A vela

A vela

Droaldo era um menino tímido. Sentia que havia alguma coisa de muito errado consigo, como se fosse a cobaia de algum experimento de mau gosto de seus pais. De outra forma, como poderia justificar aquele nome?

_ Que raios! – pensava indignado. _ Por que alguém escolheria um nome destes e colocaria em seu filho, se não por pura maldade?

O menino nunca havia gostado do nome, porém, parecia que no último ano ele havia se tornado um peso maior do que nos anteriores. Não fosse o fato de que Droaldo usava óculos, era sardento e tinha os dois dentes da frente tão tortos quanto as pernas de sua irmã caçula, poderia ignorar as piadinhas infames dos seus colegas, mas era quase impossível fazer isso quando achava que realmente não havia nada de bom nele.

Desta forma, seguia Droaldo com sua vida mais ou menos boa, meio boba e sem sentido, como ele achava. Saía cedo para a escola com a mochila nas costas, pulando de pé em pé pelas calçadas quebradas e desniveladas de seu bairro. Chutava pedrinhas, pisava nas sementes secas que forravam o chão e, vez por outra, fitava por alguns minutos uma ou outra campainha que parecia convidativa a ser tocada. Mas isso ele nunca fazia.

Quando já ia virando na esquina da escola, começava a sentir um frio na barriga e o suor molhando suas mãos. Abaixava a cabeça, afundava os óculos no nariz e apertava o passo, rezando para que os meninos da sua classe não estivessem em uma rodinha no portão de entrada.

Às vezes funcionava.

Na maioria das vezes não havia como escapar. Era só Droaldo aparecer na escada que logo vinha a zombaria:

_ Ôô quatro olhos, fala bom dia!

_ Parece um carijó com essa cara toda pintada!

_ Que nada, tá mais pra um Chokito!

_ Olha só gente, o Dente torto tá de tênis novos hoje!

Quando Droaldo passava por eles, geralmente tropeçava no pé que alguém “esquecia” no meio do caminho e, nos piores dias, se esborrachava no chão com mochila e tudo. Depois, levantava correndo, trôpego e com dor de barriga de tanta raiva que sentia, entrava direto na sala de aula e só saía de lá no intervalo.

Durante a aula também não o deixavam em paz, isso porque de alguma forma havia se criado um ritual ao qual todos acabaram aderindo, sem que ninguém impusesse ou dissesse uma palavra de ordem. Era uma risada geral quando a professora dizia seu nome durante a chamada.

_ Droaldo Randeta da Silva.

Pronto. Era suficiente. Quando a chamada estava na letra c, já se ouviam risinhos e cochichos, que se irrompiam em uma gargalhada assim que alcançavam a primeira sílaba de sua maldição, transformando seu nome em “Drogaldo Ranheta da Silva”.

Em uma dessas manhãs, após toda a habitual humilhação, os alunos foram surpreendidos com a notícia de que, devido à morte inesperada da professora de Geografia, não teriam mais aulas e seriam dispensados.

Não fosse a dispensa da aula, a morte da professora de geografia não teria surtido nenhum efeito em Droaldo. Afinal, ela não era sua professora, dava aulas apenas para as turmas mais novas e ele, juntamente com todo o resto da escola, a achava muito estranha. Mas, como se era de esperar, no corredor da escola, no banheiro, refeitório e até mesmo no pátio, podiam-se ouvir dezenas de versões sobre como a velha Dona Margarida teria batido as botas.

Dentre as histórias que escutou, Droaldo notou que em todas havia a presença de uma vela e que a vela teria sido a causa da morte da professora.

Dona Margarida era carola da igreja, andava de baixo para cima com várias versões do que parecia ser a mesma roupa: saia cinza, abaixo do joelho; camisete branca com babados na frente, abotoada até o pescoço; crucifixo pendurado no pulso. Seu cabelo sempre estava preso no alto da cabeça em um coque e os olhos pareciam grandes demais por trás dos óculos fundo de garrafa.

