OFICINA DO DIABO

Oficina do Diabo

O senhor Nestor, de bigodes, cristão meio praticante e mais dogmático, metódico e prepotente, (alguns metódicos são muito prepotentes, especialmente se você atrapalhar o ritual de purificação deles) que andava um bocadinho curvado para frente ponto de interrogação com um eterno pulôver verde escuro, nunca se sabe quando o tempo irá mudar nessa cidade, vivia com a dona Lucinda mais perto da esquina para, no caso do Brasil declarar guerra a algum inimigo de fronteira, terem mais facilidade em correr para Batatais. Moravam numa rua estreita onde os vizinhos se acotovelavam uns sobre os outros que a vida começou a ficar muito apertada e todo mundo começou a perder espaço, até a sombra no sol foi ficando menorzinha e muito perplexa. Não tinham filhos; o senhor Nestor, de bigodes, cristão meio praticante e mais dogmático, metódico e prepotente e que andava um bocadinho curvado para frente, ponto de interrogação com um eterno pulôver verde escuro, era metódico inclusive para sexo, só em dias pares que mais é falta do que fazer e desvirtuaria o sentido da coisa, gemer nem pensar que coisa mais grotesca, um suspirozinho vá lá que seja, nada de muito escandaloso, paredes finas, vizinhança de orelha em pé, você sabe pois que sempre pensei antes de fazer bobagem, ter filhos ora já se viu, somos animais pensantes, a dona Lu bem que queria, desistiu quando viu o preço das fraldas, quanto custaria por um rapaz numa faculdade, não sabe né, não sabe por que não pensa, se pensasse.. mas a dona Lucinda, que fazia um feijão com toucinho de caldo bem grosso, uma couve picada tão fininha que parecia renda e uma baba-de-moça imperdível, era do tipo passivo-teimoso deixa que depois eu consigo, nem pense que eu desisto assim fácil e de imaginação pra lá de fértil, queria, porque queria um filho, que era moça e precisava aproveitar quando se fica velha não se tem mais paciência, ao invés de mãe iria virar avó e tal e tal. E para esquecer tão grande mágoa que lhe azedava o relacionamento com o senhor Nestor de bigodes e pulôver verde cujo resto das características já foi devidamente notificado, ainda que fosse do tipo passivo-teimoso, deixa que depois eu consigo, nem pense que eu desisto assim fácil, houve por bem trabalhar fora que mãos ociosas, oficina do diabo assim dizia sua avó que avó sempre diz coisas interessantes mesmo com frases clichê, até porque no tempo da avó de dona Lucinda não se usava o termo frase clichê, era tudo meio clichê e todo muito estava mais contente com isso; alguém dizia Deus ajuda a quem cedo madruga e todo mundo meneava a cabeça concordando, embora alguns se levantassem mais tarde pois que a globalização já havia se iniciado disfarçadamente no país - quem dá aos pobres empresta à Deus - e todo mundo meneava a cabeça ainda mais vigorosamente conquanto se notasse uma distraída maioria que nunca houvesse dado nada a qualquer pobre, nem conheciam pobres, já naquela época eles moravam na periferia e começavam se tornar meio nervosos e muito menos houvessem emprestado a Deus, nem sabiam que Deus precisava de algo emprestado, só iam à igreja aos domingos, tinham oratório em casa para o caso de não poderem se locomover, convidavam o padre para as festas de batizado, davam dinheiro para os vitrais da paróquia que foram importados da Itália e o resto era tudo meio brincadeirinha . Mas as frases faziam grande efeito na superfície da vida. Voltando ao senhor Nestor, a princípio, ele não se entusiasmou muito com a idéia de trabalho, ora, ora, Lucinda você está tão sossegada em casa até tira seu cochilo à tarde, pode sair um pouco, ir até a pracinha, você que sabe tricotar tão bem Lu, mas já imaginava um certo conforto que o ponto de interrogação foi ficando mais curvo com certa dor no lugar onde se encaixava o pinguinho do mesmo, ônibus sempre cheio, motorista sempre mal-criado, nunca entendeu o porquê do degrau ser tão alto, custava a subir, os outros se implicavam arre que esse velhinho demora a subir, vai procurá sua cova, e ele ficava meio pasmo, só tinha 55 anos e era agente administrativo do estado; ninguém o tiraria daquele lugar, ninguém mesmo quando se escondia quando um chato qualquer ia lá pra pedir informação, aí sim, fingia que folheava papeis atrás do arquivo, olhava de esguelha, até que um colega mais bobo fosse atender, que de servidor não tinha nada, esse pessoal pensa que a gente é escravo, todo mundo pergunta tudo, a gente explica e eles não entendem, com meu salário não sou servidor de ninguém, ninguém!! Após essas considerações que não duraram tanto tempo assim que o bem estar é esperto, dona Lucinda foi trabalhar num escritório de despachantes lá pros lados da ladeira da Memória no centro da cidade. Faz-se necessário mencionar que, dona Lucinda, como não tinha qualquer experiência profissional, exceção feita quando tinha ainda dezoito anos e tentou datilografar um memorando para um teste de secretária júnior enchendo duas latas de lixo, algumas folhas colocadas apressadamente na bolsa pois que a moça que fazia o teste já estava de olho nela e na lata, foi