Por que sou blasfemo

Hoje na volta pra casa me ofereceram a salvação.

Eu vinha cansado da faculdade. Olhava sem muito interesse para a São Gonçalo que passava quase despercebida pela minha janela em meio à poeira. Muito calor, até pensar era exaustivo. Mas lá estava eu me cansando, com uma moedinha na mão, pensando em Copacabana. Enxugava o suor do rosto com uma toalhinha azul, esmaecida, e tirava cochilos esparsos, pontuados por sonhos dos quais não me lembro. Sei que um deles me fez sorrir, mas pra ser sincero não sei ao certo o porquê, o que me fez crer que talvez a matéria sonhada tenha sido algo irrisório, ou quem sabe reminiscência de um amanhecer ainda fresco na memória, mas incapaz, pelo menos por enquanto, de se materializar durante o sono de maneira agradável. Julgo que não muito longe daqui, em alguns milhares de dias no futuro, ele se torne recorrente; até lá ainda o terei comigo quando acordado, e isso já me basta para continuar desperto.

Entre bocejos, pensava num nada específico, sem amarguras. Meu aspecto geral, para quem me visse à distância, acredito era a de um homem entediado ou, como me pareceu mais lógico, entristecido, ruminando problemas até então insolúveis. Uma barba por fazer pode ter sido determinante para me rotular diante os estranhos. Notei um rapaz de olhar insistente à minha direita. Aproximou-se de meu banco e me ofereceu cristo. “Converse com deus”, me disse, e mais uma cantilena que, ao contrário do que costumo imaginar, me pareceu sincera e nada patética. Meu pastor não devia ser mais velho que eu, e apenas me irritou o fato de em seu rosto igualmente hirsuto não haver vestígios de suor ou cansaço. Mesmo assim não o poupei da cara de deboche, mas controlei-me a ponto de agradecer o panfleto, crente em sua fé e na minha salvação.

“Aconteceu no Rio, mais precisamente na Tijuca”. Contava uma estorinha para ser lida somente para “quem só quer ser feliz”. A mim, aparentemente em agonia numa existência esdrúxula, só restava a plena aceitação das benesses da vida. “Quando não se está bem consigo mesmo, nada presta! E quando vem a depressão, a solidão, e os porquês nunca são respondidos, então nos entregamos a sentimentos em tudo antagônicos à felicidade”. Portanto, voltando da faculdade e embalado pelo sacolejar do ônibus, eu deixava transparecer que algo em minha vida estava errado. Um dos tais “sentimentos” aos quais vinha me entregando é a autocomiseração. Minha toalhinha úmida fazia de mim um ser “digno de pena”, por que não. A moedinha em minha mão quase escorregou entre meus dedos, mas habilmente consegui detê-la, e retornei ao sonambulismo que precedeu a gentil interrupção de minha viagem. Adormeci novamente, e sonhei com um deserto de areia, com um mar distante, inalcançável; ao mesmo tempo sua brisa refrescava como um beijo, mas eu sentia gosto de fumaça, o coração palpitando. Este devaneio recordei-me durante o banho, já seguro na heresia de meu lar, ridicularizando a palavra do deus que me foi ofertado numa viagem de ônibus por um jovem ofuscado pela luz dos santos, o bálsamo dos ignorantes.

Guardei a moeda no bolso antes de saltar. E lamentei uma perda que ainda não ocorreu. “A ansiedade é outro sentimento que pode ser destrutivo”, ou algo que o valha figurava na minha cartilha para o mundo perfeito. Dormir nada mais é que adiantar o dia seguinte.

Marlon Magno
Enviado por Marlon Magno em 14/02/2007
Código do texto: T381236