Além do mais, Dona Margarida gostava de acender velas. Disso todo mundo sabia, principalmente porque danava a acender uma vela toda vez que tinham de cantar o hino nacional, durante as comemorações e festividades do padroeiro da cidade e no último dia do ano letivo. Ela dizia que uma vela sempre chamava proteção e que não custava nada acender uma de vez em quando. Bem, assim ela dizia, e todo mundo achava a Dona Margarida meio doida mesmo.

Foi nesse dia que Droaldo, cabisbaixo e sem ideias de como passar o resto do dia livre, achou por bem mudar o caminho de volta para casa e passar na frente da casa da falecida. Era uma casa grande, assobradada, com janelões de grades enferrujadas saltando de todas as paredes cobertas por trepadeiras. Das janelas viam-se as cortinas brancas sacudindo de um lado ao outro pelo vento, tentando, em vão, saltarem para o ambiente externo.

Debaixo de uma árvore umas duas casas depois do sobrado, Droaldo permaneceu observando o entra e sai de pessoas. Umas vestidas de negro e com lenços nas mãos. Outras não tão abatidas apontavam a casa, o carro velho na garagem e o cachorro solitário que não se envolvia na cena e pareciam querer tomar algumas decisões. Estavam preparando tudo para o velório que se iniciaria mais à noite e, francamente, Droaldo não queria estar nem perto dali quando ocorresse.

No entanto, o que o menino não sabia, é que todos os pais foram convidados a se despedirem da professora Margarida e, como ela gostaria, acender uma vela em sua intenção.

Foi assim que Droaldo foi obrigado a vestir uma calça social, que já não servia muito bem, com uma camisa colorida de azul e branco e rumar ao velório da professora Margarida, às oito da noite.

O sobrado parecia alguma coisa de malévolo sob a luz da lua, projetando as sombras das plantas que lhe cobriam por todo o terreno em sua volta. De fora podia se ver que a luz do ambiente interno provinha de dezenas de velas acesas, bruxuleantes e indecisas, ora brilhando forte, ora empalidecendo os vultos que passavam pelas janelas.

Droaldo não queria entrar, mas não teve opção. Foi levado pela mão de sua mãe através do portão e logo estava na sala de estar de Dona Margarida cercado por pessoas que não conhecia, que cochichavam e balançavam a cabeça com pesar enquanto tomavam chá com biscoitos amanteigados.

No fundo da sala estava o caixão. Negro com alças douradas, cercado por coroas de flores que exalavam um odor que, ao menos para Droaldro, cheirava a morte. Dentro dele repousava uma figura envolta em roupas brancas.

O menino esquivou-se da mão de sua mãe e resolveu sair dali, era tudo muito medonho para ele! Deu a volta no sobrado sentindo o vento frio tocar-lhe a face, quando ouviu uma série de risinhos mal contidos e vozes abafadas. Reconheceu de imediato aquelas vozes e parou de súbito, lívido de terror.

Eram os meninos de sua classe. Estavam ali, tão próximos que ele achava que se mexesse com muita rapidez seria visto e sua vida estaria no fim. Pelo menos naquela noite.

Deu um passo para trás. Depois mais um. Respirou baixinho e superficialmente e prendeu as mãos no corpo para que não esbarrasse em nada que pudesse fazer barulho. Chegou a um vaso gigantesco de samambaias e agachou atrás dele, ouvindo tudo o que diziam:

_ Sabe Pedro, a velha morreu porque acendeu a vela errada. Dizem que era a vela que chamava o Coisa Ruim. – bateu na madeira

_ Ah, que isso! Medroso. Aposto que ela morreu do coração. Não tem nada a ver com as velas dela! – nisso, o menino corajoso foi interrompido pelo terceiro deles, um moreno forte que parecia tramar alguma coisa:

_ Marquinhos, duvido você subir no quarto da velha e trazer alguma coisa de lá para provar!

Droaldo acompanhava a conversa com interesse crescente, imaginando que proveito poderia tirar daquela tramoia toda. Poderia denunciar os meninos e se sair bem da situação. Mas sabia que nunca mais o respeitariam na escola.

