PARALÚNIOS DE TIJOLOS

"Ajuste o seu tempo, prepare a sua farsa,

você é o ator principal."

("O incrível exército de Brancaleone" - filme

dirigido por Mario Monícelli - 1966)

Melhor seria que eu não contasse.

Morreria como começou, uma cachaçada.

E ficaria restrito apenas entre os que participaram.

Mas que graça têm as coisas que não podem ser contadas?

Então altero nomes, lugares e até o tempo.

Fica a história, somente.

E a certeza de que é razoável supor que a realidade às vezes é mais fantástica do que a ficção.

Estava eu, ao escurecer, tomando uma merecida cervejinha depois da caminhada, quando tropeça em mim, cumprimenta-me e senta-se ao meu lado um velho amigo.

Homem sério.

Bom amigo, bom profissional, pai de família e certa ingenuidade necessária para alcançar a felicidade.

Aliás ele tem uma família maravilhosa, como agora raramente se vê: mulher, filhos, avós, netos, cunhados, sobrinhos, cachorros, gatos, vasos de plantas, todos na mesma casa, a passarem a sensação, de que ali a felicidade e o amor ao próximo assumem contornos tão sólidos como blocos de tijolos; comparo porque tijolo, mais tarde nesta narrativa, terá importância fundamental.

Dispensável dizer que gosto dele.

O papo começa só como cumprimento, evasivas, rodeando conversa, como gatos que buscam a melhor posição para lamber o leite na cuia.

A tarefa é facilitada pela chegada de um outro nosso amigo, que nos cumprimenta rápido e entra no boteco para comprar cigarros.

Demora-se lá dentro.

O que nos dá azo, para falar dele.

Digo:

"____ Veja o Carlão, que acaba de chegar, gente boa, mas..." (mais tarde ocorreu-me que talvez meu interlocutor não tenha ouvido ou dado importância o "mas"; ou, então não tenha percebido o sarcasmo);

Continuo:

"... poís é, gente boa, mas um pouco estranho. Acredita que ele é estudioso dessas coisas de extra-terrestes, discos voadores, alienígenas? Vai à convenções a respeito, tem farta biblioteca do assunto e ouve rádio mal sintonizado, fora da faixa de transmissão, para ouvir estática, campo magnético onde acredita encontrar conversa de povo de outro planeta."

Para que meu interlocutor perceba, carrego nas tintas no tom jocoso:

____ "O Carlão é estudioso disciplinado. Pelos avistamentos cuja narrativas ouviu, fez um estudo entomológico de ETs. Segundo diz, são três as espécies que mais visitam a Terra: os quitonosos, orthopteras e dípteros. Seres com semelhança física, uns maiores, outros menores, mas que possuem personalidades diferentes que expressam em seus atos, uns são maus, outros bons e outros não estão nem ai..."

Élcio, não percebe a minha intenção, olha-me com brilho nos olhos para responder:

____ "Sei disso, estudamos e organizamos a matéria juntos."

Fiquei espantado.

Como ele não havia percebido a minha zombaria?

O brilho nos seus olhos significava que estava hipnotizado pelo assunto, como sapo a beira da lagoa, pelo olhar da cobra.

Carlão, já de cigarro na boca, sai do bar e senta-se ao nosso lado.

Pede uma cerveja e entra no embalo.

Fico ouvindo conversa de extra-terrestre.

Estava na companhia de loucos;

Mas iria ficar pior...

Passa por nós um veículo um pouco rápido demais para a rua do Icaraí.

O motorista nos vê, freia, engata uma ré nervosa e estaciona ao nosso lado.

De óculos escuros, como convêm a uma autoridade na investigação, ele se dirige aos dois malucos ao meu lado:

____ "Estava a procura de vocês. Recebi uma informação segura de que desceram alguns discos voadores no Bairro tal, perto da grande figueira."

E, como Dom Pedro, a levantar a espada para proclamar a independência do Brasil, ele ergue os punhos e convoca:

____ "Vamos dar um flagrante nesses caras!"

Pronto, tinham deixado a porta do hospício aberta!

Os dois rapidamente aboletaram-se no carro e convocam-me:

____ "Vamos, vamos..."

Fui.

E fiquei a lembrar da frase de abertura do filme de Mario Monicelli, "O incrível exército Brancaleone":

"Em tempos como estes, a fuga é o único meio de manter-se vivo e continuar a sonhar."

Depois fiquei assuntando a conversa agitada entre os três.

Quando secaram-se as bocas e pararam de tagarelar para tomar fôlego, disse em voz sensata:

____ "O local é rota de avião. Seu informante deve ter se confundido."

O trio olhou para mim.

Tinham semblante de arrependimento por terem me convidado.

O chefe da trupe, que dirigia a viatura, virou-se para mim, lento demais, como um bote a remo cheio d' água e de pescadores cansados, pesado, a manobrar entre os igarapés do Tietê.

