As duas gotas.

A primeira gota despencou. Rodopiou e, tivesse olhos, seu olhar seria de clamor. Clamaria para ser alcançada antes que o predestinado acontecesse. Fosse uma pessoa, nesse quase um segundo de vida provida de maneira artificial pela mão do homem, digo pelo descuido da mulher, a gota poderia presenciar o prazer, o lamento, a alegria, a paixão, enfim, diversos sentimentos humanos que alguns de nós, humanos, apenas olhamos passar diante de nossa infindável vida – infindável aos olhos da gota, se esta os tivesse – mas, deixamos passar por nossas vidas tantos sentimentos, sem que necessariamente esses sentimentos entranhem em nossas carnes, arranhem nossas almas, nos firam. A gota, antes de cumprir o que agora já era seu destino, teve a oportunidade de apreciar a vida, nas vidas alheias que murmurinhavam o ambiente. Todavia, a gota continuou seu curso, e diante de olhares estarrecidos e clementes, finalmente tocou a superfície inocente de meu paletó.

Os olhos de um verde mar incrivelmente verdes, mais ainda incrivelmente mar; de um mar mais límpido que o nada, fitaram-me. Antes que a dona desses belos olhos, que ao fitá-los quase pude ver peixes listrados em preto e amarelo a fustigar corais ricos em alimentos, olhou-me e antes que seus lábios pudessem balbuciar qualquer pedido de perdão, recebeu um sorriso que foi capaz de lhe impor o silêncio. Passasse eu por uma auto-análise antes deste acontecido, não me diagnosticaria jamais um ser capaz de sorrir aquele sorriso. O dia estava quente - no Rio de Janeiro os dias quentes são especialmente quentes. Um som eclodia vez ou outra, sem que eu pudesse controlá-lo: meu estômago. Não havia motivos para sorrisos. E aquela gota de molho de tomate em meu paletó... Mas o sorriso me fugiu. Fugiu não, foi apresentar-me aquele belo silêncio. A garçonete de pele pálida – não, sua pele era alva, extremamente alva, o que parecia acentuar o verde daquele belo mar quase transbordante. A garçonete de pele alva olhou-me nos olhos e sorriu. Foi o suficiente para que o silêncio que eu lhe impusera quase um segundo antes, invadisse tudo o que sou capaz de pronunciar, enterrando o silêncio de volta por minha goela adentro. A gota já havia cumprido o destino que lhe era devido, mas eu ainda não, estava me sentindo vivo e com um sentimento de bom presságio se renovando. Diante daquele olhar, daquele sorriso e, em quase um segundo, pude sentir quase tanta emoção quanto sentiu a gota que agora já não era gota, mas sim um acidente. Os olhos apaixonantes daquela mulher carregaram-me como que num olho de furacão carências afora. Quase pude sentir saudades de uma vida inteira sob os deleites que aquele sorriso poderia provocar ao acordar-me nesse futuro vislumbrado em longínquos devaneios. Quanta paixão poderia despertar aquela mulher! Quanto calor! Seus lábios então libertaram um sorriso ainda mais divino, como se o Criador quisesse tripudiar o resto do mundo, apresentando-nos em carne viva uma de suas prediletas criaturas. Seu sorriso emudeceu quem já não sabia ser capaz de dizer qualquer coisa. Demorei-me tempo demais naquele quase um segundo, naquele estonteante sorriso... Seus olhos, o sorriso, seus lábios e todas as linhas que delineavam aquele quadro... Não nascera pintor que a merecesse ter como obra-prima. As vontades - e eram diversas vontades - varriam minha alma. Quantos quereres pude sonhar em tão pouco tempo? Não tive oportunidade nem coragem de despir aquela mulher, minha vida, presente e futura, estava atada à visão magnífica dos dias que seu rosto já me prometia. Mais uma vez a mulher se descuidara.

A dor antes alardeada pelo roncar de meu estômago fez coro e juntou-se a tantos outros entreveros mentais daquela primeira metade do dia. A fome se disse presente e também clamou. Mas não poderia pensar em nada que ocorresse naquele presente, eu estava longe, no futuro de meus desejos. Amava e era amado. O sorriso que avassalava finalmente interagiu com o sorriso que já quase se amarelava. Trocamos nossos sorrisos e o “me desculpe” juntou-se ao “não foi nada”. Os sorrisos ainda estavam ali. O mar, bem, o mar ainda era um só e consumia minha atenção. Descobri de súbito, ao retornar no precipício de minha realidade, que meu mundo estava repleto de carências. Como eu desejava estar ali, naquele momento, mas não naquele lugar! Como eu sonhei tanto em tão pouco tempo! Como eu desejei! Quase senti a face esbofeteada pela realidade crua da vida que carrego. Aquele sorriso não me pertencia, naquele mar nunca navegaria. A vida daquela bela criatura de olhos verdes cristalinos já devia pertencer a um outro sonhador. Engraçado que no abraço da realidade pude sentir a fome mais intensa. Percebi então, ao retornar do sonho, já em despedida, que o mar se fora, o sorriso me deixara. A mulher novamente descuidara-se. Meus olhos, negros e turvos, encharcaram-se. Não era um mar, mas sim o rio de minha realidade, o rio onde navegam e naufragam minha vida e meus desejos. Deste rio pôs-se uma gota vadia e, a bela mulher, sem querer novamente fez despencar uma gota em meu paletó. Não obstante eu saiba que o sorriso deve perseverar sempre de mãos entrelaçadas às de toda e qualquer esperança, minha vida reclama, sem que eu possa responder: De quantas carências o que sou é capaz de ser refém?