Carros enfileirados na via. Semáforo fechado. Iniciava-se a contagem para condutores ansiosos. Aumentavam os giros das máquinas. Os giros sanguíneos também se aceleravam. Corações a mil, num bombear frenético. Verde. Ninguém partiu.
Na passarela de pedestres, um rapaz se ajoelhara, desafiando os veículos. Rua estreita, sem opções de desvio. Os burros eram tapados. Não havia como passar. Fazer o quê?
_ Passe por cima desse infeliz!
Gritou a moça de óculos escuros. Eram tantos desconhecidos, que se protegiam, acomodados no interior de geringonças metálicas. Pareciam irritados e trêmulos. Intermitentes e barulhentas acelerações não rendiam um centímetro de locomoção. Que decepção! Condutores nada conseguiam fazer, enquanto os automóveis fumavam e davam baforadas, a todo tempo.
Eu olhava para os personagens, e para aquelas simples máquinas, queimando e pitando suas impaciências.
Os pedestres tinham melhor sorte. Passavam, olhavam para o mendigo da rua; jogavam-lhe uma moeda, o pedágio. E seguiam, deslocando-se com muito maior eficiência. As tralhas baforentas, mesmo assim, não se acabrunhavam. Seus passageiros faziam pose. Eu enxergava os orgulhosos e convencidos, cheios de empáfia. Cena ridícula.
Dentro do primeiro veículo, por sorte ou providência, um condutor abaixou o vidro da janela, e gritou:
_ Sou médico!
Imediatamente, um surto de revelações. Outras janelas se entusiasmaram.
_ Sou enfermeira...
_ Sou engenheiro...
_ Sou cabeleireiro...
_ Sou prostituta...
_ Sou um jornalista homossexual...
_ Sou bombeiro aposentado...
_ Sou matador serial (mas, abomino o uso de armas químicas)...
_ Sou como vocês, sou como vocês (repetia um sujeitinho de bigode, quase desaparecido, lá atrás) ...
Bem, para honrar o juramento de fraternidade humana, o médico (apenas ele) desceu do carro, apesar do “serial killer” ficar coçando os gatilhos. Aquele homem de branco ofereceu, então, seus cuidados.
_ Pá, que coisa horrível o acometeu?
O jovem silenciou, estranhamente. Abaixou a cabeça. Bem à sua frente, avistava-se uma capela. Estava a quase 500 metros de distância. A torre imponente era bem visível, nas redondezas. Ao refletir na sua cruz central, a luz solar encandeava, incomodando a visão de quem estava, exatamente, em cima da faixa de pedestres. Exatamente. O médico resolveu forçar a barra, perguntando ao mendigo, o primeiro transeunte que conseguiu alcançar.
_ O que faz aquela cruz, ali no alto, piscando em meus olhos, exatamente nesta posição? O que significa isso?
O pedinte estirou a mão, à espera de uns centavos. Ora, até as maquinetas automáticas, símbolos da modernidade portuguesa, somente funcionam com a inserção de moedas. Mas, o questionador não se apercebia do tributo exigido. Ali, na Rua Estreita, tudo gerava receita para o famoso mendigo-cientista. Diante da falta de pagamento, não lhe sobrou alternativa.  Livrou-se daquele agarrão teatral e pegajoso. Arremessou o braço do suplicante ao vazio, num solavanco. Antes de empreender sua fuga, respondeu, com desdém.
_ A capela é um prédio com uma cruz metálica e brilhosa, que reflete a luz do Sol... 
_ O mais é birra sua, ... maluco!
O menino retornou à cena, gritando o motivo de sua perplexidade paralisante:
_Estou vendo!
_Era só o que estava a me faltar: um milagre.
O médico emendou sua fala, desanimado. Bem próximo, nada me restava a observar de especial. Somente mais um cético-pragmático-descrente; um ser vivente, uma vida que não conseguia se reconhecer. O pobre rico, coitado e arrogante, como tantos, somente acreditava no conhecimento que ele mesmo produzia. Considerava-se o subproduto de uma imaginária explosão: a decantada origem pirotécnica do nosso “tudomundo”.  Afinal, nos currais científicos, a vida não é considerada dádiva coisa nenhuma. É fruto do acaso combinatório. “Deuses somos nós, os médicos, que salvamos vidas!” Sustentava o descrente.
