FRONTEIRA DO SILÊNCIO - Capítulo III   

   Passava das dezenove horas. Apesar da apreensão pelo clima de hostilidade com as notícias de ações beligerantes por parte de submarinos alemães e italianos torpedeando navios na costa brasileira, a viagem prosseguia tranquilamente com o navio seguindo seu curso sem alterações. Era uma viagem rotineira com destino ao porto de Recife. Acabáramos de jantar e havia uma comemoração no refeitório em homenagem ao aniversário de um companheiro do navio. Alguns componentes da tripulação guarneciam turnos. Os demais se espremiam no refeitório e participavam da homenagem ao amigo. Era um instante de relacionamento entre os tripulantes, onde além da homenagem, se conversava e se brincava informalmente. Apesar de ser um compartimento confinado, alguns companheiros não dispensaram o cigarro e o ar ficara praticamente irrespirável.


   O ambiente apertado e com ar viciado pela fumaça me sufocava. Discretamente procurei sair dali e me dirigi ao convés para respirar ar puro. Chegando ao relento inspirei fundo e lentamente fui trocando por oxigênio puro a fumaça de cigarro que estava em meus pulmões. Estava sem sono e saudoso de casa. Pensava na minha família. Debruçado na borda percebi como a noite estava bonita! Senti vontade de escrever uma carta para casa e colocá-la no correio quando o navio atracasse. A vastidão do céu iluminado pela lua cheia e pelas estrelas me inspirava. O mar prateado pelo luar era fonte de inspiração para poetas e pintores. E eu estava tendo o privilégio de sentir a brisa no meu rosto com gosto de maresia sob aquele teto estrelado. A esteira de espuma formada pelo deslocamento do navio parecia com um imenso véu de noiva que ia se alargando, até se dissipar em pequenas vagas. O leve balanço da embarcação que dançava ao sabor das ondas me embalava e a sensação era de flutuar como se eu estivesse em êxtase. O pensamento voava e ia distante, afastando-se do meu corpo. Era como se eu não estivesse ali. O meu corpo parecia anestesiado, torporizado. 
 
 
Repentinamente, senti o navio estremecer sob um forte impacto seguido de uma explosão. Logo a seguir outro impacto violento e mais uma explosão. Impelido pelo segundo impacto, senti o meu corpo sendo lançado ao mar. Foi tudo muito rápido. Quando me dei conta estava na água fria enquanto aconteciam várias explosões no navio que adernava rapidamente. Em cada explosão eram lançados inúmeros destroços ao mar enquanto eu nadava imaginando o que poderia ter ocorrido. Talvez algo tenha acontecido na caldeira, causando a explosão. Enquanto o navio adernava para bombordo em conseqüência das avarias pude perceber alguns companheiros na água iluminados pela lua e pelos clarões das explosões. Em questão de minutos o navio teve sua proa submersa e afundou totalmente com sua popa sumindo lentamente na superfície do mar. Com o empuxo produzido pelo afundamento do navio, fui puxado um pouco ao fundo, tendo bebido bastante água com óleo e levado pancadas, com os destroços que se desprendiam à medida que o navio afundava. Quando voltei à superfície, e conseguindo respirar, agarrei-me a um tablado de madeira considerável que boiava, provavelmente do convés de carga. Com algum esforço, subi no tablado e procurei descansar enquanto presenciava tudo que acontecia. Assisti cenas horríveis que jamais imaginei que veria na vida. Vi companheiros sendo puxados por tubarões, dando gritos de dor e desaparecendo. Outros, talvez pelo impacto do ocorrido, perderam o juízo diante de tanto horror e agarravam-se a alguns destorços, proferindo frases sem nexo, e gradativamente desapareciam na profundeza domar, provavelmente devido a afogamento ou vítimas de tubarões. 
 
  Pensei que o que estava acontecendo era sonho, porém cada vez mais fui aceitando a realidade. Depois de algum tempo, em vão procurei localizar na superfície do mar por companheiros sobreviventes mas a cada grito meu perguntando por alguém não obtinha resposta, era silêncio profundo. Agora eu fazia parte daquele imenso vazio. Procurei manter o controle e permanecer calmo. A superfície do mar estava repleta de óleo e escombros espalhados, que lentamente eram levados pela corrente marinha, apesar da calmaria. Ali estava eu, sozinho na imensidão do mar.
 
   Deus! Como o mar é infinito! Olhava ao meu redor e só via água e alguns destroços do que antes era um  navio. O céu estrelado iluminava o mar e eu não conseguia pensar no que fazer a não ser esperar. A água fria me causava tremores pelo corpo e eu me segurava na esperança do resgate. Meu Deus! Não posso morrer assim! Procurei encontrar forças para me manter vivo. Rezei todas as orações que conhecia. Murmurei todas as preces que aprendera. Pensei que precisava ser forte, pois a minha família ainda dependia muito de mim. Deixei meu corpo flutuar a fim de poupar energia. Não sabia quanto tempo ia durar até me acharem. O tempo foi passando, passando... Não me dei conta do tempo que passou. Ao longe percebi uma tênue claridade. Julguei que fosse um navio ou uma cidade. Pensei que a corrente marinha estava me levando para a costa. Era a aurora que surgia com todo seu esplendor. O dia estava amanhecendo.


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Cônsul POETAS DELMUNDO – Niterói – RJ
Valdir Barreto Ramos
Enviado por Valdir Barreto Ramos em 03/08/2011
Reeditado em 04/08/2011
Código do texto: T3137868
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