80bpm

“O que chamam de música hoje me ofende. Eu fico imaginando se Beethoven revivesse e ouvisse a nona sinfonia tocando em celulares. Enlouqueceria. Se eu, que não a compus, já estou enlouquecendo.“

Então, Monte Cristo prosseguiu com a apresentação executando um adagio de Vivaldi, agradou a platéia - todos vibram -, e no meio de um arpejo oportuno escaldou-os com Chopin.

Estralou os dedos; corrigiu a postura; arrumou colarinho; modulou a voz e disse: “Eu espero a morte, porque se ela for o oposto da vida, talvez eu encontre a felicidade.”

Fechou o piano e saiu. Atravessou a rua correndo com seu casaco na cabeça, tentando se proteger da chuva. Correu em direção ao carro; a mão tremeu ao tentar abrir a porta.

- Tio, me da uma moeda?

- Não -, respondeu o maestro quando finalmente conseguiu abrir a porta.

- É pra comer -, suplica o garoto.

O carro partiu lentamente. O barulho “Txuu Txuuu” do pára-brisa o irritou tanto que sentiu-se obrigado a desligá-lo. As ruas vazias, o dedo do polegar da mão direito marcava 80bpms em batidas leves no centro do volante enquanto Monte Cristo assoviava Bach. O céu brilhava em compassos quebrados. O maestro piscou os olhos rapidamente; inclinou-se para frente; apertou as mãos no volante e conduziu seus pensamentos em Brahms. Desde então, o metrônomo já não era o seu dedo polegar, e sim o seu coração. Os sopros dançavam em linhas caóticas, as cordas abrilhantavam o rito. A música aumentava de intensidade; já não era Brahms, e sim Schubert, talvez Haydn, Mozart, Wagner... Eis que um ruído grave se mistura com notas agudas e dissonantes. E uma nota se tornou significativa entre todas as sinfonias, uma nota aguda, muito aguda, que surgiu no próprio ouvido, tremeu em seus nervosos, comprimiu o seu coração, correu pelas suas veias borbulhando, uma nota quente, muito quente, mas que aos poucos, esfriou.

Luz Trovão
Enviado por Luz Trovão em 22/03/2007
Reeditado em 25/09/2007
Código do texto: T421401