O ARTISTA
Era mais um ano e havia chegado “a feira”. Assim era chamado o principal e mais importante evento de exposição da cidade. Ali se reuniam todos os tipos de produtos novos, lançamentos exclusivos e de mercado. As principais marcas montavam seus espaços com luxo e requinte para atrair o público, não só no âmbito do varejo, mas também empresários e grandes comerciantes atacadistas. Era um acontecimento. E isso atraía também pequenos expositores e pequenos comerciantes com produtos para o público em geral. Pequenos artesãos, varejistas de produtos úteis, vendedores de bugigangas, artistas de rua e muitos outros. Todos que visitavam “a feira, iam para ver os lançamentos dos grandes e comprar dos pequenos. E isso era o que motivava Hugo há sete anos. Ele estava na categoria artista de rua e super talento sobrenatural. Aos dezesseis anos, quando conseguira seu primeiro emprego como office-boy, o perdera tão rápido como conseguira por ter desenhado uma cena com o chefe e a secretária numa posição para lá de constrangedora. Não era mentira. Mas nem o chefe e nem a mulher dele gostaram – desenho era perfeito demais para ser verdade, cheio de detalhes, sombras e curvas - e Hugo foi para o olho da rua no mesmo dia. Só um detalhe: Hugo só tinha usado papel e caneta esferográfica e nunca tinha feito um minuto sequer de qualquer curso de desenho. Nem unzinho. Ele era um desenhista nato. Talentoso desde a mais tenra idade, adorava a arte e, principalmente desenhar. A mãe brincava dizendo que ele tinha feito um desenho antes mesmo de aprender a andar. Era só apanhar um lápis e qualquer superfície servia para expressar algo num desenho. A porta da geladeira da mãe já tinha sido usada como tela um sem número de vezes e o pai já tinha desistido de limpar. Deixara o último desenho do filho – afinal ele tinha feito uma paisagem linda - resolvera comprar uma prancheta e quilos e mais quilos de papel. Hugo passava horas trancado no quarto, desenhando. Na escola, sempre que podia, estava decorando uma das folhas do caderno, com um desenho bem elaborado. Já na faculdade, que obviamente tinha optado por artes, era o primeiro sempre a terminar seus desenhos e trabalhos, e colecionava elogios e láureas dos professores. Hugo era o que se chamava de "virtuose" do lápis. Um Bach do desenho. Foi assim por um bom tempo até que descobriu uma nova ferramenta: O aerógrafo. O instrumento era uma espécie de caneta que espirrava tinta, movida a ar comprimido. Era capaz de fazer traços finíssimos de tinta e fazer efeitos fantásticos quando usado por um profissional. E Hugo logo se tornaria um mestre na ferramenta. Autodidata, logo que comprou o seu, começou a fazer pequenos trabalhos para amigos – já que não tinha emprego fixo e passava a maior parte do tempo desenhando. Pintava capacetes das motos dos colegas, personalizava partes de carros, camisetas bonés, e muitos outros objetos que podiam ser pintados e decorados pela arte de Hugo. Até que um convite de um amigo levou Hugo a um evento onde ele fez um enorme sucesso. Desde então não parou mais. A sucessão de convites para eventos e feiras só fez aumentar e Hugo começou a ganhar muito dinheiro. Sua fama já tinha alcançado projeção internacional e até alguns trabalhos no exterior. Mas nada suplantava o talento e a habilidade com a ferramenta. Até que chegou a oportunidade da “feira”. A organização do evento fez questão que Hugo participasse, enviando-lhe um representante e o contrato de aluguel do espaço. Todo o resto era por conta deles, inclusive o material que Hugo usava em seus trabalhos. Tintas e vernizes, solventes e tudo o mais seriam entregues no dia por um funcionário da organização do evento. Hugo sentiu-se muito lisonjeado, já que sempre levava seu próprio material e nunca tinha sido tão “paparicado” assim.
No dia marcado, um homem de preto entregou a Hugo uma caixa também negra e retangular com dobradiças nas laterais e que se abria no meio. Parecia uma caixa de ferramentas dessas de manutenção onde se guardam ferramentas. Hugo abriu a caixa e quase caiu de costas. Nunca tinha visto tantas tintas e tantas cores e variações de tons. Seus olhos percorriam cada frasco, cada rótulo, cada cor. Estava maravilhado. Não precisaria misturar sequer uma cor para obter o tom desejado, pois qualquer um que quisesse, estava ali disponível. Agradeceu com um olhar ao homem e este saiu sem dizer palavra. Então o público começou a chegar e a fazer os pedidos. Neste dia em particular, Hugo estava pintando camisetas. Pintava conforme a sugestão ou pedido do cliente, ali na hora. Em minutos, cliente dava uma pista ou sugestão do desenho e Hugo já fazia um esboço à lápis e logo em seguida o desenho com o aerógrafo.
Nunca Hugo estivera tão inspirado. Já tinha feito um sem número de camisetas e outros tantos trabalhos já haviam sido encomendados. O dia na “feira” transcorreu então à velocidade da luz e Hugo acabara de finalizar um último trabalho e já guardava seu equipamento quando uma mulher se aproximou:
- Boa noite. Uma mulher de meia idade, trajando um manto negro sobre uma elegante vestimenta acabara de chegar.
