Filosofia da dor

 
A dor não é tão ruim assim: jamais pôde vencer-me como masoquista, sempre me foi útil como sádico. E eu, neste ir e vir das vontades, faço da dor um cansaço prazeroso, um prazer cansativo. Sendo que tratando-a como diversão esta deixa de ser dor, e eu não preciso viver sempre temendo pela vida. Pois que a vida é para mim um orgasmo infinito de mortes em repetição. E morrendo nascemos novamente, após a libertação. Contudo, nesse ir e vir das vontades, vou me elevando. Eis o propósito otimista.
 
Como um deus, deixe-me acreditar que a dor existe. Já ouvi dizerem que de tanto reclamarem da dor, alguns filósofos e poetas a tornaram concreta. E eu, cadáver frio, insensível, tento fazer o mesmo. Mas a dor não vem me castigar.
 
Como um deus, deixe-me provar um pouco dessa realidade abstrata chamada dor. É muito frio o abismo de trevas que minha alma habita. E eu às vezes me questiono se ela realmente existe.
 
Ora, será que fui enganado? A dor não existe, sendo apenas uma suposição dos pessimistas que preferem torná-la real? Já que o mundo é um tédio, temos ao menos a dor como consolo. Mas onde está essa dor? Digam-me, preciso saber! Encheram o Inferno de punições, carregaram nossas almas com o sofrimento da vida, provocaram-nos uma angústia ao dizerem que estamos sós num mundo sem Deus. Mas ainda não encontro a dor em nenhuma dessas afirmações. Como deve ser bom o Inferno, cheio de justiça aos culpados; como deve ser boa a vida, cheia de ensinamentos; como deve ser bom o mundo sem Deus, somos livres! E é por isso que pergunto: onde está a dor nisso tudo? Talvez esteja no paraíso, com seus anjos torturados mostrando-nos o sofrimento que é passar a existência fugindo das atitudes grotescas dos homens. Digo isso porque também já ouvi falar que o amor não-correspondido é uma grande tortura. Mas isso é apenas uma tristeza muito singela, já que o perdão dos anjos purifica e o ódio dos humanos liberta-nos ao abandono. Então me resta continuar procurando em meu caminho glacial, com a alma e o coração gélidos, mortos, assassinados pelo riso e contentamento do maldito palhaço chamado humanidade.
 
Mas não pensem que sou um louco. Sim, afirmei anteriormente que a dor me é um prazer e um cansaço. Logo, a dor existe. Mas que uma coisa fique bem clara: é necessário fazê-la existir.
 
 
MORTO E SUSPENSO PARA O MUNDO
 
Em minha procura pela dor percebi que devido a minha frieza tudo ao meu redor estava ficando branco, ou seja, vazio. Minha existência era igual a de muitos indivíduos, e sendo como a maioria dos indivíduos eu deixava de ser eu mesmo para me tornar parte dessa enorme massa branca. Dessa forma fui deixando de existir como indivíduo, pois que vários indivíduos juntos, com os mesmos ideais, formam um conjunto onde todos devem ser iguais. Sendo assim, deixam de ser eles mesmos para serem um só. Essa é a massa branca, que como uma bola de neve, vai aumentando e eliminando quem seja diferente por onde passa. Mas essa enorme massa branca está sempre fugindo da solidão, que de certa forma traria consigo a dor. Por isso, está sempre lutando para continuar sempre crescendo.
 
Foi então que decidi procurar a dor sozinho, já que a solidão é sua companheira e minha guia. Sendo assim, o primeiro lugar que visitei em procura da dor foi o abismo sombrio das torturas, local muito visitado pela influência tanto do sadismo quanto do masoquismo humano.
 
Como um assassino frio e cruel, entrei em seu templo à procura do prazer que a dor poderia me proporcionar. Mas nesse momento também me sentia uma vítima. E é novamente nesse ir e vir das vontades que descubro tanto a dor da caça, quanto a dor presenciada pelo caçador.
 
Ao entrar no templo ouço primeiramente o canto sagrado dos monges. Com capuzes cobrindo suas cabeças, eles realizavam um ritual que consistia em flagelar suas costas com um chicote, enquanto tentavam cantar sem modificar a perfeição da voz. Parecia um canto gregoriano, mas podia-se perceber certas desafinações provenientes da dor. Sim, dor! Encontrei seu rastro, o que ainda assim não era suficiente. Os monges cantavam um hino de blasfêmias bastante suave perante minha imagem, mas não uma imagem tal qual a conhecemos, comigo pregado na cruz. E sim de uma estátua minha lançando um olhar severo sobre os monges, oferecendo vários chicotes deixados sobre suas mãos.
 