Então o menino se esquivou com passinhos leves e deu a volta no sobrado. Olhou para cima e logo divisou o quarto da professora. Era o único com luzes de velas. Avaliou a situação e decidiu que conseguiria subir pelo pergolado, se segurar nas grades da janela e se enfiar por ela, já que os vãos eram espaçosos o suficiente para passar seu corpo franzino.

Uma vez no quarto da velha professora, sentiu que deveria voltar. As paredes, os quadros velhos, a cama coberta com uma colcha em veludo vermelho lhe causaram arrepios. Mas antes que pudesse se arremeter de volta, ouviu as mesmas vozes abafadas e passos cuidadosos pelo corredor.

Droaldo se enfiou no armário e logo a porta do quarto foi aberta. Alfredo, o menino corajoso, deu dois passos para dentro do lugar e tateou a parede procurando pelo interruptor. Mas a luz não veio com o clique.

O menino no armário acabou se enroscando em algumas roupas penduradas e um barulho pode ser ouvido de fora. Desesperado, Droaldo se abaixou para se segurar junto ao chão e acabou encontrando uma vela solta.

De fora, Alfredo já não reunia tanta coragem e arfou em pânico quando ouviu um barulho vindo do armário. Tentou sair correndo do lugar, mas estava tão nervoso que acabou tropeçando em velhas pantufas e se espatifou no carpete de frente para um velho espelho.

_ Quem está aí? – conseguiu dizer, sem firmeza.

Droaldo ouviu a indagação e sentiu que seu coração explodiria. Não teve tempo de pensar em nada e foi logo dizendo com a boca encostada em um vestido que pendia sobre seu rosto:

_ SOU EU. O TINHOZO. – respirou fundo, tossiu com a mão tapando a boca e quase começou a chorar de medo, pois aquelas palavras o assustaram muito, mesmo sendo uma brincadeira que ele mesmo inventara.

Alfredo se arrepiou inteiro, fez o sinal da cruz deitado mesmo, levantou num impulso e ficou paralisado diante do espelho.

_ O que, o que você quer?

_ DEIXEM DROALDO RANDETA EM PAZ! ELE É MEU! – Droaldo quase riu dessa vez. Mas sufocou a vontade com o mesmo vestido que usara para disfarçar a voz.

Alfredo não se conteve, saiu gritando do quarto, deixando um rastro de urina com suas pegadas.

Droaldo aproveitou o ocorrido, saltou do armário e se enveredou pelo pergolado de volta ao térreo. Sua respiração falhava e sua garganta estava seca, mas havia algo de glorioso no que fizera. Estava feliz.

Em questão de minutos ele ouviu seus pais chamando e foi embora da casa de Dona Margarida. No caminho, percebeu que havia guardado a vela que encontrara no armário dentro do bolso e se sentiu confuso, pois não se lembrava de tê-la guardado. Mas não deu muita importância para aquilo.

Em casa, já deitado em sua cama, não conseguia parar de pensar no que havia feito. Sabia que no dia seguinte iria tomar uma surra daqueles meninos. Não conseguiu dormir direito sonhando com velas, caixões e meninos gritando em desespero.

No dia seguinte, com os olhos ardendo, Droaldo foi para a escola. Antes de virar a esquina sentiu o mesmo embrulho no estômago de sempre, baixou a cabeça, apertou os óculos e seguiu com passos curtos. Mas não estava ali no portão de entrada o grupinho de sempre.

Entrou na sala de aula e esperou que o sino tocasse, como sempre. Havia um certo nervosismo no lugar, todos cochichavam e o olhavam. Quando a chamada foi feita, não houve piadinhas quanto ao seu nome.

No intervalo, mesmo sem sair da sala, ouviu alguns meninos chamando Alfredo de “mijão”, mas ninguém falava nada sobre ele mesmo.

Droaldo teve uma semana tranquila na escola, até demais. Ninguém conversava com ele, até mesmo o evitavam.

