Diário de um jornaleiro (parte I)

“È andar. E andar. Osasco. Vila Ipojuca, Água Branca, Perdizes, Barra Funda, Centro, Pinheiros, Lapa, na volta. Roteiro é este, com algumas variações para as beiradas das estações de ferro, dos cantos da Luz, dos escondidos de Santa Efigênia. Também um giro lá por entre as Ruas Itaboca e Aimorés, na fervura da zona do Bom Retiro. Sem amor não dá nem pra atravessar a rua”.

João Antônio

Quando o semáforo se fechou, ao invés de esperar, corri. Isso acontecia todos os dias em Kami Otai, bairro proletário de Nagoya. Naquela manhã de inverno em pleno fevereiro, como sempre, imaginava outro plano de fuga enquanto caminhava para a estação de metrô. Só que mais uma vez, tive que adiar a idéia, tudo por conta de uma matéria que o jornal havia me pedido: escrever um especial sobre o Sasagawa Danchi, conjunto habitacional na cidade de Yokkaichi (Mie), onde vivem quase dois mil brasileiros. A viagem de trem durou cerca de meia hora, e assim que cheguei à estação, consegui uma carona com o dono de um botequim que funciona na frente do conjunto. Nem todos os dias apareciam sortes como essa, pois quase sempre tinha que caçar a muito custo alguns lugares onde me mandavam. E mais ainda quando ia entrar naqueles becos em que os brasileiros da comunidade sugeriam ter boas histórias. O nome do botequim era Estrada da Vida, nome de música e homenagem que o dono fez a Milionário e José Rico, famosa dupla caipira do Brasil. E assim que entrei no boteco, um gordo com sotaque de nordestino interrompeu a conversa com os outros operários para lançar a brincadeira. “Mas que porra Justino! Você ao invés de trazer uma loira me volta com mais um macho!”. Os outros trabalhadores que estavam no bar gargalharam alto. Era quase uma hora da tarde, pedi uma dose de rum e me sentei no balcão. Justino era um ex-cantor de música sertaneja em Limeira, interior de São Paulo, e chegou ao Japão para trabalhar numa fábrica de auto-peças da Suzuki. Oito anos depois, deixou a linha de produção para abrir o Estrada da Vida, e aos finais de semana tinha um programa de rádio numa estação japonesa que cobrava 900 dólares pelo espaço de duas horas. Na mesa ao lado, vestido de macacão azul sujo de óleo, um homem bebia cachaça e pingava colírio nos olhos. “Conjuntivite?” – perguntei. “Antes fosse rapáiz. Foi uma merda de um pedaço de ferro que entrou hoje cedo quando eu tava soldando. E o médico receitou pingar esse remédio aqui. Mas ainda bem que não precisa párar de beber” – disse ele, que despertou outra sessão de gargalhadas. Uma hora depois, já estava na terceira dose de rum. Coletei mais algumas histórias sobre o conjunto e fui fazer as fotos que iriam ilustrar a matéria. O gordo que havia feito a piada na entrada, era local de Guarabira, na Paraíba, e estava separado da mulher japonesa, mas ela ainda não lhe cortara o visto de permanência em troca de uma parte no seu salário de metalúrgico. Os outros operários quase não falavam, tirando um mestiço que tinha três dedos decepados numa prensa. “O que é essa caixa preta aí?” – perguntou ele, apontando para o estojo que eu havia deixado embaixo do balcão. “É um sax.”. Mostrei como se tocava e ele começou a fazer um som que parecia de uma buzina. O paraibano tomou o sax de suas mãos e disse para que eu tocasse algo. Escolhi garota de Ipanema, mas ele não se deu por satisfeito: “Agora quero ouvir Águas de Março”. Respondi que essa ainda não sabia, e guardei o sax com vergonha dessa cartada inesperada que levei do paraibano (que cantava a plenos pulmões toda música sertaneja que saia do som instalado na prateleira de bebidas). “Que pena, porque essa é a música do Tom Jobim que eu mais gosto. E mesmo não sendo muito fã de bossa nova, acho que esse é um cabra fudido. Porque até no som do avião e do elevador aqui do Japão toca música dele”, retrucou. E logo após o comentário, perguntei se ele morava no Sasagawa Danchi. “Depois que me mandaram embora do hospício que ficava perto do circuito de Fórmula 1 em Suzuka, vim direto pra cá”, disse rindo. Também achei que era brincadeira, mas era pura verdade. Certo dia, após o serviço, Nogueira deu um soco num japonês que segundo ele o atormentava há oito meses. “Todo dia esse filho-da-puta inventava um jeito novo de foder com meu trampo. Tinha dias que ele aumentava a produção de um jeito impossível de trabalhar. Então só acabei de pagar umas contas no Brasil e soquei a porrada no bode”. Depois disso, Nogueira ainda acertou três japoneses que vieram apartar a briga. “Só que eu acabei me lascando, porque me levaram para um lugar que parecia um hospital, de repente, dois japas vieram com uma injeção, e eu tive que descer a pancada em todo mundo. Então acharam que eu tava doido e me internaram num hospício. Os bodes ficaram tão putos comigo que passei uma semana bebendo urina, e eles me colocaram numa jaula congelante, sem colchão, comida e água, tudo isso em pleno inverno. Até que uma outra interna japonesa começou a me levar comida. Os pais dela a haviam internado alegando que a menina estava estudando demais. Tivemos um caso lá dentro, mas depois ela foi transferida para outra unidade. E até hoje aquilo ainda me persegue”, relembrou o paraibano.