enviada para o setor de carimbos, ou seja, carimbava os documentos com a data do dia, que por enquanto era só isso, com o tempo haveria de aprender e se tornar uma profissional competente e quem lhe dizia isso era o senhor Gumercindo D., com olhos de fogo e boca com hálito de romã. Não entendeu bem o sobrenome só D, é sim, só D. respondeu com seu olhar de fogo; passado algum tempo que tempo passa mesmo não adianta reclamar, eis que, dona Lucinda começou a ficar incomodada com esse olhar; e carece explicar que, como ninguém a olhasse daquele modo ultimamente, muito menos o senhor Nestor e que, talvez por tal motivo sua imaginação rodopiasse sem sua permissão, dona Lucinda começou a sentir um calor inoportuno; quanto mais incomodada ficava mais o senhor D. a olhava, não que se insinuasse, nem pensar, era só o olhar, o olhar de fogo e o risinho quando ela se constrangia. O senhor Nestor nunca estranhava, portanto não estranhou que dona Lucinda nunca quisesse faltar ao trabalho nem quando teve uma rubéola tardia. Foi trabalhar meio estrumbicada, cheia de manchinhas pelo corpo e quando o senhor D.inclinou-se sobre ela para lhe oferecer uma bala de menta e perguntar o que tinha, o calor espalhou-se até pelos cabelos que ficaram molhadinhos o que provocou novo risinho dele. No mais, dona Lucinda remoçou muito, ficou bonitona, emagreceu, comprou roupas novas que não posso ir trabalhar mal vestida depõe contra a empresa, comentário que surpreendeu um pouco o senhor Nestor, afinal a única coisa que ela fazia era bater carimbo com data, a empresa era uma micro, só havia ela o senhor D. e um velho caolho que parecia carregar uma cauda imaginária do patrão. Mas como a vida estava muito cara e como o pinguinho no final do ponto de interrogação fosse ficando mais dolorido, o senhor Nestor houve por bem, não se incomodar muito. No entanto, parecia justo o interesse e o calor de dona Lucinda. O senhor D. (pois que agora ela se dirigia a ele dessa forma) era alto, de fartos cabelos negros e olhos verde-amarelados, o tal olho de fogo. Sem ser gordo, parecia forte e musculoso e tinha as mãos mais compridas que ela já tinha visto, mãos de pianista, o senhor tem mãos de pianista, ele a olhava de esguelha e o sorriso maroto a seguia. Estranhava só um tantico as botas que ele usava, com esse calor eram tão pequenos seus pés nem combinavam com seu porte, ele informa sem que ela pergunte e sorrindo, que é um defeito de nascença ; no mais, tirando-se as botas e as duas leves protuberâncias ósseas que ele tem na testa escondidas sobre as ondas dos cabelos negros e que lhe dão um ar de fauno fora de lugar e que para dona Lucinda eram sinal de inteligência, a testa do senhor Nestor era tão curtinha, ela está feliz. Até que um dia, como era de se esperar e sempre se espera quando há muito calor e risinho no ambiente, dona Lucinda tornou-se amante do senhor D. Esse romance, que poria as sessões de pornografia explícita no chinelo do mais pobre dos mendigos, fez-se conhecer no ventre crescido de dona Lucinda. E para que não se criasse crises desnecessárias, ela jurou por todos os santos que ficaram inusitadamente consternados com as juras, que o filho era do senhor Nestor, que carimbaria papéis em dobro, que voltaria a fazer o feijão com caldo grosso e couve picada como renda mais a baba-de-moça imperdível ainda que tivesse ânsia de vomito e chorou tanto que o senhor Nestor que era homem dogmático e todo o resto já explicado mas de boa índole, tá bem,tá bem Lu , pode parar de chorar tá tudo certo foi uma bobeada, por assim dizer, vamos enfrentar tudo juntos. No mais, ficou até contente, afinal o pessoal do ônibus não iria poder mais chamá-lo de pé na cova, até que o pinguinho no final do ponto de interrogação desinflamou um bocadinho, ele até tentou um saltito ao descer o degrau e comprou umas fraldinhas de ursinhos azuis pois que seria um menino por certo. Por vezes, remoia um pensamento confuso sobre sua virilidade, será mesmo que fora tão competente, afinal andara meio jururu, enfim são os desígnios de Deus, em que dia fora a criança concebida Lu, ai Nestor, vai perguntar de novo, já te expliquei mil vezes! Passado mais um tempo que tempo continua passando mesmo não adianta nada reclamar, a criança nasceu. Era mesmo um menino forte e bonito. De cabelos pretos e olhos verde-amarelados tão esperto que dava um risinho fininho quando dona Lucinda se aproximava. Pena que do senhor Nestor não gostasse muito, tem paciência Nestor criança é assim mesmo, com o tempo ele acostuma com você, é impossível que ele esteja caçoando de você, é tão pequeno! O senhor Nestor, de sua parte, também fazia força para gostar do menino. Muita força. É só que não conseguia agüentar o hálito do nenê, meio que cheirando a podre, que diabo de comida a Lucinda dá pra essa criança e a aflição que lhe apertava o coração quando via os pezinhos, do menino, quase que... sem dedos..fendas, como cascos? De bode..de bode, sim..podia jurar...!!

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 05/10/2012
Código do texto: T3917200
Classificação de conteúdo: seguro