A geladeira

Mais um estalo. Seu coração palpita um pouco mais rápido e sua mente e seus olhos se desligam da TV por um instante e se viram para a porta do quarto, tentando inutilmente olhar a cozinha, que estava fora do alcance da vista. Ainda mais deitado no sofá do jeito que estava. Porém, a duração do susto é só tempo de se lembrar da sua geladeira. Nunca conseguiu entender o motivo dela fazer esses estalos – que lembrava o som de pipocas estourando na panela - apesar de o manual curiosamente apresentar esta observação: “Atenção, este aparelho pode produzir alguns estalos, o que é normal.”. Só gostaria que esta informação estivesse o tempo todo disponível no seu subconsciente, para que, a cada estalo, não se assustasse nem voltasse os seus olhos para a cozinha. A cada estalo, se perguntava se era algo peculiar ao modelo que havia adquirido ou se era algo comum a todas as geladeiras. Não importa, não entendia muito de geladeiras mesmo.

Seus olhos continuavam fitando a TV, prestando profunda atenção ao filme, afinal estava esperando este filme havia um bom tempo. Estava agora sentado no sofá, pois a cena que passava o estava deixando apreensivo para que terminasse logo. Curiosamente seu coração acompanhava o ritmo da cena e as unhas começavam a ser comidas pelos seus dentes nervosos. Subitamente, um outro estalo vindo da cozinha. Estava tão concentrado no filme que não prestou atenção neste estalo. “Que se dane!”, teria dito se tivesse ouvido o estalo. De repente, um estalo mais forte, tão forte que tirou sua atenção da cena, que ainda não havia chegado a seu ápice. Voltou mais uma vez seus olhos para a porta e ficou olhando por alguns segundo, até que um novo estalo, desta vez mais forte, o fez dar um pequeno pulo no sofá. - Idiota, é apenas essa geladeira com vida própria!. Dizendo isso tentou voltar sua atenção para a TV novamente, mas uma séria de estalos, um pouco mais intensos que os anteriores, voltaram novamente a sua atenção para a porta. Desta vez, ficou preocupado. Provavelmente a geladeira estava se auto-destruindo, ou tendo uma espécie de taquicardia – se isso fosse possível. As vezes a geladeira parecia ter vida própria. Continuou parado olhando para a porta, quando ouviu um novo som – que desta vez era totalmente diferente dos estalos a que estava acostumado. Um som surdo, grave, como se algo pesado tivesse caído de dentro da geladeira. Desta vez ficou realmente assustado. Nunca ouvira um som igual a esse. Continou deitado no sofá, mas desta vez olhando fixamente para a porta, enquanto o mesmo som se propagava novamente. Resolveu se levantar e ir até a cozinha. Talvez ainda desse tempo de fazer uma massagem cardíaca na geladeira.

Quando chegou na porta do quarto e olhou em direção à geladeira, seus olhos fixaram-se no que parecia uma imagem do surreal. A geladeira com a porta totalmente aberta, de frente para a porta da cozinha, parecia estar lhe encarando. Olhava para dentro procurando pelos poucos enlatados e algumas verduras já queimadas pelo frio, devido ao longo período de permanência ali dentro; mas, ao invés disso, o que via era uma luz vermelha muito forte, mas que não lhe causava dor ao olhar para ela. Na verdade, parecia hipnotizá-lo. Olhava, mas não conseguia definir o que via. A luz vermelha era intensa, de uma intensidade e coloração que nunca havia visto antes. Foi quando ouviu mais uma vez aquele som que o fizera levantar do sofá. Estava tão impressionado com aquela luz que não viu o que pairava ante a geladeira. Ao mover os olhos para baixo, deparou-se com uma imagem que jamais imaginara ver. O que viu não podia ser descrito, não com as palavras que conhecia, nem se parecia com qualquer animal que já tinha visto. Viu uma criatura que lembrava vagamente um crocodilo. Mas não era crocodilo algum. Media pouco mais de um metro, se é que neste momento era capaz de medir alguma coisa. Uma grossa camada do que pareciam escamas negras como a própria escuridão que caia noite afora, uma cauda pequena, que deveria medir apenas a metade do corpo daquela criatura e ia se estreitando conforme chegava ao seu extremo. Quando vislumbrou a cabeça, não pode achar em sua memória - a esta hora razoavelmente debilitada – nenhuma criatura que pudesse fazer uma comparação. Uma tromba que lembrava o longo nariz de um tamanduá, porém muito sujo e negro como o resto do corpo. Os olhos eram pequenos como o de um crocodilo, mas de longe tinham a coloração branca ou amarela que é peculiar a crocodilos e jacarés; eram vermelhos como a luz que saia de sua geladeira. Sua respiração estava acelerada; e, em um momento de desespero, a sua intenção é de sair correndo, mas com aquela criatura ali, não parecia uma boa idéia. Então, a pequenos passos e com o coração bastante acelerado – desta vez não por causa de alguma cena interessante da TV - ele tenta se distanciar, sem tirar os olhos daquilo.

Mal ele desfere o segundo passo e a criatura, com uma velocidade inimaginável corre em sua direção, proferindo um som abafado e grave, ao mesmo tempo em que é assustador e parece fazer com que seu cérebro balance dentro de sua cabeça. Seu coração bate em um ritmo nunca experimentado antes quando vê que embaixo daquele imenso nariz, ou tromba, ou que quer que seja aquilo, existe uma boca grande como a de um crocodilo com dentes maiores e dispostos desordenadamente como o de um tubarão. A única certeza de que tem neste momento é a de que não sobrará nada de seu corpo para contar histórias – mesmo que tristes. De fato, com uma mordida certeira as duas pernas são envolvidas por aquela boca. A dor que aqueles dentes causam é maior do que o imaginável. Não são apenas perfurações, é como se um ácido estivesse corroendo sua carne. Ele cai no chão quando a criatura começa a puxá-lo em direção a geladeira, que neste momento profere mais um estalo. Inutilmente ele tenta se agarrar nas cadeiras que compõem a mesa de jantar. Inútil, pois a velocidade e a força com que é puxado é incrível. Não tinha mais esperanças quando viu que o corpo da criatura já se encontrava em mais da metade dentro da geladeira. Não sairia mais de lá. Talvez ficasse vivo lá dentro, mas diante do que estava acontecendo, seria melhor se morresse de uma vez. Só pode se lembrar dos seus últimos pensamentos, quando seu corpo já se encontrava em mais da metade dentro da geladeira. Será que isso era característico deste modelo que havia comprado, ou será que todas as geladeiras tinham esse problema? E porque diabos o manual não tinha uma observação do tipo: “Atenção, este aparelho pode produzir alguns estalos, o que é normal. Eventualmente coisas estranhas podem sair de dentro e te devorar, o que também é normal. Neste caso, ligue para o nosso atendimento. O telefone encontra-se na última página.”?