O canto dos monges trazia um delírio incomum para a minha mente. Os acontecimentos ao meu redor foram se revelando aos poucos. Eu não conseguia conter o desejo a cada impacto visual a mim revelado, como se a imagem daquelas situações estivesse me atraindo de uma forma que eu não conseguia mais parar de olhar. De repente o canto dos monges ficou mais alto, e eles causavam um furor em meu coração a cada vibração dos gritos: “SALVE! SALVE! SALVE!”.
 
O templo ganhou movimento, tudo ali era feito de uma dor que causava prazer. Vi freiras sendo açoitadas nas pernas por outras freiras, que as estupravam com roliços de borracha. E as roupas das freiras eram todas de borracha preta com alguns contrastes em branco. Todo o lugar era preto e branco. Não havia cor. As roupas de borracha eram bastante apertadas, e deixavam à mostra a calcinha preta de borracha completamente apertada e pequena. Algumas freiras se ajoelhavam num chão de vidros quebrados, e com as mãos unidas em forma de reza, elas oravam amordaçadas.
 
Era difícil de respirar no templo. O ar era muito úmido e o ambiente muito quente. Uma enorme grade de ferro erguia mulheres, homens e jovens, presos por correntes numa grande altura. E através de torres também feitas de ferros em grade, carrascos, que usavam uma máscara de borracha com um zíper na parte bucal, davam fortes golpes de chicote nas vítimas, que gemiam e gritavam de dor e prazer.Vi também pessoas amarradas em correntes, outras espremidas em tecidos de borracha preta de forma que só a cabeça ficava de fora. A impressão era que com todo aquele aperto ficaria ainda mais difícil respirar naquele local quente e úmido. Mesmo assim, canos de borracha eram inseridos em suas bocas através de uma máscara de gás em sua extremidade, e na outra extremidade o cano era inserido no órgão genital de outra pessoa, também toda espremida numa roupa de borracha.
Por toda parte havia carrascos e mulheres de chicote. Eram tantas as correntes penduradas que mal se podia andar sem se esquivar de uma delas, pois todas se movimentavam como se estivessem vivas. Além disso, algumas pessoas se penduravam numa dessas correntes que possuíam ganchos pontiagudos. O peso do corpo era distribuído entre vários ganchos presos na pele das costas, pernas e braços de tal forma que a pessoa parecia não sentir dor. Enquanto isso as mulheres de chicote e os carrascos faziam sexo oral nessas pessoas.
 
Vi que todos ali buscavam a dor como prazer calórico, já que a frieza de seus corações e almas deixava seus corpos num estado semelhante ao cadáver, necessitando do calor da dor para viver. E foi no meio de toda essa demonstração de sadomasoquismo que eu decidi que já era hora de experimentar um pouco. Pedi a uma das freiras de chicote que me dessem algo extremo, pois a minha frieza era bem maior que a de todos ali presentes. Ela se reuniu com carrascos e outras mulheres de chicote e pediu para que eu aguardasse enquanto buscava algo especial para mim. Esperei por um momento, enquanto carrascos chicoteavam minhas costas. E depois de muito tempo, eles disseram: “Agora você será realmente castigado”.
 
Fui bastante chicoteado no peito e no abdômen, e as feridas sangravam razoavelmente. Depois fui amarrado pelos punhos e tornozelos em correntes que me esticavam formando o meu corpo um grande “X”. A seguir viraram meu corpo de forma que meu peito ficasse para cima, e senti que algo começou a empurrar minhas costas de forma que eu fosse levado até o teto do templo. Parecia ser um grosso e grande tronco de madeira, que pela força das correntes me empurrando contra este objeto minhas feridas pareciam se abrir um pouco. E vi anjos e demônios pintados no teto, todos os anjos pareciam chorar, e seus olhos eram pequenos orifícios, assim como os órgãos genitais dos demônios. Parte do teto era feito de grades, e os carrascos subiam por cima do teto para derramar álcool sobre esses orifícios. Vi as lágrimas dos anjos e o mijo dos demônios caírem sobre as feridas do meu peito e abdômen. Como um ácido, a ardência era quase insuportável. Quase. Pois naquele momento o prazer daquela dor tornou-me superior. Eu não me importava mais com a moral do mundo. Aos poucos fui morrendo para o que a humanidade chama de sagrada providência. E logo eu estava morto e suspenso para o mundo.
 
 
A DOR CRISTÃ
 
Explorei demais a dor do meu corpo e esqueci do meu espírito. As torturas em minha carne passaram, e mesmo assim ainda não consegui me satisfazer. Pensei que talvez a dor da alma fosse a dor que eu estava procurando.
 
