Nosso autor. Meus personagens.

»O que acharam?

Deixem um comentário, por favor.»

— Atende, anda, atende. Alô, Mr. K? Sou eu. Algo ruim vai acontecer.

— Que delicadeza, meu caro. Que horas são?

— Desculpe-me, mas não é tempo de respeito, é tempo de guerra. Uma grande está por vir.

— Acalme-se, senhor, e deixe-me acordar direito. O que aconteceu?

— Ele vai fazer da nossa vida uma desgraça. Estamos perdidos.

— Não estou entendendo. Quem é ele?

— É um tal de Sr. P, miserável Sr. P. Ele nos criou e vai nos colocar numa história tempestuosa. É, isso mesmo.

– Como assim nos criou?

– Foi o que você ouviu. Somos personagens desse Sr. P, e vamos protagonizar uma história ruim.

– Por que alguém faria isso?

– Não sei. Ele estava assistindo um filme e de repente lhe veio a ideia. São quatro personagens: Eu, você, o Mr. R e o Mr. L.

– Por que ele escreveria sobre nós quatro em particular?

– Ora, o que temos em comum? Ele vai nos revelar. Estamos perdidos.

**********

Esse conto será a história do bem purificando uma cidadezinha chamada Brada, um lugar que até há alguns dias era referencia de paz e serenidade, mas que de repente se viu sob o domínio libertino dos malignos adivinhadores. Malditos sejam eles: Mr. S, Mr. K, Mr. R e Mr. L. Eu odeio esta casta de demônios. E é por isso que hoje escrevo para consumi-los do meio desse povo sereno. Trarei vossa paz novamente, povo bom!

Entretanto, para esse grande feito, precisarei de algumas ajudas escolhidas a dedo. E a primeira pessoa que me vem à cabeça é o padre da paroquiazinha Sagrada e Fé. É um senhor quase sexagenário e possivelmente um cristão rigidamente tradicional no quesito palavra divina. É o homem perfeito para entender que os adivinhadores não herdarão o reino dos céus. Infelizmente, o difícil será fazê-lo crer que por isso esses malditos devem morrer. Apesar de tradicional, o padre não deve ter raízes tão antigas no tempo, como, por exemplo, raízes da inquisição. Essa, portanto, será uma dificuldade legítima: convencer o velho padre de que os adivinhadores merecem a morte por seus atos malignos.

Mas não desistirei. Estou resignado à ajudar o povo de Brada. Só esperarei o sol raiar para falar com o padre. E enquanto isso prepararei minha argumentação. Assim que a luz colossal apontar no horizonte, já quero estar pronto para encantoar, com uma retórica bem lapidada, o velhinho de Deus.

Desejem-me sorte.

**********

– Alô.

– Pois não.

– Já estava a espera desse telefonema, não?

– Haha. Ainda estava na cama quando me ocorreu que você iria me ligar. De repente não quis que o telefone tocasse duas vezes.

– Esperto, você. Mas, olha, deixemos os sorrisos de lado e agora falemos sério. O Mr. S previu algo desconcertante a nosso respeito. Um desses pseudoescritores nos colocará numa história com um final infeliz e possivelmente funesto. Temos que fazer alguma coisa.

— O Mr. L já sabe?

— Ainda não. Você pode comunica-lo?

— Claro.

**********

– Mr. L? Sente-se.

– Más notícias antes mesmo do nascer do sol, meu caro?

– Recebi um telefonema ainda há pouco do Mr. K. De fato é uma má notícia.

— O que foi?

— Num pequeno resumo: faremos partes de uma história onde, digamos, o bem não será nosso aliado. Sr. P, se não me engano, será nosso demônio.

– Que desgraçado. Quem é ele?

– Não sabemos nada a seu respeito. Mas deve ser um desses idiotas aspirantes a escritores. São um bando de cretinos.

– Claro que são. Não sabem viver em seu mundo infeliz e nos criam para viver no nosso. Quanta besteira.

– Sim. Agora precisamos pensar em alguma coisa.

– Tem alguma ideia?

– Eu iria te fazer essa mesma pergunta.

**********

E enfim nasceu o sol.

– Padre, com a sua benção queria ter uma pequena conversa com o senhor.