Tão vago era o olhar do ser racional e inteligente. Compreender o seu próprio surgimento não é coisa para meros esforçados. Certamente, a mais complicada máquina inventada pelo homem nunca passará de brinquedo, diante de um simplório organismo vivo.
_ Largue-me, estou vivo!
Com as mãos espalmadas, olhando para o alto, braços levantados, o menino nem imaginava o teor de sua provocação. Mas, o que é essa vida? O tal “sistema químico autossustentado, capaz de uma evolução darwiniana, por mutação aleatória”. Que definição!
Eu estava ali, vivo, também. Em nada acreditava, mesmo que não fosse cientista. Observava tudo. Acabara de chegar a Lisboa. Isso deveria ser uma caminhada despretensiosa. Que acontecimento bizarro acabei por presenciar! Vim para visitar a capital portuguesa, por suas características culturais, sua história, sua ambiência europeia, sua língua maravilhosa. 
Ainda, como um observador da confusão, embatucava-me com os acontecimentos. Atitudes encadeadas, sequenciais, personagens bem definidos. Cada um abria sua participação, ao passo que outros se paralisavam. Isso mais parecia uma encenação. Cadê as câmeras escondidas? Alguém vai saltar, dançando e cantando, inesperadamente.
Tudo me transparecia, ainda, como se fora uma repetição. Minha caminhada anterior, pelas imediações do Jardim Botânico, revelou-me a mesma (e estranha) sensação. Algumas cenas eram familiares. Você já viu uma pessoa pela primeira vez e imaginou conhecê-la de algum lugar? A hipótese de que, verdadeiramente, eu já teria vivido aquilo antes era muito forte. As ocorrências recriavam situações exatas, associando o sentimento a cada acontecimento.
Meu cérebro estava, então, submetido a fatores neuroquímicos. Mas, o que significa isso? Certamente, coisa nenhuma. Trata-se de uma explicação vazio-denominadora, daquelas que nomeiam o fator desconhecido e fazem de conta que descortinaram o segredo, acharam a sua quase definitiva explicação. Alguns senões se refrigeram com os respingos de nossa racionalidade. O que seria dos homens sem as teorias disfarçadas de certezas?
Confesso que isso me deixa assustado. Confesse, também. A visão, som, sabor ou mesmo odor de alguma coisa, sensações nos fazem pensar que experimentamos antes, embora saibamos que isso não ocorreu. Ou não saibamos. Isso também não importa. O que vale é a denominação. Atribuímos um nome ao negócio. E ficamos em paz, definitivamente.
Mas, o menino ainda insistia em sua recuperação da visão, afirmando sua condição de ser vivo. Naquele momento, um incômodo ser vivo. O mendigo voltou, aproximou-se da passarela de pedestres, acomodou-se num canto de seu camarote. A mulher de óculos escuros disse que estava atrasada para um compromisso muito mais importante, outra aparição.
_O que me aguarda, em outro semáforo, é muito diferente desse momento pífio.
_ Qual é o seu nome, miúdo inconveniente?

_ Neutrino, meu nome é Neutrino.
E eu continuo vendo tudo. Heranças, lembranças inexplicáveis. Seriam causadas pela reencarnação ou por pequenas falhas em meus processos de memória?  Algo escondido no fundo da minha mente era despertado.
_ Eu estou ouvindo!
Valha-me minha Senhora do Perpétuo Socorro! O homem que dirigia o terceiro automóvel da fila joga seu aparelho auditivo na calçada. Eu não me aguentei, diante da empolgação, e resolvi entrar no clima.
_ Pois, pois, que andem os aleijados!
Os mais próximos não gostaram de meu desprendimento anedótico-linguístico. Somente o mendigo, ainda sentado ao meio-fio, soltou uma gargalhada, enquanto segurava nas mãos um prato de sopa.
Isso me lembrou a estória da Sopa Primordial. A segunda barra forçada. Desculpem-me. Aquele negócio era todo surreal, mesmo. Vaguei, imaginei outro cenário de águas ferventes e envenenadas por compostos sulfúricos, de metais liquefeitos jorrando das camadas profundas do planeta. Nesse verdadeiro inferno, com temperatura acima dos 400 graus centígrados, calor suficiente para extinguir em pouco tempo a fauna e a flora de toda a superfície terrestre, encontrei colônias de estranhos micróbios. Corri para outro extremo do termômetro, nas águas gélidas das regiões polares. Em amostras de gelo, retiradas do fundo do lago Vostok, encontrei mais microrganismos. Seres posicionados na tênue linha que separa viventes de não-viventes. 