Fui aos pés de meu cadáver na cruz e percebi o quanto a dor do corpo é insignificante. Pessoas choravam aos meus pés, e tocavam em meu corpo na convicção de que este era sagrado. Mas eu não conseguia nem mesmo olhar para sua face. O corpo degradado, as feridas, o sangue, o cadáver... não, eu não via nada de sagrado e superior nisso. Tive a certeza do nojo que senti ao me aproximar e vê-lo de perto: ele fede!
 
“EU SOU O CAMINHO”, eu disse. Mas não souberam bem interpretá-lo. Os cristãos se acharam no direito de me entender, mas não sabem até hoje qual a verdade escondida em minhas parábolas. Já alguns semideuses, que antes foram verdadeiros cristãos, souberam explorar a dor de seus espíritos. E hoje estão livres. O mesmo não acontece com os corpos dos falsos cristãos, que continuam apodrecendo.
 
Os cristãos, como animais, fazem um círculo ao meu redor. Eles têm ódio do que sou, e invocam as forças demoníacas em suas pragas sem saberem. É sempre assim. As orações sobem ao Céu em forma de um pedido de punição e depois descem ao Inferno em forma de vingança. Isso porque acham que o caminho está naquele corpo degradado, e que, por incrível que pareça, não muda nunca! Quanta ignorância... enquanto uns se apóiam numa imagem que não mais existe, outros se apóiam em palavras que não entendem.
 
E no meio desse círculo, olho ao redor. Vejo pessoas degradadas, semelhantes ao meu cadáver. Todos fedem. Pois esse é o caminho que eles julgam certo. Então aponto para uma estrela acima de mim, e digo: “Aquele é o caminho”.
 
Mas esquecer a falsa promessa de salvação, que para eles é o Cristo antigo, o cadáver, o putrefato, é coisa que eles não querem, não podem. O vazio que todos esses cristãos se tornaram agora é uma enorme massa branca, e ao meu redor vai ficando tudo branco. No meio desse círculo fui torturado, puseram-me na fogueira, na forca, condenaram-me à morte, mas mesmo assim não quis me juntar a essa enorme massa branca, a esse imenso vazio. E fui em direção à estrela, sentindo no caminho de minha ascensão as várias dores a que fui submetido ao longo dos séculos. Mesmo assim, não foi suficiente, já me acostumei a ponto de considerar inexistente a dor que sinto na carne. Ainda continuo na procura da dor. E as estrelas vão me guiando no caminho.

 
 
A CANÇÃO DOS MEUS OUVIDOS
 
Cheguei à conclusão de que vivemos num mundo de insensatos. Ninguém ouve os gritos de dor das vítimas da tortura. Não me incluo no meio dos insensatos — faço desses gritos uma canção para os meus ouvidos. São milhões de egos gritando, sofrendo, gemendo, numa dor sem fim. Uma multidão torturada pelos sofrimentos da vida, seja com guerras, seja com a pobreza, seja com a fraqueza, e o que mais que traga a dor para essa multidão. Não sou surdo, mas os insensatos são. Para eles isso deve ser ignorado, e por isso morrem aos poucos com as pragas desses gritos, numa degradação que eles não sentem. Ao passo que eu vou me renovando, e evoluindo.
 
O som me faz dançar com as almas dos mortos. Alguém já dançou com a morte? E no meio de minha diversão com a dor, numa festa soturna que só eu demonstro gostar, vem um palhaço medíocre me atormentar. Esse palhaço, devo explicar, é como todos os humanos. São todos palhaços que riem para disfarçar suas tristezas. Mas a alegria da humanidade é sempre muito fugaz — quando estão felizes com alguém ou algo, esse sentimento passa muito rápido, deixando um vazio no dia seguinte; e quando estão tristes, parece que esse sentimento nunca acaba, gerando uma angústia eterna. E por isso estão sempre buscando a felicidade, porque sabem que esta sempre foge do alcance de suas mãos. São palhaços cada vez mais superficiais.
 
Muitos desses palhaços já tentaram silenciar os gritos de dor, minha canção favorita. Alegaram que nada é mais forte que suas filosofias coletivas, nem mesmo a dor. Por isso, já que eles se apóiam tanto na filosofia deles, a dor desses gritos não será capaz de fazê-los chorar. Mas o que eles não sabem é que, se essa filosofia existe, ela chora com a minha dor. Afinal, que filosofia não sofreria com um filósofo que gosta de ser suicida e soturno?
 
Sim, estou pondo em dúvida a existência da filosofia predominante, assim como as pessoas felizes fazem o próximo duvidar de sua felicidade. Sendo assim, não é absurdo dizer que nada disso existe.
 
