava o dia ao Deus dará. Suas irmãs viviam de praia, acho que até comiam nas barraquinhas á beira mar e só chegavam em casa para dormir.

O tempo foi passando e, numa quinta-feira, a porta do apartamento estava aberta e nós estávamos tomando café na cozinha. De repente, aquele vulto se aproximou e disse: “bom dia”? Posso ficar aqui? Naquele momento, tivemos um grande susto, mas ela foi logo sentando e começando a falar desenfreadamente. Ofereci-lhe café e esta não pensou para responder, foi pegando os biscoitos que ali estavam e comendo compulsivamente.Deu-nos a impressão que não comia a dias. Após saciar-se, foi aos poucos revelando parte de sua vida.

Para todos de sua família, era apenas uma problemática, muitos a chamavam de doida, neurótica. Para seu tio, tinha problemas mediúnicos e sua cura poderia estar num amigo que era espírita e que tratava de casos de obsessão.

Ao conversar com ela, sentimos a amargura e o trauma que carregava anos a fio. Sua história era triste e desde criança sofria com o preconceito em sua própria casa. A única que lhe dava um pouco de afeto era sua mãe. Cresceu com um desejo enorme de vingança e, segundo suas palavras, tudo estava planejado em sua mente.

Os dias foram passando e Rebeca não saía mais do nosso convívio. Interessava-se por romances, gostava de brincar com as crianças, conversava sobre vários assuntos, mostrava-se inteligente. Vimos nela, uma jovem meiga, carinhosa, apenas um pouco deprimida, tinha horas. Fizemo-la trocar as roupas escuras por outras mais claras e limpas; pois já havia completado quinze dias que andava com elas, alegava que quando lhe batia a depressão suas forças acabavam e, só o desejo de vingança, era que dava coragem para viver. Tentamos retirar isso de sua cabeça e, aos poucos fomos a vendo sorrir, coisa que tinha esquecido e ela mesmo se admirou dizendo: - Como é bom se alegrar! Estou feliz por isso.

Sua infância fora um pouco conturbada. Seu pai vivia a beber e a maltratar sua mãe na frente de todos. Fazia questão de ao chegar embriagado em casa, espancar sua mãe na frente das filhas. Até que uma noite, brigou com um amigo na rua, esfaqueou-o e foi preso. Vive até hoje num presídio da capital.

Pela vida de Rebeca, na adolescência, já havia passado alguns namorados desastrosos: o primeiro deles, um doente mental que, em certa ocasião, sem motivo, parara o trânsito de sua cidade, atirando tijolos em cada carro que tentava passar pela frente de sua casa; o segundo, um mudinho que lhe batia por ciúmes, toda vez que saía para fazer algo e, por último, se apaixonara por um desquitado, com dois filhos, bem mais velho que ela. Este conhecera ali mesmo na, praia.

Pelos maus tratos na casa do tio, aconselhamos a voltar para sua cidade e continuar ao lado de sua mãe, mas seu desejo era se vingar, antes de tudo. Queria torturar todos aqueles que lhe fizera mal. Contou-nos que ficava sem comida e quando tomava o remédio e tentava dormir, suas irmãs chegavam bêbadas gritando cantando alto e ela perdia o sono. Seu tio e os “amiguinhos”, ligavam o som, que ficava ao lado do seu quarto e a bebedeira durava até o amanhecer.

Numa manhã, ao sair na janela, vi uma ambulância chegando e, uns três homens de branco se aproximando daquele apartamento. Chamei todos e, só vimos quando Rebeca saiu envolvida numa camisa de força, com a boca e a blusa toda ensangüentada, quase desfalecida. Corremos para o andar de baixo na esperança de tentar entender o acontecido. Foi quando sua irmã, muito nervosa e em estado de choque nos mostrou o que Rebeca havia feito, em um de seus ataques de loucura.

Ao abrir a porta, entendemos o porquê de ela ter saído daquela maneira. Seu tio estava amarrado, todo retalhado e com a cabeça decepada e, o seu companheiro a situação era pior, as pernas quebradas, os olhos estufados e seus braços foram encontrados debaixo da cama. A cena foi tão forte que, saímos dali perplexas, com tamanha crueldade, com que executara o plano. O que teoricamente pensávamos ser apenas revolta ou devaneios, fora concretizado com o mais cruel requinte de sadismo.

Conversando com sua irmã Cláudia, ficamos sabendo que Rebeca tinha saído a pouco menos de um mês de um manicômio judiciário. Fora presa por ter matado um jovem por quem havia se apaixonado e não correspondida. A pedido de sua mãe, seu tio trouxera ela para passar uns meses na praia para pensar que futuro queria e qual caminho pretendia percorrer.

Explicou-nos que desde pequena, Rebeca era muito agressiva e por briguinha, jurava se vingar de todos. Antes de ser pega pelos paramédicos, jurou matar suas irmãs. Disse que no manicômio teria bastante tempo para planejar a morte de cada uma delas.

Dirigimo-nos até a frente do prédio, no qual estava lotada, todos curiosos para ver a saída de Rebeca e quando foram colocando-a na ambulância, ela olhou para trás, deu-nos uma piscada e, com um sorriso nos lábios disse-nos com uma voz suave e sarcástica: Ele só envergonhava nossa família, portanto, teve o que mereceu e, vocês, queridas irmãs, não perdem por esperar, suas vidas estão por um fio.

Elza Vaz
Enviado por Elza Vaz em 04/12/2006
Código do texto: T308898