O padre olha de um lado ao outro do centro de sua paróquia como um perdido no coração de uma floresta. Não sabe absolutamente nada do que se passa. Ouve minha voz mas não me vê. Se fosse comigo, talvez também me assustaria. Coitado.

– Quem me fala, é Deus? – O velhinho então pergunta. E eu rio disfarçadamente.

– Não. Não sou Deus, padre. E, por favor, não pergunte quem eu sou. A resposta seria difícil demais para sua compreensão. O que posso dizer é meu nome: Sr. P ou apenas P, como quiser. E venho para uma séria conversa. Pode me receber?

Subitamente, uma rígida expressão aparece no rosto do padre e com a mesma velocidade se dilui entre as muitas rugas de sua face achatada. Agora o velhinho se senta no banco mais próximo e se põe a olhar para cima, como que acompanhando os últimos ecos da minha voz.

– Então diga, meu filho, o que deseja?

Decidi ser direto. De fato não será o caminho que preparei antecipadamente, mas…

– Sua paróquia está em perigo, padre. Seus fiéis serão ludibriados por libertinos adivinhadores. – Claro, eu não disse como Deus diria, mas minha voz, em alguns picos, pareceu, sim, com um pequenino trovão. Nada para me exaltar, evidente.

O padre não me respondeu de imediato, e seu silêncio já dura alguns minutos. Não sei definir muito bem o que está em seu rosto, mas posso garantir que é uma ponta de dúvida ou receio. Infelizmente são rumos opostos. Dúvida significa que minhas palavras foram rígidas demais e que não consegui um lapidar conforme a necessidade, e vale-me como um iminente fracasso. Já o receio, em contrapartida, traz em seu cerne a ponderação das minhas palavras. Significa que o velhinho esteve calculando algumas possibilidades e que possivelmente encontrou o cálculo exato: adivinhadores mais fiéis é igual a desordem na paróquia. Tomara que seja esse último o rumo da expressão do rosto do padre. Facilitaria a vida.

– Olha, não sei quem você é, e não sei o que deseja. Por que fala de adivinhadores? – O silêncio do padre durou dez minutos.

– O senhor faz um belíssimo trabalho aqui na paróquia, padre, mas, infelizmente, agora está sob a mira indireta de quatro adivinhadores aqui de Brada. – Fiz essa pequena pausa ensaiada para agora enredar a cena num pequeno drama. – Imagina a euforia do povo quando souber que existem homens, aqui, entre eles, que podem prever o futuro? Temos que concordar, será uma desgraça total.

– Mas meus fiéis não crerão nessa blasfemia. – O padre saiu de uma concentração ostensiva para dizer o que agora disse.

– Como pode ter certeza, padre? Quem não quer saber quando irá morrer, ou se algum dia ficará rico? É fácil enganar o homem, infelizmente.

– E quem são eles, esses tais adivinhadores?

Uma boa curiosidade, digo.

– Tenho até seus nomes, padre: Mr. K, Mr. S, Mr. L e Mr. R. Ai estão os quatro malignos.

– Mas eles são, de fato, adivinhadores? Preveem mesmo o futuro?

– São nitidamente dominados pelo poder da adivinhação de satanás. Não podem viver entre cristãos sagrados.

– Mas já não é tarde demais? Digo, o povo já não os descobriram?

– Felizmente não, mas temos que ser rápidos, se não eles conseguem.

– E o que posso fazer?

Pronto. Fácil como conduzir seus próprios personagens.

**********

– Mr. S, não sei ao certo o que fazer, e por telefone é difícil ter alguma ideia. Por que não fazemos uma reunião, nós quatro?

– Claro, sim, mas onde? Já não estamos na mira? Não podemos ficar saindo por ai. Estamos à mercê de um escritor louco.

– Sim, concordo, mas agora temos que arriscar. Seria bom conversarmos nós quatro e tomarmos, todos juntos, uma decisão.

– Claro. A que horas? Podem vir aqui para casa.

– Ainda tenho que avisar os outros. Pensarei num bom horário e retornarei a ligação.

– Tudo bem.