Mas os palhaços são insistentes, teimosos. Ficam irados, sentem ódio ao me ver. E a todo custo tentam silenciar os gritos de milhões de almas torturadas. Mas no auge do meu olhar crucial e presença sombria, eu digo: “Não se atrevam a silenciar a dor”.
 
Eles me olham assustados, pois vêem que estou invocando milhões de mortos, cuja dor matou a alma; e milhões de vivos, cuja dor degrada o corpo. E é isso: todos os palhaços vão se degradando e desaparecendo, enquanto eu vou me elevando e evoluindo.
 
 
 
INVOCANDO OS RANCOROSOS
 
Cansei de passear pelo mundo com essa filosofia barata e resolvi invocar uma dor maior. Cansei de mostrar compaixão pelos humanos. Vi que já estava na hora de revelar o que espera por eles. Então comecei minha invocação. Tudo ao meu redor ficou silencioso, minha voz tornou-se amedrontadora, nenhum ser estava próximo, todos se afastaram para bem longe. A vida do local ficou desolada — as cores do céu e da terra perderam suas forças, o ar tornou-se seco e forças negativas impregnaram o local de um mal-estar avassalador.
 
“Ó rancorosos... rancorosos... ó rancorosos... rancorosos... venham fazer justiça aos que lhe fizeram sofrer”.
 
Eu podia sentir a presença deles. O grito das vítimas de um mundo injusto e cruel enlouquecia minha mente. E então surgiram os portões que trancavam os rancorosos num domínio de conspirações. Nesse momento os anjos gritavam: “NÃO!” Mas era tarde, através das grades pude ver os olhares vermelhos de ódio dos rancorosos, sedentos por vingança. Eles gritavam numa dor insuportável, agrediam com muita violência as grades dos portões. Eles gritavam enlouquecidamente: “SOLTE-NOS! SOLTE-NOS!”. Tentavam passar pelas grades sem sucesso, e se machucavam muito. Queriam vingar-se do mundo de qualquer maneira. Mas estavam presos naquele domínio, não podiam ir para o Inferno (não pecaram), assim como não podiam ir para o Céu (não queriam perdoar). Até que, para desespero dos anjos, abri os portões. Só uma pessoa como eu poderia ter a chave, chamada sensatez.
 
Naquele momento senti a fúria descontrolada dos rancorosos, que por tanto tempo permaneceram presos pela opressão. A vingança foi cedida a eles. Cumpria-se o genocídio ao meu redor. O mundo inteiro assassinado pelos rancorosos, que aos poucos desapareciam à medida que suas dores me alimentavam em milhões e milhões de fragmentos. Pude me elevar a tal ponto de ter o mundo aos meus pés. Mas depois veio a calmaria, meus pés estavam novamente no chão, e ao meu redor só havia o vazio da desolação. As ruínas, a fumaça, as cinzas e a humanidade morta, eis que olhando ao redor a dor ainda assim não me tinha sido suficiente! Ai, que desespero! Seria preciso praticar um sadomasoquismo espiritual com os deuses e o universo?!

 
 
SOU MEU PRÓPRIO DEUS
 
Sou meu próprio Deus, por isso choro com a minha solidão. E chorar me faz bem, porque é dor que sinto ao chorar, e isso me eleva.
Em nome de mim mesmo, purifico-me com a dor.
Sou um louco no silêncio, mas tenho a minha alma. Minha blasfêmia.
EU AMO A MINHA DOR!
EU AMO A MINHA DOR!
EU AMO A MINHA DOR!           
 
                          
 
O SANGUE DO POETA
 
Como o fim de uma festa, todas as vozes e canções se foram e eu permaneci aqui com meu silêncio. Ai, que vazio torturante... que doce depressão...
 
Espremi minha alma fria para que caísse um pouco de dor sobre minhas imaginações. Essa dor não veio em grande quantidade. Pelo contrário, caiu apenas uma gota. Uma gota de sangue para expressar minha pequena filosofia da dor. Mostrando a pessoa fria e sem sentimentos que sou, essa gota de sangue simboliza uma poesia intensa e minúscula de um livro tempestuoso. Nós somos esse livro e nessa história formamos uma chuva de sangue, sendo que cada um de nós possui a sua única gota.
 
Sou uma pessoa fria, como já disse. Um espírito milenar sem sentimentos, sem família, sem parentes, sem amigos. Por isso, na esperança de sentir um pouco desse sentimento chamado dor, deixei que essa gota de sangue caísse, não sobre mim, mas sim sobre você, leitor. Fiz isso porque queria sentir uma dor maior que a dor: a dor da perda da minha dor.
 
Sr Arcano
Enviado por Sr Arcano em 25/09/2012
Reeditado em 19/12/2014
Código do texto: T3900873
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.