Póstumo

Os sonhos são realmente fenômenos extraordinários e intrigantes. Passei toda minha curta vida tendo sempre o mesmo sonho, digo curta vida, pois estou morto. É isso mesmo, caro leitor, bati as botas, fui dessa para pior, e como bem diz o título dessa pequena estória, esse texto é póstumo. Como ia dizendo, passei toda minha vida tendo sempre o mesmo sonho. Era assim, eu saia de meu escritório e ia para o elevador e apertava o botão para o subsolo, onde ficava meu carro estacionado, porém, o elevador continuava descendo e descendo sem parar, começo a ficar nervoso e suando abundantemente, quando chego quase ao desespero total, o elevador finalmente para. A porta se abre e eu saio e vejo que estou em uma encruzilhada de uma estrada deserta e mal iluminada, o silêncio é sepulcral e nem mesmo o vento frio que corre gelando minha espinha tem voz. Vejo uma luz mais adiante e sigo em sua direção, e termina aí, nunca conseguia chegar até a luz, sempre acordava antes. Freud explicava que “o sonho é a entrada real que conduz ao inconsciente”, no meu caso era só uma premonição e só entendi depois que morri. Confesso aqui que não deixei saudades em ninguém, nenhum rosto foi banhado por lágrimas em minha homenagem. Era um mentiroso. Um dissimulado. Um fescenino incorrigível, e pela bala do revólver de um traído bom de mira, morri, quando tentava escapulir pela janela da casa da amante, com as calças arriadas, dorso nu, paletó na mão direita e um panamá, velho companheiro, na mão esquerda, fui atingido, um tiro só, na nuca, e lona. Dor não senti, apenas um frio na barriga típico dos sustos que tomamos quando sonhamos que estamos caindo, percebi que minha alma se desligava do meu corpo e por alguns segundos me vi pendurado na janela. Um piscar de olhos depois e estou dentro do elevador descendo. Quando o elevador para, estou na mesma encruzilhada dos meus sonhos, o mesmo silêncio de sempre, quebrado, de quando em quando, pelo canto funesto de uma rasga mortalha. A luz também estava lá, e para lá me dirijo. E diferentemente dos meus sonhos chego até a origem da luz. Os senhores leitores já devem ter decifrado o enigma que me perseguiu através de sonhos durante a minha arremeda vida, se não, vou contar-lhes. Eu morri nobres leitores, contudo, não subi em sublimação, ao contrário, eu desci. Perceberam? Não? Então continuemos. A luz vinha de um candeeiro, que ele, o barqueiro Caronte, segurava. Eu estava bem em frente ao rio Aqueronte, que Dante versou tão divinamente no canto III de sua Comédia. Agora sim vocês entenderam, não é mesmo? Fui levado para o meu devido lugar e não vi Virgílio, ou Dionísio ou mesmo o Jim. Estou aqui a várias eternidades, e já muito bem ambientado, passo meu tempo que não tem fim a prosear e receber conselhos dele, pois, “enquanto Freud explica o diabo dá o toque”.