Ano novo; vida velha

A vocês, um feliz ano novo! Há anos nada mais espero da vida, não só por desapego, mas também por acreditar que depois de tantas experiências adquiridas, as mais recentes são “cópias adaptadas” das anteriores. Sofro com essa memória de Mamut, que faz da atualidade um grande “déjà vu” maquiado com etiquetas da Microsoft e a pressa dos fastfood’s. Eis que relato um insólito ano novo: Brindava a manhã do dia 31 de dezembro de 79 com Van Halen, um oásis sonoro numa época em que o Brasil mal começara a “cantarolar” o verdadeiro Rock’n’Roll. Baby Consuelo, por exemplo, era horrível! Eu usava calça jeans apertada; tocava uma fender importada. Seria muito barulho para um apartamento, se eu estivesse em um. Tava de frente à praia, casa gostosa, espaçosa, uma delícia! Filho de alto militar, a ditadura nem me incomodava. No meio duma barulheira de acordes distorcidos de guitarra e chiado da vitrola saturada em alto volume, escutei baterem na porta. Abre a porta! Abre porra! Não me recordo se falávamos “porra” na época. Memória de Mamut? Sim, mas lembrar desse detalhe? Só tendo memória feminina. Reconheci a voz, era o Cardoso. Saltou pra dentro de casa ofegante. Antonio Cardoso: um sujeitinho magro e baixo, de família rica, mas decidira nadar contra a maré, se metendo em movimentos estudantis e fazendo outras cagadas do tipo, então foi “abandonado” pela família. Roubei um carro! Roubei um Dodge! Um Dodge Dart! Cara, o sistema tem mais é que se fuder mesmo! Macacos sapiens agindo de forma anacrônica, temos que mudar as coisas até o século XXI! Respeitarmos as diferenças; vivermos em paz! Tem um cara chamado Sartre que diz ... Sempre quando ele ia falar sobre os intelectuais franceses ou coisa do tipo, cortava o papo dele, daquela vez, não foi diferente. Pra sumirmos com o carro e curti-lo, resolvemos passar a virada em São Paulo (nós morávamos no Rio). Vai virar mais uma década de analfabetos mutantes – o maldito adorava colocar “mutantes” no meio dos seus discursos imbecis. No Dart encontramos uma bolsa de mulher, nela havia documentos de “Mariete Cardoso Soares”. Você roubou um carro de um Cardoso? Eles tem mais é que se fuder mesmo! Respondeu Cardoso dirigindo o carro, braço esquerdo pra fora da janela, mão direita no volante, cigarro equilibrado entre os dedos. Baixei o vidro todo; que vento! Arremessei a bolsa da “Mariete” pra fora da estrada; desapareceu em uma moita vasta. Viu o novo do Bergman? Dane-se o Bergman! Respondi. Fugia de qualquer assunto que fosse mais complicado que um solo do Frank Zappa. Nos hiatos da cacofonia vocal de Cardoso - que de longe era mais eloqüente que eu -, ouvia-se o motor daquele V8 roncar. Coisa linda. Tromm. Tromm.. tromm... tromm... Eu não fumava, ainda, mas os jatos de fumaça do cigarro, embalados nas correntes de vento, me extasiavam! Depois de um tempo – não sei exatamente quanto, porque naquela época, carros me levavam a uma dimensão atemporal -, chegamos em São Paulo. Fomos ao apartamento de um cara, não me lembro o nome: um estudante do Mackenzie. Então percebi que Cardoso escondia alguma coisa de mim. Tanto ele quanto o seu amigo estavam nervosos, coçavam a cabeça; andavam de um lado para outro. Cardoso calado: isso era de assustar! Então o empurrei amigavelmente contra uma parede e pedi explicação do que estava acontecendo. O magrelo reagiu: travou os dentes, espremeu os olhos e preencheu um golpe na minha barriga. Filho da puta! O seu amigo o ajudou: com um ferro de passar me golpeou, duas vezes, ou três, bom, só contei até a segunda. Apaguei. Acho que senti tanta dor de cabeça, que ela precedeu a consciência. Consciência essa que voltou em etapas, paulatinamente. Quando analisei os fatos, eu estava na cozinha, comprimindo contra minha cabeça, gelos que eu mesmo em subconsciência apanhara no congelador e enrolara em um pano de prato. Doía, acreditem: doía. Não vi Cardoso nem o seu amigo. Olhei pela janela, o Dodge amarelo ainda estava lá. O vi pequenino, lá embaixo, parecia um carrinho de brinquedo. Eu fedia muito. Caramba! Como fedia! Andei pelo apartamento: não vi ninguém. Voltei pra cama. Decidi tomar uma ducha; banheiro limpo; esfriei a cabeça. Vesti a mesma calça, mas a camisa estava muito suada e suja; a joguei num cesto. Me olhei no espelho; alisei a barba de três dias, uma pelugem curta e espessa. Só então notei que havia um revolver na pia do banheiro: um Taurus calibre 38. O apanhei. Eu tramava me vingar do que fizeram comigo. Não pensava em matá-los, mas daria um puta dum susto naqueles filhos da puta! Acariciando a arma, arquitetei um plano para a represália. Mas que diabos! Eu fedia muito! Ouvi gritos na rua; guardei a arma no bolso e fui averiguar. Não avistei ninguém, mas reparei em um carro que não estivera lá na ultima vez em que olhei pela janela, eram eles! Respirei o vento frio da noite, que por instantes, diluiu o odor moribundo que eu estava. Bateram na porta. Eram eles! Coloquei a mão sobre o bolso para sentir a arma; estava lá. Fui ao guarda-roupa apanhar uma camisa, que fedor! Abri as gavetas, todas reviradas, uma bagunça! Então, abri a porta do maior compartimento da mobília. De súbito travei! Que desgraça! Um cadáver de uma velhinha em começo de decomposição dobrado de forma compacta. Eis a origem do fedor putrefato! As batidas na porta se intensificaram, então tive noção da minha desventura! O amigo do Cardoso deveria estar com a chave, por que bateria na porta para que eu abrisse? Em um estrondoso baque arrombaram a porta. Pensei em apagar as impressões digitais da arma! Corri de rumo à sala; fiz menção de apanhar o revolver, mas três homens já o fizeram em minha direção. Estendi os braços para o céu; chorei de raiva. Passei a virada no ano na prisão. Sofrendo de desgosto, meu pai em nada intercedeu ao meu favor. Passei mais seis viradas de ano na prisão. Tive, no total, sete anos para perdoar o Cardoso e ao seu amigo, mas não o fiz, ocupei cada segundo da minha vida com pensamentos arquitetônicos de uma vingança tão grandiosa quanto a minha desgraça. Sobrevivi a constantes espancamentos nas penitenciárias que percorri durante minha pena. Me tornei imortal, nada me mataria enquanto não os matasse. Miserável Vida! Uma nova decepção! Quando livre, logo no início da minha busca por Cardoso, descobri que o verme morrera de overdose um ano depois da minha condenação. Mas tive um consolo: sobrou o outro.

Luz Trovão
Enviado por Luz Trovão em 10/01/2007
Reeditado em 12/01/2007
Código do texto: T342599