A FERIDA (EC)

Solitário, olhava o dedão...

Queria retirar as faixas que cobriam seu pé... O dedão ardia em virtude da medicação que fora aplicada. Era a derradeira tentativa para que a pele se restaurasse e desaparecesse aquela pequena chaga. Também pequena, mas existia, a esperança da não amputação. A decisão seria tomada em horas... Logo pela manhã retornaria ao médico.

Seus filhos viriam buscá-lo para levá-lo ao hospital... Um manifestou a vontade de passar a noite com ele, mas argumentou preferir ficar só... Para refletir...

O risco de perder o dedão atormentava...

Quantas pedrinhas chutara na infância?... Quantos gols de bico fizera com aquele dedo?... A quilometragem de caminhadas perdera a conta.

Agora, estava lá... Sentado no sofá, torcendo para que um remedinho lhe restaurasse a esperança de poder andar de modo independente de qualquer aparelhagem... De não se tornar um aleijão... Um peso para a família...

Entre agitado e angustiado, zapeava aleatoriamente o controle remoto, sem prestar a mínima. De repente, uma emissora lhe chamou a atenção. Era dessas que transmitem um pouco de cultura. Discorria sobre a vida de Mendel, o homem das ervilhas, que descobrira os primórdios da genética.

Sorriu, pensativo. Qual teria sido o gene que lhe transmitira aquele mal?

Herdara do pai? Da mãe?

Com certeza, nenhum deles deseja um filho sofrendo. Ainda mais, sentindo-se culpado.

De outra parte, teria ele colocado o gene doentio no DNA de seus filhos? Não queria sobre ele essa espada... Viveria para saber?

Aquele dedo tinha que cicatrizar... Quantas cicatrizes já não lhe marcavam o corpo? O corte na testa... Na perna... Nos joelhos... Cotovelos...

Essas eram visíveis... Quase todas as pessoas têm.

Havia as invisíveis...

A separação dos filhos partindo para suas vidas... O divórcio... As mortes prematuras da mãe e pai naquele fatídico acidente de automóvel. Ainda lhe era nítida a imagem do velório. Parecia impossível que aquelas pessoas tão jovens, sem qualquer defeito aparente dormiam o sono eterno... Também corriqueiras.

Bateu-lhe o pensamento do quanto o ser humano é frágil... Indefeso à morte...

Quanto tempo é ideal para se viver, não se passar em branco pela vida e não se deixar consumir por ela?

Já tivera filhos, plantara uma árvore... Faltava apenas o livro para eternizar-se.

Não queria ser eterno... Queria apenas continuar caminhando com a cabeça erguida até morrer... Não depender de muletas, cadeiras de rodas, que alguém lhe ajudasse a subir uma escada... Queria poder dirigir seu carro e deslocar-se livremente, como sempre fizera.

Os primeiros sintomas apareceram há uns três anos... Inicialmente um leve adormecimento... Nem deu tratos à bola... Depois, a falta de sensibilidade e a rigidez. Inúmeros exames, incontáveis consultórios, ingerir um sem número de medicações... Às vezes, uma pequena melhora, logo substituída pela decepção da recaída... Cada vez piorava mais... Vieram tempos de dores..

Era como tentar subir uma escada rolante que está descendo...

Nenhum diagnóstico!

Passou a praticar tudo que podia para melhorar seu quadro. Alterou a alimentação, limitou as bebidas, parou de fumar.

Às vezes, sem muita esperança, o pensamento: Que diferença faria saber qual doença? O mal estava instalado. Pouco adiantaria tentar se recompor. O tempo é um peso irrecuperável.

A doença de difícil identificação estava prestes a obrigá-lo amputar o dedo. Um simples pedacinho lá na extremidade impensada do corpo... Ao qual, via de regra, não damos a mínima atenção, exceto quando damos uma topada inesperada... Como a falta de um pedacinho pode causar tantas conseqüências... Tudo se desequilibra... Parece perder-se a estética...

Ainda que pudesse encobrir a falta, sabia de seu defeito. Todos sabemos.

No vigor da vida nunca nos passa a idéia de nos tornarmos coxos... É da natureza humana esse sentimento de poder.