Todos naquele boteco tinham uma história tão surreal quanto essa, e até aquela hora ninguém sabia que eu era jornalista. Achavam apenas que eu era um outro operário de fábrica com dotes musicais. Pedi uma cerveja pra rebater a fome, anotei alguns dados sobre o lugar, e fui procurar uma família que pudesse servir de personagem para a matéria. Acendi um cigarro com a bituca de outro e disse para que Justino pendurasse minha conta que eu voltaria logo em seguida para beber a saidera. Minha primeira parada foi na frente do bloco mais sujo do Sasagawa, que mais parecia um cortiço das histórias de Plínio Marcos do que um conjunto habitacional japonês. Subi os oito andares pela escada, pois não tinha elevador e, quando comecei a sacar as primeiras fotos, uma japonesa veio correndo aos gritos: “Pára com isso! Pára com isso! Aqui não pode! Aqui não pode”, repetia ela, incessantemente. Guardei a câmera e subi mais um andar, mas, quando menos esperava, lá estava ela de novo. “Vá embora! Vá embora! Vá embora! Vai embora senão vou chamar a polícia seu ladrão!”. Continuei a subida e gritei alto (e em português): “Vá se foder sua velha escrota filhadaputa!”. Uns dez minutos depois, tirei mais algumas fotos e desci correndo, pois a gritaria só aumentava. Mas assim que cheguei ao primeiro andar, um carro da polícia estava me esperando. Pediram meus documentos, abriram minha mochila (por sorte não acharam um cachimbo de haxixe que sempre trago comigo), revistaram os bolsos do meu casaco e me liberaram logo em seguida quando mostrei minha carteira de jornalista traduzida em japonês. Depois do apuro com os macacos, fui procurar outro ângulo para as fotos. E assim que cheguei no primeiro andar, tive uma visão insólita: um brasileiro vestido de bermudas em pleno inverno de fevereiro, fumando um cigarro, bebendo vodka e munido com um canetão pintando com desenhos psicodélicos todas as portas de geladeiras que estavam abandonadas no lixão. “Todos os dias preciso pintar um pouco pra aliviar a tensão senão acabo matando um japa na fábrica” - disse ele. “Mas por que em porta de geladeira?” - perguntei, olhando para os desenhos. “Porque é o único jeito de reaproveitar elas antes de serem destruídas. Aqui tudo se cria, já dizia o cientista, e quem diria que uma geladeira velha poderia virar obra de arte”. Dei um gole na garrafa de vodka, fumamos um cigarro e enquanto ele pintava uma praia chuvosa sob uma cidade esfumaçada com coqueiros metálicos ao invés de prédios, parti para minha sessão de fotos. Consegui algumas de cima de um barranco, onde se podia visualizar todo o Sasagawa Danchi. E quando sentei para fumar um cigarro, apareceu uma senhora brasileira com um carrinho de bêbe cheio de latinhas e garrafas plásticas. “Por acaso você achou essa máquina fotográfica aqui no lixo?”, disse ela, apontando para um amontoado de entulhos. “Não senhora, eu já cheguei aqui com ela” - respondi. “Ah bom, porque se vc tivesse achado ela aqui, era minha, porque eu perdi uma máquina igual a essa no ano passado. Por falar nisso, de onde você está vindo agora meu filho?”. “De Nagoya” - respondi. “Então quando você chegar lá, avisa o cônsul que eu vou derrubar o Lula, aquele presidente corrupto safado. Acredita que ele me roubou trinta mil reais do Banco do Brasil? E por causa disso eu vou derrubar ele! Escreva aí o que eu tô dizendo viu garoto! Porque eu tenho o poder de ler a mente, e vou acabar com tudo isso aqui! Agora deixa eu ir que preciso ver se os morcegos não esculhambaram meu tesouro que tá enterrado no jardim de pedra. E vê se não vai contar sobre minha fortuna lá em Nagoya hein rapáiz! Senão você também vai cair igual ao Lula!”, finalizou a velha, sorrindo sarcásticamente e mostrando os dentes estragados.