– Ah, uma última coisa. Tente se esforçar um pouco para ver se consegue outra visão. Seria de grande valia ter o conhecimento de outro passo desse escritor cretino.

– Tudo bem, tentarei, Mr. K.

**********

Olha agora minha ironia: Adivinha quem convenceu o padre? Haha. Desculpe-me pela graça, não resisti.

Neste exato momento toda a cidade de Brada caminha em direção a uma casa em particular. Eu sou o escritor, e mesmo não os tendo colocado naquela casa, sei que lá estão, numa inútil reunião. Convenci o padre e o padre convenceu o povo. Juntos somos em centenas de milhares, uma verdadeira multidão em prol de uma boa causa: expurgar a cidadezinha. Adivinhadores jamais! Pegaremos os quatro e os enforcaremos, já está decidido.

O padre segue na frente. Apesar de ser um velhinho de 56 anos, demonstra uma vitalidade segura e de dar inveja; caminha mais firme que muitos desses mocinhos que se dizem virís. Ao lado do religioso segue um homem corpulento como um tronco. Fora escolhido justamente pelo porte, e posto também na dianteira para que, caso precise, seus braços poderosos servissem para um combate rápido. Com toda a certeza do mundo, nenhum dos quatro malígnos resistiria a sequer um tapa da mão monstruosa do homem. Nosso mais forte soldado é ele.

Os outros integrantes se dividem entre paroquianos e meros propagadores da ideia, sendo, esses últimos, perfeitos para uma investida como essa. São eles que demonstram, a cada passo dado, a desaprovação e fúria que sentem pelas obras que acreditam ser erradas. Por sorte conseguimos cravar em suas consciências o satanismo que está por trás das previsões. Claro, não me envolvi diretamente nesse ponto, mas com uma empurradinha que dei no padre logo uma pregação sucinta se estabeleceu. Ele ensinou rapidamente o certo e o errado ao povo e em seguida saímos à caça dos malígnos. Estávamos alvoroçados.

Estávamos e ainda continuamos.

**********

– Então, o que podemos discutir, meus caros?

– Temos que ser rápidos.

– Claro, alguém tem alguma ideia? Mr. S?

– Não tenho bem uma ideia, na verdade é outra previsão, por sinal não boa.

– Anda.

– Ele sabe onde estamos, e convocou toda o povo para vir atrás de nós.

– Temos que fugir, ora. Vamos.

– Você não entendeu? Ele é o autor dessa história, coisa, não adianta fugir. Para onde formos, qualquer lugar que seja, ele conduzirá o povo até lá. Estamos perdidos.

– Mas ele pode mesmo nos matar?

– Claro. Mas ele é esperto e não fará sozinho. Usará os próprios personagens aqui de Brada. E por que? Simples. Se ele mata quatro, o lado mais fraco é o dele. E se eles, centenas, matam quatro...O miserável quer força. É isso que ele quer.

– E nada podemos fazer? Para que mesmo serviu essa reunião?

– Acalme-se Mr. L, vamos pensar um pouco mais. Acalme-se.

– Acalmar-me? Por que? Já está feito, estamos perdidos, vamos morrer.

– Não é bem assim, preste atenção. Quando esse Mr. P nos criou, nos colocou nesse mundo, nessa cidadezinha chamada Brada, consequentemente nos deu uma ínfima liberdade. Ele até pode criar alguns acontecimentos e por fim nos matar, mas antes disso, e fora de suas linhas, da sua escrita, temos algumas boas liberdades. Concordam?

– Não entendi aonde você quer chegar, Mr. S.

– Olha, estamos aqui, na minha casa. Foi ele quem colocou a gente aqui? Não. Ele não está nos manipulando, quando nos criou, apenas nos soltou em Brada. Ele quer que seja natural nossa morte, quer que o próprio povo nos encontre e nos mate.

– Começo a entender.

– Então. Podemos nos mexer. Podemos ir e vir, e o máximo que acontecerá é ele saber onde estamos. Na minha cabeça fermenta uma ideia que poderá funcionar.

– Anda.

– Não posso dizer, se não ele saberá. Fiquemos quietos até a hora certa.