A madrugada adentrava em seu espírito... Sentiu-se um fantasma a arrastar correntes pelos corredores. Antes de adormecermos somos diferentes... Aumenta-se o medo e a coragem pelo enfrentamento de situações que se avizinham.

O medo da perda de parte de si fizera-lhe muito refletir. Chegara a comprar diversas plantas , taxadas de venenosas. Uma arma também. Nas noites mais dolorosas pensou usar para aliviar-se do sofrimento.

Quantas dúvidas...

São tantas as pessoas que têm iguais dúvidas ante essas ameaças de perda.

Apoiando-se, chegou até a escrivaninha e apanhou uma rama na gaveta. Com alguma dificuldade apanhou o revólver, guardado sobre o armário.

Difícil decisão! Terrível imaginar-se ensangüentado. Envenenar-se era mais digno.

O desejo de viver é a maior defesa que o ser humano possui. Luta-se bravamente, ante qualquer risco... Uma força inimaginável à luz da normalidade. Herança do instinto animal à ameaça do predador.

Pegou caneta e folha de papel para escrever a última mensagem... Sempre tolas as palavras de despedida. Servem apenas para tentar deixar a outros a culpa de seu desespero...

Não!

Uma réstia de coragem o empurrou para o outro lado... Enfrentaria sua penas... Quem sabe prestar-se como cobaia para estudarem sua doença.

Mas, e falta irreparável do dedão?... Quem garantia que o mal não se espalharia por todo o corpo?... Perderia o pé?... A perna?

Ele, sempre orgulhoso de seu corpo, quase perfeito... Gostava de admirar-se no espelho... Servia de paradigma a quantos? Como reagiriam ante a falta de um pedaço?... Por menor que fosse...

Outro sorriso, irônico.

Veio-lhe à memoria imagens da infância... Gostava de brincar de saltar num pé só... Vovó até o chamava de Pererê. Os Sacis não têm a perna direita, justamente a que lhe faltaria o dedo, se a quase inevitável amputação ocorresse. Que castigo estão a pagar?

Não tomara o remédio prescrito para relaxar e dormir... O sono chegava naquela que poderia ser a última noite de seu corpo inteiro... Breve teria que se render ao inevitável... Lutava o que podia para permanecer acordado... Lutaria, sem o dedão, pela melhor qualidade de vida possível... Quem sabe, tendo que ficar mais tempo sentado, não escrevesse um livro com suas memórias para imortalizar-se e para alertar sobre o mal que lhe atingira.

A luta de raciocínios levou-o à decisão, antes de adormecer às primeiras luzes do amanhecer...

Era esperar a hora!

Tocaram a campainha... Insistiram... No fundo, queriam guardar uma última imagem do pai abrindo a porta e sorrindo, como sempre fazem quando chega um filho.

Deve ser efeito do remédio, pensaram... Exagerou na dose, comentaram silentes, cada um para si...

Abriram a porta e viram o pai deitado no sofá, enrolado em um cobertor... O pé enfaixado escapava ao aconchego, quase tocando o chão.

Um chamou-o, sem resposta...

Enregelaram-se...

O outro bateu-lhe carinhosamente no ombro não querendo acreditar...

Choraram para outro, abraçando-se os dois e o corpo.

No chão jaziam o revólver e a rama da planta venenosa.

De nada adiantou chamar a emergência.

Ao invés da ambulância à internação cirúrgica, levou-o o rabecão ao legista para identificar-se a “causa-mortis”. Mister para óbitos ocorridos de forma suspeita.

Procedimentos que lhe retalharam o corpo realizados, foi enterrado, corpo íntegro como à imagem dos pais. Sua dor jazia escondida no sapato mortuário, não permitindo, aos que não lhe tivessem convívio, soubessem da aflição implacável dos últimos tempos de vida.

Para estes, a surpresa de uma morte inesperada.

A necropsia pouco revelou... Que diferença faria? Envenenamento? Bala? Infarto?

Certamente, morrera de desgosto...

Talvez...

Provavelmente, sentindo o prazer do gosto de vitória sobre a doença... Instantes antes...

Morrera íntegro...

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Ferida

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Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 27/05/2013
Reeditado em 27/05/2013
Código do texto: T4311249
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