Em casa, porém, passou a ter pesadelos recorrentes, e não conseguia dormir mais. Sonhava com velas negras e vozes assombrosas que diziam as palavras que disse de dentro do armário.

Foram semanas pesarosas para Droaldo. Cerrado em um silêncio taciturno durante as aulas e assombrado por pesadelos à noite.

Logo não conseguia mais levantar cedo e tombou doente.

A mãe, preocupada, lhe trouxe um médico. Mas este nada pode fazer além de receitar algum remédio para dormir.

Em casa, Droaldo escutava conversas de sua mãe com as vizinhas e logo soube que na casa de Dona Margarida foram encontradas velas negras e um quarto escondido no qual diziam que ela se entregava a rituais que não eram boa coisa.

Em pânico, o menino olhou em suas coisas e achou a vela que havia tirado do armário da falecida. Tinham algumas inscrições e nada mais, porém, naquele momento Droaldo sabia que havia brincado com algo desconhecido.

Então tomou uma decisão corajosa. Mesmo fraquinho e com olheiras, saiu de casa assim que seus pais adormeceram e foi até a casa de Dona Margarida. Olhou o sobrado como quem via um fantasma.

Entrou pé ante pé. Tentou abrir a porta da frente, mas estava trancada. Olhou para cima, para a janela do quarto, mas estava tudo tão escuro que não conseguiu sequer pensar em subir.

A vela estava em sua mão, então respirou fundo, tentou conter a tremedeira e jogou o objeto pela fresta da janela e gritou:

_ Me deixe em paz! Sou Droaldo Randeta e não pertenço a ninguém!!!

A vela quicou dentro da sala, rolou para um lado e outro e parou, por fim, onde estivera o caixão da falecida.

Droaldo sentiu um alívio e saiu correndo de volta para casa, saltitando pelas ruas escuras. Entrou em silêncio pela porta da sala e se fechou em seu quarto.

Tirou os tênis sorrindo e imaginando como seria bom voltar à escola, mesmo que tivesse que enfrentar Alfredo e os outros meninos. Foi até o armário e pegou seu pijama, que vestiu sem pestanejar.

Enfiou-se embaixo do cobertor e já ia fechando os olhos quando ouviu um ruído que conhecia... Como algo rolando... Rolando lentamente em sua direção.

Não sabia bem o que poderia ser, olhou em volta e nada estava fora do lugar. Decidiu que era sua imaginação e se virou de lado. E se arrepiou todo, sentindo todos os pelos de seu corpo se erguerem, quando viu um objeto roliço parado do lado de sua cama.

Firmou os olhos na penumbra e não pode acreditar: era a vela.

Droaldo não dormiu o resto da noite e tampouco pode se mexer. Quando amanheceu contou à sua mãe que tivera um sonho muito real e sentia que tinha recebido um chamado.

Pouco depois estava no seminário e de lá só sairia tornado padre.

Os anos passaram e os meninos cresceram e Droaldo tentou de diversas formas se livrar da vela, sem nunca ter êxito.

Devido ao medo que sentia e aos pesadelos que tinha, se tornou uma pessoa isolada do resto do mundo, taciturno e de poucos amigos.

Já havia desistido de sentir alguma esperança quando ouviu algumas crianças conversando no pátio da escola em que ele lecionava. Os meninos passaram todo o intervalo desafiando uns aos outros a furtarem a sua vela de estimação.

Eles gargalhavam ao chamar o padre Droaldo de doido das velas e quando o perceberam por perto, rapidamente mudaram de assunto com medo que seu plano tivesse sido descoberto.

Mal podiam saber que o padre ouvira tudo o que diziam com um sorriso no rosto e foi para a cama naquela noite, depois de terminar suas orações, com o coração acelerado de tanta ansiedade.

Antes de dormir deu uma última olhada na vela que guardava do lado da cama, mas quando acordou e não a viu do seu lado, agradeceu secretamente, pouco se importando com quem a tinha levado.

Estava livre enfim.

Alessandra Vasconcelos
Enviado por Alessandra Vasconcelos em 19/12/2012
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