- Boa noite senhora. Infelizmente já encerramos por hoje. Hugo respondeu sem olhar para a jovem senhora que se prostrara diante dele.
- ...É, estou vendo. Mas gostaria de levar um trabalho seu. Vim de muito longe especialmente para isso. Você é Hugo, o artista do aerógrafo não é? A mulher sorriu e um sorriso enigmático surgiu em seu rosto.
- Sim senhora. Mas como disse, já encerramos por hoje. Aliás, lamento muito a senhora ter perdido sua viagem. Mas, se quiser, posso fazer no meu ateliê e a senhora retirar amanhã. Hugo continuava guardando suas coisas. Agora, organizava as tintas no estojo preto que recebera antes, sem dar muita atenção à mulher.
- Entendo. Mas preciso levar hoje. Hoje mesmo volto para minha cidade e não estarei aqui amanhã. A voz transpareceu tanta decisão que Hugo parou de arrumar seu material e fitou a cliente, indeciso.
- Certo. Veja, já guardei minhas coisas e logo o pessoal vai começar a fechar tudo. Posso abrir uma exceção e enviar por correio, por exemplo. A senhora me dá o desenho aqui, e eu lhe mando depois. Hugo pôs de pé em frente à mulher. Tinha meia idade e era muito bonita.
- Infelizmente preciso para hoje. Sei que você é muito bom e em alguns minutos faz um ótimo trabalho. Logicamente que vou pagar pelo seu trabalho. Acrescento um pequeno “bônus” pela sua boa vontade. A mulher parecia ter muito dinheiro. E muita obstinação também.
- Não é pelo dinheiro, senhora. Preciso mesmo guardar minhas coisas. Já encerramos por hoje. Hugo tentava não ser indelicado e ao mesmo tempo firme em seu propósito de guardar seus pertences.
- Meu jovem, será que três vezes pelo seu trabalho é um bom valor?
- Senhora, eu...
- Cinco.
- Mas senhora... – Hugo começou a suar frio.
- Dez. Dez vezes. É minha última oferta.
- Eu...eu...não sei o que dizer. Teve de fazer muito esforço para parar de suar.
- Não diga. Apenas aceite minha oferta. Seu trabalho é muito importante para mim. É um trabalho simples. Veja, gostaria de presentear meu neto com uma camiseta com este desenho. Ao dizer isso, tirou do bolso interno do manto que a cobria, uma foto. Na verdade um desenho. Tosco até. Um rascunho de um crânio humano, uma caveira estilizada, com a cabeça coberta por um manto.
Hugo olhou o desenho por um momento e fitou a mulher em seguida. Ela sorriu enigmática, misteriosa. Ele pensou novamente na oferta da mulher. Foi o suficiente para o ego do moço.
- Ok. Eu faço. É bem simples e posso fazer bem rápido. Mas a senhora me ajude com o pessoal da organização da feira. Se eu ainda não tiver terminado, a senhora vai ter que fazê-los esperar, certo?
- Sem problemas meu jovem. Pode começar o seu trabalho. Você não será interrompido. Eu garanto. A mulher sorriu novamente e um estranho brilho passou em seus olhos. Hugo nem notou. Já tinha se virado e abria a maleta apanhando o aerógrafo e algumas tintas. Apanhou em seguida uma camiseta branca, que seria usada como tela. Preparou tudo em segundos e iniciou seu trabalho. Antes de soprar o primeiro jato da tinta, fitou a mulher mais uma vez e acenou com a cabeça. Ela sorriu de volta. E então Hugo começou a pintar.
Minutos depois a mulher aproximou-se do cavalete onde Hugo havia apoiado a camiseta que servira de tela. Sorriu ao ver o resultado. Virou-se e recolheu a maleta com as tintas de Hugo fechando-as sob a tampa da caixa. Apanhou também a camiseta do cavalete e, segurando com as pontas dos dedos pelos ombros, olhou, sorrindo, para o desenho de Hugo. Seus olhos brilharam faiscantes. O desenho que Hugo pintara estava perfeito. Realista. Impressionante. Como ele sempre fizera em todos os seus trabalhos. Naquela camiseta fora pintado o desenho que a mulher pedira. E até mais. Naquele pedaço de tecido estava uma foto de Hugo. Mas era um retrato dele, em pânico. Parecia preso atrás de uma parede de vidro. A boca aberta denotava um grito emudecido e congelado e as mãos, em punhos fechados, batiam em alguma superfície transparente, como se tentassem romper uma prisão. A mulher deu uma última olhada e dobrou a camiseta, fazendo-a desaparecer debaixo do manto negro. Com um gesto, fez surgir um lacre na caixa. Uma caveira prateada com um capuz sobre a cabeça. Pôs o capuz sobre a própria cabeça. Em seguida, abaixou-se e apanhou a caixa.
- Vamos filho. Seu pai o aguarda. Estávamos com saudade de você. Você ficou muito tempo fora de casa. A mulher sorriu ao dizer essas palavras. Virou-se e caminhou tranquila, sumindo tão misteriosamente quanto surgira. E Hugo nunca mais foi visto.