Olhou-me como se eu fosse espírito sem luz.

Pareceu-me ouvir uns rangidos, e demorei a perceber que era o barulho do seu cérebro tentando entrar em funcionamento.

Pensar para ele era uma tarefa difícil:

____ "Ora! Meu informante sabe muito bem o que é um avião."

Cuidadoso, tal e qual tratador que entra na jaula dos leões, afundei na poltrona e procurei cair no esquecimento.

No sitio indicado descemos e olhamos ao redor.

Estava muito escuro e o X9 não esperava na grande figueira.

Brancaleone sacou o revólver e fez gesto para ser seguido.

Caminhamos duzentos ou trezentos metros.

De repente a chefia deu o sinal: "Alto!".

Agachou-se de cócoras.

Imitamos-lhe.

"Vejam!" - apontou com a arma.

Vi três discos voadores...

Estavam rente ao chão, como aterrizados, um distante do outro alguns metros, em formação que ao longe me pareceu triangular.

Cada qual tinha forma de elipse, porta aberta acompanhando o contorno do desenho e com o que pareciam janelas em torno da base; ... pareciam!

De cada uma daquelas construções ovais emanavam luzes, de diversas cores, azul, vermelho, prata, laranja, aleatórias, como se piscassem, uma substituindo a outra, como línguas de fogo.

Criaturas circulavam em volta.

Iam e vinham.

Distanciavam-se e depois aproximavam-se.

Carregavam coisas nas mãos, semelhante a madeira, que jogavam no interior pela porta aberta.

Mas que diabo!

Aquilo era tal e qual disco-voador.

A medida que nos aproximávamos, ocultando-nos da melhor maneira no pasto baixo, os objetos iam tomando forma maiores.

E as criaturas, magras, transfiguravam-se em quase humanas.

Duas delas, menores, destacaram-se em minha visão.

Vinham em minha direção.

O maior deles empurrava uma carriola e o menor vinha ao lado.

É, incauto leitor, uma vadia carriola de mão, ferramenta da pré-história, em plena alegoria de cientismo fantástico.

Dá prá acreditar?

Percebi, e havia demorado para compreender, que eu estava no meio de tijolos dispostos em fileiras, uma ao lado do outra, colocados em sentido longitudinal, para secarem ao sol.

Naquela noite, estavam sendo carregados para serem queimados nos fornos de carvão e madeira.

As figuras da carriola aproximaram-se e eram dois garotos.

Pararam um pouco a minha frente, compenetrados no trabalho, alheios aos malucos que lhe invadiam o espaço.

Vestiam trapos de trabalho. Tinham saibro e carvão pelo corpo.

O menor, que pareceu ter uns oito anos, começou a colocar tijolos no carrinho, agarrando-os com os dedos abertos em garra.

O maior, doze anos mais ou menos, pôs na boca um cigarro e riscou o isqueiro para acendê-lo.

A luz que iluminou seu rosto e a sombra do ambiente, deram ao cenário aparência de uma fotografia de Sebastião Salgado.

O fogo nos fornos de barro, a fraqueza das nossas ilusões e o trabalho necessário àquela hora da noite, por meninos que deveriam estar descansando, ressoou em meu cérebro como um alerta:

____ "A guerra, a peste e a fome."

A tríade do demônio.

A minha frente, os três guerreiros das galáxias conversaram com os trabalhadores; não sei o que foi dito, nem me interessa.

Voltamos por caminhos inúteis, escuros, cheios de encruzilhadas e armadilhas onde poderíamos nos perder.

Entramos em Araçatuba pelo bairro São José, ladeados por suas casas miseráveis.

Um bêbado cambaleante levava nas mãos uma lata de cera, a caça do jantar no deserto árido.

Dois adolescentes riram alto e flanaram como morcegos, na frente do nosso carro, rostos iluminados de falsa alegria, entusiasmo e crack.

"Não esconda o seu coração, deixe-o sair para lutar contra o clamor dos oprimidos..."

Alguém disse por mim, a mim mesmo.

Brancaleone estava de volta em vestes alienadas:

____ "Ajuste o seu tempo, prepare a sua farsa, você é o ator principal. Seja mais realista, mais humilde e ambicioso em suas buscas e desejos."

Espantei a velha visão com uma zombaria, "na próxima vamos prender anões de jardim".

Acrescentei meu desprezo pela busca do que não existe, com algo que não se faz em público.

Fedeu e fui expulso da viatura e retornei ao planeta Terra.

E acho que foi um erro, pois eu estivera em companhia de soldados de batalhas perdidas, desesperançados, mas em busca de uma utopia que lhes parecesse verdadeira, mesmo que fosse uma louca busca por extra terrestres, que nos salve da ignorância e da injustiça.

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Araçatuba - SP, setembro / 2013

Obrigado pela leitura.

Sajob
Enviado por Sajob em 10/09/2013
Reeditado em 23/04/2015
Código do texto: T4475251
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