É possível que a vida, tão persistente, seja algo maior do que pensamos. Não se resumiria a uma simplória “sopa” mágica. Ao que parece, a tal sopa teórica anda meio envenenada.
Ora, ora, nem temperaturas extremas ou abundância de gases tóxicos podem servir de empecilhos para a vida. Nada conseguirá detê-la. Imaginei. 
Mas nada disso ajudava na solução do impasse, na Rua Estreita.
Um cristão passante, com sua bíblia em mãos, lembrava os relatos mitológico-bíblicos sobre a criação. Aos berros.
_ Do barro viemos; e ao barro voltaremos!
O mendigo não parece discordar. Até para isso havia teoria científica. Sim, a argila seria a chave do mistério de como compostos orgânicos simples saltaram para a condição de material genético autorreplicante. Trata-se de um "cristal-gene". Os caras são bons de nome.

Isso tudo aqui faz sentido? Pode ser que sim. Ou não.
Eu me aproximei do mendigo, que estava contente com a grande movimentação de sua ruazinha. Sua sala de estar recebia visitas que, inesperadamente, se alongavam.
Olhando-o, mais atentamente, perguntei sobre a precariedade quase-vivente. Desejava compreender por que os seres humanos ainda persistem, buscam a sobrevivência, em condições adversas.
_ Qual é a explicação para o instinto de sobrevivência? Qual é a origem de suas forças, meu caro?

Não se tratava de um mendigo comum, pude comprovar. Como o apelido já denunciara, era um físico, mesmo, desiludido com a ciência. Antes, ele se desiludiu com a vida. Um pouquinho antes, ele se desiludiu com o amor. Além de me confidenciar segredos, ele reconheceu que uma estranha programação instintiva o impedia de abandonar este mundo dos vivos. Então, permaneceu, numa condição humilhante, mas ainda persistente.
_ Por que?
O mendigo desconversou. Começou a falar como um pseudo conhecedor de outras forças da natureza. Minha pergunta
ficou sem resposta. O pedinte passava a mão na barba mal cuidada, enquanto barbarizava teorias inventadas, alimentadas de dúvidas. Era um tresloucado blá blá blá de mendigo ou de cientista. Nem sei mais.
Parou um pouco, virou o rosto rapidamente, para cuspir o osso de algum delicioso animal morto inserido na sua comida. A cusparada, gosmenta, acertou o homem de branco. Nosso bom samaritano já estava irritado com o miúdo que insistia em não ficar cego. O que ganhou com o seu ato de compaixão humana?Uma saraivada de gosma-não-primordial na cara.
Eu percebi que todas aquelas discordâncias impediriam o desfecho consensual. 
O médico voltou, às pressas, para o carro. Seu olhar se fixou com o do jovem vivente não-cego. O miúdo levantou a cabeça, altiva e provocativamente. Seu mundo não era leitoso. Suas palavras eram firmes e insistentes.
_ Eu ainda vejo!
Acionou-se o motor. Foi uma partida em disparada, desesperada. O letrado e racional condutor nem sentiu o catabio. Tocado por instintos rudimentares, nada mais sentia, nada mais pensava. Um corpo lhe passara por baixo das rodas. Não imaginei que o embate fosse encerrado, assim. Eu queria gritar. Mas, guardei palavras e versos para mim. Talvez não fosse a última batalha. 
Fuja, fuja, vida, também dispare; revide a agressão, faça de conta que o fim não é fim. Disfarce, e volte, enquanto escorre seu sangue no chão.
Meros seres, como tantos, simplesmente regidos, deveriam seguir. E dispararam seus carros, enfim, um a um. Riscaram a passarela, com a mesma tinta ainda quente, como se nada mais houvesse a fazer. Um vermelho de lembranças vibrantes. Eu perguntava:  para onde foi a persistência? E apenas torcia para que alguma vida ressurgisse daqueles traços.
Tudo em vão. Não há mais sangue, agora. Simples córrego de um composto líquido. Que se esvai. E talha. Química de algum nome inventado, testado. Herança perdida, sem mãe, sem pai. 


 
Aluísio Azevedo Júnior
Enviado por Aluísio Azevedo Júnior em 08/10/2013
Reeditado em 19/10/2013
Código do texto: T4516604
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