Esses dois últimos encontros haviam sido os mais estranhos dos últimos dias. Guardei a câmera e voltei para o boteco do Justino, que estava mais cheio de gente e com ainda mais bêbados do que pela manhã. Pedi uma dose de velho barreiro com jurubeba, e minha cabeça ainda estava naquela velha sinistra e no pintor de geladeira que bebia vodka e andava de bermudas no auge do inverno. Pedi a conta pro Justino junto com a saidera de cachaça e quando paguei os três mil ienes das doses de rum, percebi que há muito tempo já estava pagando pra trabalhar. Peguei um ônibus até a estação e, como o trem iria demorar mais vinte minutos, fui até uma conveniência e comprei um copo de saquê barato. Dentro do trem, que estava lotado, passei a viagem inteira tomando cuidado pra não respirar perto de ninguém. Eram sete da noite na hora em que cheguei em Nagoya, comprei uma passagem para Hamamatsu e fui encontrar com meus primos, estávamos planejando de tocar em algum boteco.

Chegando lá, eles estavam me esperando com uma garrafa de rum cubano prata, e um baseado já aceso. Fumamos dentro do carro e seguimos para o Cristal, o melhor bar de jazz ao vivo da região de Tokai. Nessa noite, estavam se apresentando uma pianista, um baixista e um baterista, todos eles japoneses. Bebemos mais uma garrafa de bacardi dentro do bar, e ficamos ouvindo o som dos japas enquanto conversávamos no balcão. Na mesa dos fundos, dois colombianos bebiam quietos de costas para a banda. Do outro lado, um casal de japoneses tomava uísque e prestava atenção na música. Pagamos a conta, acendemos mais um baseado na rua e pegamos nossa garrafa de rum que estava escondida na frente do bar. Às duas da manhã, entramos no carro e fomos até a praia de Kosai, a jamaica japonesa, onde frequentávamos o Shaka Shaka, um barzinho conhecido como o reduto dos maconheiros em Shizuoka. No dia seguinte, domingo, eu ainda teria que trabalhar, pois tinha uma pauta de esportes para às dez da manhã de domingo, e quando pensava em maneirar na dose, a dona do bar nos recepcionou com mais um baseado do tamanho de dois cigarros enrolados num papel de seda. “Caralho bicho! Pelo jeito vou ter que dormir no trem indo pra matéria” - pensei. “Mas deixa isso pra lá, porque agora quero que mais é que aquele verme barrigudo do meu chefe se foda”. Dei um pega no baseado e mergulhei novamente num copo de rum com bastante gelo e limão. Newton, meu primo, tirou o violão da capa e começou a ligar as caixas de som. A maioria das pessoas que estavam no bar quase não tinham contato com bossa nova, e mesmo não sendo profissionais, nem ficavámos com vergonha de incomodar os outros clientes com nosso som. Quer dizer, pelo menos até que o repertório terminasse. Mas, como a banda quase não ensaiava durante a semana, a gente sempre terminava de tocar por causa de uma discussão embriagada sobre acordes fora de lugar e histórias malucas que navegavam entre mares de Garrincha, Cuba, fábricas e Tom Jobim. Além de Antônio, o baixista, e irmão de Newton (que gostava de falar sobre cinema), quem também sempre entrava nas conversas era Tenório, dono de uma pizzaria brasileira perto da praia. Quando percebi, já eram cinco horas, e o primeiro trem para Nagoya partiria às seis da manhã. Mas como toda felicidade já nasce com seu germe da destruição, como dizia João Antônio, começamos a arrumar as coisas para a despedida (sempre centralizada no último baseado da noite). “Vai outra dose aí jornaleiro?” - perguntou Newton. “Demorou então seu cucaracha vagabundo, e leva mais uma outra aí na lata que é pra viagem até a estação”. De acordo com minhas contas de bêbado, não teria tempo para dormir, pois a matéria estava marcada para às dez da manhã em Tokoname, na província de Aichi. Mas, por enquanto, não queria pensar em prazos e muito menos esquentar a cabeça com jornalismos para embrulhar peixe. Coloquei Buena Vista na vitrola, absorvi a última dose de rum na lata e embarquei rumo a mais uma caçada aos tubarões.

“Jornalistas errantes são caloteiros notórios, e para aqueles que viajam por esse mundo sem raízes, uma conta de bar não paga pode ser um fardo elegante”

Hunter Thompson

Danilo Nuha – Começou trabalhando aos nove anos de idade como jornaleiro e balconista de bar. Foi açougueiro, limpador de fossa, descarregador de caminhão e operário em fábricas japonesas. Formou-se em jornalismo, tem 25 anos e atualmente é um jornalista desempregado que trabalha como metalúrgico no Japão.

Danilo Nuha
Enviado por Danilo Nuha em 26/03/2007
Reeditado em 23/08/2007
Código do texto: T426511