**********

Acabamos de passar pela Rua 5 e viramos em sentido a 7. A dois quarterões daqui, dentro do sepulcro caiado que eles chamam de casa, estão os quatro adivinhadores demoníacos. Continuamos resignados e num fervor contagiante. Seguimos bradando uma canção, ou qualquer outra coisa, que desenvolvi para a ocasião. Passeia-a ao padre e ao homem forte ao seu lado e de repente todos já a gritavam.

– Brada, terra sagrada, cidade santa, terra de paz. Brada, terra sagrada, fora daqui filhos do satanás. – Gritamos com tanta vida que possivelmente as cidades vizinhas estão ouvindo em bom som.

Quando enfim nos detemos em frente a casa.

– O que faremos agora? – Do meio da multidão uma voz se faz ouvir.

– Saiam, covardes. – Um deles grita.

– Vamos invadir! – Alguém lança a ideia.

– Sim, vamos invadir. – Um outro concorda.

O povo está eufórico. Que bom que tomaram a causa.

**********

– O que vamos fazer agora?

– Vamos nos entregar, ora.

**********

Os infelizes e miseráveis adivinhadores tramaram alguma ousadia, sei que sim. Infelizmente não sei o que é. Eles sabem coisas demais. Sabem que vão morrer e sabem que eu não os quero matar, mesmo tendo o legítimo poder. O que tramaram? Por pura esperteza conseguiram traçar as diferenças entre autor e personagens, e ainda mais, conseguiram entender o que cada um pode ou não fazer em seu limite. Droga! Eles são espertos. Eu os deveria ter matado logo. Mas perdi tempo.

E agora os desgraçados saíram. Estão com rostos tristes. Miseráveis!

– Padre, não se deixe levar por esses falsos semblantes. Lembre-se de que eles são videntes e sabiam que estávamos vindo. – Assoprei num suave tom para que somente o velho conseguisse ouvir.

– Levem eles para a praça, são profanos adivinhadores. – O padre grita. E, eu, rio novamente. Não tem como escapar, miserá…

– Esperem um minuto.

O que, agora quer falar? Desgraçado. Você está morto, Mr. S, não adianta lutar, miserável.

– Não somos profanos e muito menos adivinhadores.

– São, sim, padre, estão mentindo. Lembre-se, eles são ludibriadores. – Entreguei ao padre, no mesmo tom de ainda há pouco.

Infelizmente o velho agora está dividido. Droga!

– Diga, senhor, o que quer falar em sua defesa?

– Não somos adivinhadores. Somos apenas mais quatro personagens criados por um desvirtuado escritor. Ele nos criou somente para nos matar, e inventou que somos videntes só para causar todo esse movimento em Brada. O nome dele é Sr. P. O senhor o conhece, não, padre?

Infeliz! Vou te matar agora. Um raio…um meteorito…um ataque…

– Como você sabe que eu o conheço? – O padre já está do outro lado. Droga!

– Se vocês não sabem, isso que estamos vivendo é apenas uma história, e ele é o autor. Somos todos personagens dele. Estamos à mercê de uma mente fraca com uma ideia funesta e um bloco de notas, ou seja lá no que ele estiver escrevendo.

– Eu sou um personagem, e o Sr. P é meu autor?

– Sim. Ele não te disse isso?

– Não. Só falou que não era Deus.

– Agora está explicado? Não somos adivinhadores, somos simplesmente uma criação nascida para morrer injustamente. Ele é que é o errado nessa história.

– Não é verdade, padre, acredite em mim, eles são uma raça de profanos…

– Não diga mais nada, incrédulo malfeitor, ou vai matar todos nós? Que fim quer dar a essa história, ou melhor, que cor? Vermelha? Que Deus nos livre de você.

**********

Notas dos personagens:

Mr. S, agora, além de profanos adivinhadores, também somos profanos mentirosos. Que graça, não?

Notas do autor:

Minha nota, na verdade, será uma dica: se for matar algum(s) personagem(s) numa história qualquer, lembre-se de averiguar se, por acaso, o(s) miserável(eis) não é(são) vidente(s). Dá trabalho e por fim não concluímos a obra.

Hugo LC
Enviado por Hugo LC em 01/01/2014
Reeditado em 26/01/2015
Código do texto: T4632865
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